Moradoras do Sarandi relatam traumas da enchente

Casa da Êmilly Parcianello, depois que a água baixou (Foto: Êmilly Parcianello/ Arquivo Pessoal)

Depois do extravasamento do dique do Arroio Feijó, na madrugada do sábado, dia 4 de maio de 2024, os moradores do Sarandi receberam um alerta por parte da prefeitura de Porto Alegre para saírem de suas casas. Em poucas horas, residências e comércios ficaram submersos. Além disso, parte da Avenida Assis Brasil também foi atingida.

Segundo o coordenador de comunicação do Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE), