Número de desalojados no RS por chuvas de maio de 2024 supera soma da última década 

Por Laura Driemeier, Pedro Curi,  Petra Pacheco, Raquel Losekann e Tobias Araújo*

A questão dos chamados “migrantes climáticos” ganhou destaque no Rio Grande do Sul em decorrência do evento extremo que acometeu o estado e desabrigou milhares de pessoas em maio de 2024. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), a crise climática vem piorando as condições de vida de populações em diversos locais do planeta (sobretudo aquelas mais empobrecidas), tendo o órgão lançado, em 2023, um Plano de Ação de Proteção às pessoas deslocadas em função de catástrofes naturais. De acordo com o documento, os países que estão no foco desses impactos pertencem ao continente africano, latino-americano e asiático. No Rio Grande do Sul, esta realidade também é visível pelo aumento na intensidade e na frequência destes fenômenos. 

Catástrofes ambientais relacionadas a fenômenos hidrológicos são aquelas causadas por chuvas torrenciais, inundações, enchentes, alagamentos e deslizamentos de terra. Embora as terminologias pareçam semelhantes, elas diferem com relação ao nível de estrago, de elevação da água e de chuva. Nos anos de 2023 e 2024, o Rio Grande do Sul experenciou as maiores enchentes de sua história, que devastaram cidades inteiras e apresentaram impactos sem precedentes na vida das pessoas. De maneira especial, a enchente de maio de 2024 superou os níveis de estrago de anos anteriores. As populações se viram forçadas a saírem de suas casas e se instalarem em abrigos, devido ao avanço da água nas suas residências. 

Dados coletados a partir do Atlas Digital de Desastres no Brasil que, por sua vez, faz a coleta por meio da Defesa Civil dos estados e do Sistema Integrado de Informações sobre Desastres (S2iD) contabilizam os estragos entre 2013 e 2023 causados por fenômenos hidrológicos. Considerando que os números consolidados são disponibilizados ao final de cada ano, houve a necessidade de consulta aos dados da Defesa Civil do Estado do Rio Grande do Sul para obter informações sobre 2024.

Com base nessas fontes, o número de desalojados por consequência dos desastres hidrológicos que atingiram o Rio Grande do Sul entre os anos de 2013 e 2023 soma 455,9 mil pessoas desalojadas em 10 anos, um índice inferior à quantidade de vítimas registradas em 2024. Segundo a Defesa Civil do Rio Grande do Sul, mais de 570 mil pessoas foram retiradas de suas casas pelos desastres hidrológicos somente nos primeiros seis meses deste ano, batendo recorde histórico no estado gaúcho. 

No mês de maio, especificamente no dia 23, o número de pessoas desalojadas chegou ao seu ápice, sendo contabilizado em 581,6 mil pessoas. O atlas considera que desalojados são pessoas que, em decorrência dos efeitos do desastre, desocuparam seus domicílios, mas não necessitam de abrigo público. 

O que são “migrantes climáticos”

As causas das migrações voluntária e forçada são diversas. De maneira geral, se dão em função da busca por melhores condições de vida ou de graves violações de Direitos Humanos e fundado temor de perseguição. Matheus Felten, professor de Relações Internacionais da Univates, explica que a origem dos termos “migrantes climáticos” e “refugiados climáticos” é similar. Entretanto, para o Direito Internacional, o “refúgio” é baseado na Convenção de Genebra Relativa ao Estatuto dos Refugiados 1951 que classificou juridicamente as pessoas que solicitam o refúgio. 

“Não estão dispostas num sentido legal dentro dessa definição de refugiado. Isso é um problema porque não há esse entendimento quanto às questões climáticas, de que essas pessoas são forçadamente deslocadas”, explica o professor. No entanto, esses deslocamentos existem, então estas pessoas seriam classificadas como migrantes climáticos. “Na condição de refugiado, o cruzamento de uma fronteira internacional deve ser feito necessariamente e o solicitante de refúgio necessita fazer essa solicitação em outro país. Então, dentro do seu país ele pode ser um migrante. Fora do seu país ele pode ser um refugiado”, complementa.

Considerando as problemáticas envolvendo os migrantes climáticos, sejam eles “internos” ou internacionais, o deslocamento forçado interno ou externo por causa de catástrofes ambientais vêm apresentando crescimento. “O número de refugiados chegou a um nível recorde em 2024. Com conflitos internacionais e também agora, questões climáticas, há uma tendência de aumento”, aponta Felten.

