O gran finale da Beta Geral

Estudantes fecham as rodadas de publicações com uma cobertura especial sobre as diferentes consequências das chuvas

Antes da catástrofe natural que marcou o Estado para sempre, os repórteres da Beta Geral haviam publicado duas matérias no portal, com temas diversos escolhidos pelos futuros jornalistas – que foram o foco da análise do nosso conselho do leitor nas duas colunas já publicadas.

Até então, para o fechamento da atividade, o plano era de produção de duas pautas especiais, que foram selecionadas para que toda a equipe produzisse textos desdobrando a mesma temática. O tempo de produção seria maior e envolveria saídas de campo que estavam sendo planejadas. A primeira pauta especial seria sobre o movimento agroecológico, que promove a agricultura sustentável na produção de alimentos livres de agrotóxicos e conservantes. A segunda seria sobre o território indígena Kaigang, localizado em São Leopoldo, que seria visitado pela equipe de repórteres da Beta Geral.

Maurício Rech, da Semeares Vegetais Orgânicos, de Viamão, chegou a conversar com os repórteres, em um encontro online, sobre sua produção de orgânicos, com o objetivo de inspirar os estudantes para a primeira pauta especial. Mas, uma semana depois, começou uma das mais intensas chuvas da história – que se manteve nos dias seguintes, causando a catástrofe que todos conhecemos, e mudando os planos de toda a população gaúcha.

A cobertura da mídia

Foi então que se iniciou uma das maiores coberturas jornalísticas dentro do nosso estado. Veículos regionais, nacionais e internacionais mandaram correspondentes que ficaram diversos dias por aqui levando atualizações sobre as inundações que deixaram mais de 500 mil pessoas desalojadas.

Entretenimento para crianças do abrigo do CETE, em Porto Alegre. (Foto: Gustavo Masur/Palácio Piratini)

Estive ligado nas coberturas jornalísticas diariamente através da televisão, redes sociais, jornais e portais. Percebi a intensa atuação dos colegas e a rotina desgastante para levar os detalhes do que acontecia no Rio Grande do Sul 24 horas por dia. E apesar da extrema importância desse trabalho, como ombudsman, cabe a crítica para que as futuras coberturas sejam ainda melhores.

Por exemplo, as emissoras estaduais abertas de televisão passaram diversas horas dos dias limitadas a trazer apenas o emergencial da crise, com repórteres nas ruas ouvindo a população e trazendo os detalhes do que acontecia. Faltou ir mais além.

Para defender meu ponto de vista, vou fazer uma espécie de estudo de caso com o Jornal do Almoço, da RBS TV, de 20 de maio de 2024. O programa de uma hora e 40 minutos foi ao ar ao vivo 17 dias após as águas do Guaíba invadirem o Centro Histórico de Porto Alegre.

Entre as reportagens, o programa abordou um mapeamento geral de locais ainda alagados no Rio Grande do Sul; o retorno das aulas em Porto Alegre; a previsão do tempo e a falta de gás na capital. Analisou áreas de risco em Caxias do Sul; os abrigos improvisados embaixo do viaduto da BR-290; a busca por auxílio em Centros de Referência Assistencial de Canoas, e uma obra em uma ponte de Santa Maria. O telejornal também abordou a preocupação com enchentes no sul do estado; os próximos jogos da dupla Gre-Nal após a paralisação; e a investigação de um homem morto supostamente por policiais, entre outros assuntos.

É possível perceber o foco em informar a população diante dos acontecimentos da catástrofe climática em diferentes regiões. Um conteúdo focado em hard news, com entradas ao vivo e matérias voltadas para as enchentes, que entrevistaram pessoas e autoridades locais. Mas, uma única reportagem, exibida quase ao final do programa, tinha um viés mais investigativo e elaborado. Foi um conteúdo extenso sobre os roubos que estavam acontecendo em locais inundados. A RBS TV exibiu flagrantes dos roubos e entrevistas com pessoas que vivenciaram os momentos de violência. O Jornal do Almoço também mostrou um mapa para o público entender melhor a situação, entrou em barcos para mostrar de perto os locais atingidos e exibiu a resposta das forças de segurança sobre o caso. Ou seja, mais reportagens do tipo poderiam ter sido realizadas ao longo do programa.

Foi positivo

Um exemplo jornalístico inspirador foi o trabalho da Agência Pública, com diferentes reportagens longas e investigativas com novos dados sobre a catástrofe. Um dos textos que mais me marcou, publicado em 21 de maio, é sobre os catadores que não conseguiam trabalhar em meio ao lixo deixado pelas chuvas. O texto trouxe números impressionantes sobre a quantidade de entulho acumulado no Rio Grande do Sul, edificações afetadas e unidades de tratamento de resíduos afetadas. A Pública ainda disponibilizou um mapa interativo de todo entulho espalhado pelo estado, citou a quantidade de domicílios afetados e mostrou o apoio que será necessário na limpeza.

Situação da sujeira em Porto Alegre em 22 de maio. (Foto: Gustavo Mansur/Palácio Piratini)

É uma reportagem cheia de contextos e detalhamentos minuciosos, que vai além do emergencial, para demostrar o tamanho do estrago causado no Rio Grande do Sul, além de focar em um grupo pouco lembrado, os catadores.

Outro trabalho que acompanhei foi o do Sul21, porém, neste caso, o exemplo é de uma reportagem mais recente, de 15 de junho. O texto citado fala da “cidade fantasma” que virou o bairro Mathias Velho, em Canoas, após ser uma das localidades mais atingidas pela enchente de maio. São diversos relatos e fotos que mostram o tamanho do tempo que será necessário até as pessoas realmente se reestabelecerem no local.

Os leitores também opinam

Apesar do vasto número de notícias circulando pelas redes, a Beta Redação ficou praticamente paralisada por conta das três semanas sem aulas nas universidades e estabelecimentos de ensino em geral. No período, fui cobrado pelo leitor Telmo Silva, 87 anos, nas vezes em que vi ele caminhando nas ruas do bairro onde moramos. “Estou aguardando os textos para avaliar, Gustavo”. “Quando tu vais voltar a me enviar as matérias para ler?”. “E as reportagens, Gustavo?”, eram algumas das falas que eu costumava ouvir.

Sempre precisava explicar que iria demorar um pouco até que tudo se reestabelecesse. Mesmo assim, Telmo não ficou de fora do noticiário jornalístico durante o período das intensas chuvas. Na opinião dele, a cobertura, como um todo, foi negativa. “Foram muitas informações desencontradas. Sensacionalismo se viu bastante. A população estava desinformada, reproduzindo notícias sem base”, comenta. O leitor avalia que é missão da imprensa mostrar a realidade, mas que poderiam ter sido usadas melhores formas.

“Algumas produções jornalísticas estavam um tanto incoerentes. Só serviam para aumentar a desinformação, por vezes favorecendo o caos social”, avalia a mestranda em comunicação, Renata Kehl, conselheira da Beta. Ela acredita que a grande quantidade de ações de fact-checking confirma sua ideia. “Também encontrei produções bastantes claras, objetivas e ilustrativas ao trazerem a descrição do fato, as carências da comunidade, as orientações e as posições das lideranças”, complementa a leitora sobre a parte positiva da cobertura, que facilitou sua visualização da situação.

Já o empresário Régis da Rosa opina que o trabalho foi bom, mas muito apelativo. “Os veículos dedicaram 24h para a cobertura, achei positivo. Mas foi muita informação com apelo emocional pela desgraça”, argumenta. Ele também está gostando de um novo quadro da RBS TV que compara as promessas do governo e o que de fato está sendo entregue após as catástrofe. “Eu achei muito importante, espero que continue”, completa.

Quem também enviou sua opinião sobre o trabalho jornalístico foi a estudante de Letras Manuela Tarouco. “O jornalismo foi essencial tanto pra alertar, como pra acalmar a população, pois tinham muitas fake news sendo espalhadas”, pontua. Além disso, o trabalho serviu como grande aprendizado ao público. “Por exemplo, antes dos noticiários eu não sabia o que era um dique e nem qual era sua importância”, detalha a universitária.

O nosso retorno

As aulas da Beta Geral retornaram de forma virtual no dia 28 de maio. Entre as anotações no meu caderno para aquele dia está “vibe triste”. Foi o clima que presenciei no encontro. Cada um de nós foi afetado da sua maneira.

A repórter Sofia Padilha Gulart precisou sair do seu apartamento e acabou perdendo alguns móveis por conta do mofo. O editor de redes sociais Gabriel Muniz viveu momentos de tensão por ter entrado água onde moram sua avó e seu primo. O editor Leonardo Martins ficou 20 dias fora de casa por estar sem água e energia elétrica. O repórter Arthur Reckziegel abrigou pessoas próximas em sua casa. O editor Lucas Kominkiewicz teve seu local de trabalho invadido pelas enchentes. Esses são só alguns relatos.