Maior frequência de eventos extremos

Desastres como inundações e chuvas intensas são os maiores responsáveis pelo alto índice de deslocamento nos últimos dez anos, atingindo 226 mil (49,49%) e 106 mil (23,14%) pessoas, respectivamente. 

Fernando Fan, hidrólogo e professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS, explica as causas do aumento e da intensidade destes fenômenos: “O número de eventos vem aumentando nos últimos anos e a gente pode enumerar duas causas. A primeira é o aumento de ocupação de áreas de risco. Cada vez mais pessoas têm ocupado áreas que são ribeirinhas, que podem ser inundadas. A segunda causa seria mais relacionada ao que tem sido apontado como a mudança climática. As projeções de mudanças climáticas têm sugerido aumento da ocorrência de cheias na região sul do Brasil e outros estudos já estão apontando que esses eventos que estão acontecendo agora já estão relacionados a esses”. Nos anos de 2023 e 2024, os deslocamentos se deram, novamente, em função de fortes chuvas e, sobretudo, inundações. 

De acordo com os dados coletados pela reportagem, 20 cidades apresentaram os maiores números de migrantes em função de questões climáticas de maneira geral, o que inclui não apenas eventos hidrológicos. Durante este período, o município de Alegrete encontra-se em primeiro lugar, seguido de Esteio. Outras cidades da fronteira como Rosário do Sul, Quaraí e São Borja também estão elencadas. Entretanto, encontram-se nesta lista cidades como Lajeado, São Sebastião do Caí, Eldorado do Sul, São Leopoldo, Estrela, Encantado e Arroio do Meio, que constituíram os municípios mais afetados nos eventos de 2023 e 2024. Nesse sentido, cabe ressaltar que, no Rio Grande do Sul, as cidades do Vale do Taquari, das fronteiras e da Região Metropolitana estão entre os municípios mais afetados por estes eventos no que diz respeito ao deslocamento de pessoas. 

A migração entre cidades, portanto, apresentou-se como alternativa para aqueles que se viram afetados por estes eventos nas suas cidades de origem. Foi o caso do estudante Alander Diaz. “Com a enchente, precisei deixar minha casa, que era em Canoas. Moro com a minha mãe, uma idosa de 72 anos. Precisamos vir para Gravataí. Não queremos voltar a ficar em Canoas. Escolhemos Gravataí porque tem o mesmo crescimento da cidade e boas oportunidades. Vamos ficar definitivamente aqui”, afirma o estudante.

Desafios pela frente 

Considerando a tendência no aumento da frequência e da intensidade destes eventos e, consequentemente, do número de migrantes climáticos, vêm se tornando cada vez mais evidente a importância de ações governamentais e internacionais voltadas tanto à migração climática quanto à mitigação do impacto destes fenômenos. Entretanto, ainda existem desafios quanto ao reconhecimento destas pessoas perante às legislações e a implementação de políticas públicas relacionadas a isso. 

Em âmbito global, diversos países ainda não reconhecem, juridicamente, o termo “refugiado climático” e isso acarreta problemas na acolhida dessas pessoas. O caso dos haitianos que imigraram ao Brasil constitui um exemplo prático desta dificuldade. Matheus Felten infere que, se as pessoas estão saindo por causa de um evento climático, que é o terremoto, elas poderiam ser enquadradas como uma pessoa migrante do clima, migrante ambiental ou refugiado ambiental. “Aqui no Brasil não se tem esse entendimento. Assim, foi feito um visto de acolhida humanitária, que era uma condição de ‘quase refugiado’ para acolher essas pessoas a partir dos preceitos mais amplos dessa classificação”, exemplifica o pesquisador. “É necessário ter o entendimento de que essas pessoas vão ter que se deslocar e essa condição de movimento do ser humano vai ter que ser revista. É uma constante”, conclui. 

Quanto à ação dos órgãos públicos, o hidrólogo Fernando Fan afirma que, do ponto de vista jurídico, há legislação suficiente que verse sobre estes eventos, como a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil e a Política Nacional de Recursos Hídricos, mas melhorias são necessárias. “Na cidade de Porto Alegre não existe o cargo de hidrólogo para cuidar, por exemplo, dos sistemas de proteção, que têm a ver com água. A gente tem engenheiros no DMAE e tinha no DEP, mas no quesito ‘inundação’ não há alguém que opere um sistema de previsão, por exemplo”, afirma.

*Reportagem produzida na atividade acadêmica de Jornalismo de Dados (supervisão: Taís Seibt)

Beta Redação

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