Após esse reencontro, decidimos que trocaríamos as duas pautas especiais por um único texto com a intenção de abordar, de diferentes ângulos e perspectivas, o que o Rio Grande do Sul passou na catástrofe climática. Alguns estudantes optaram por mudar a forma que abordariam suas pautas sobre o movimento agroecológico, outros propuseram ideias totalmente novas depois de tudo o que aconteceu.

Então, nessa última rodada de publicações da Beta Geral desse semestre, os leitores podem conferir textos sobre o sistema agroecológico que minimizou impactos das enchentes, as perdas de produção agrícola, o impacto das chuvas nos biomas, o alto volume de entulho nos bairros afetados , as novas iniciativas de checagem jornalística em momentos difíceis, o trabalho de conserto de computadores, entre outros assuntos.

Matéria de Alana Schneider demonstra como produtores agroecológicos lidaram com os problemas climáticos. (Fotos: Daniel Büttenbender/Arquivo Pessoal)

São diferentes textos com um trabalho intenso de apuração que demonstram algumas realidades que passaram batidas durante os últimos dois meses na mídia tradicional.

Meu trabalho de ouvidoria

Bom, chegou o momento de terminar por aqui minha participação como ombudsman da Beta Geral. Diferente dos anteriores, precisei escrever uma coluna a menos por conta da mudança de rumos após as enchentes.

A parte mais difícil foi realizar a análise da cobertura jornalística em meio ao caos vivido no estado. Tantas coisas aconteceram, a cobertura foi muito vasta e os meios de comunicação passavam longas horas por dia atualizando o que ocorria. Tentei buscar alguns exemplos que, em meio a todo esse fervo de notícias e fake news, se destacaram para mim. A dedicação foi grande para tentar encerrar com “chave de ouro”.

A função, ao longo do semestre, foi bem desafiadora pela responsabilidade de analisar o que os meus colegas produzem. “Você tem anos de redação com os colegas fazendo o produto e, depois, você entra do outro lado para criticar o produto feito”, disse Vera Guimarães, ex-ombudsman da Folha de S. Paulo, ao programa Voz dos Ouvidores, em 2014. O trecho resume bem o meu sentimento ao longo do semestre. Eu passei os últimos anos trabalhando ao lado dos meus colegas e, de repente, me vejo na necessidade de analisar o trabalho deles mesmo sem nem ter completado minha formação.

Acredito que o desafio foi ótimo para me tirar da zona de conforto. Na segunda aula, quando fui indicado para a função, confesso que o termo “ombudsman” me parecia um tanto abstrato. Precisei ler diversas colunas anteriores da Beta, ler colunas da Folha de São Paulo e estudar as matérias disponibilizadas pelos professores para realmente entrar no ritmo do que precisaria entregar.

Tive a oportunidade de sair da bolha da faculdade e ir para o mundo real. Muitas vezes nos esforçamos, fazemos alterações sugeridas pelos professores e postamos nosso trabalho com a maior alegria do mundo, como se estivesse perfeito. Porém, na vida real, onde nossos textos precisam chegar aos leitores, percebi que tudo está longe de ser maravilhoso.

Esforcei-me ao máximo para selecionar um conselho do leitor com pessoas de fora do meu círculo familiar. Convidei profissionais de diferentes idades e áreas de atuação para buscar as opiniões mais variadas possíveis. Agradeço muito a todos pela dedicação em me mostrar detalhes que jamais identificaria. O momento mais marcante e surpreendente foi quando, em um domingo após às 21h, a aposentada Cláudia Vargas me ligou para conversar sobre o texto que ela havia lido. Isso dois dias antes de publicar minha primeira coluna.

Publicar a coluna e aguardar o que os colegas viriam me dizer costumava ser outro momento de tensão. Ficava pensando “será que virão me xingar? Virão me cancelar? Me odiarão para sempre?” No fim das contas, poucas pessoas me procuraram para conversar, o que me decepcionou um pouco. Julguei tanto os textos deles e quase ninguém veio debater o que eu fiz.

Ainda assim, senti a evolução dos trabalhos. A primeira rodada de textos foi a que mais me ocupou tempo ouvindo as opiniões dos leitores. A partir da segunda, esse tempo só foi diminuindo. Parabenizo muito os colegas por seguirem firmes evoluindo para se tornarem jornalistas exemplares. Acredito que precisamos dar o nosso melhor em nossa profissão já tendo em mente que alguém sempre vai encontrar um defeito em nossos trabalhos. Ou melhor, uma oportunidade de melhorar.

Gustavo Bays

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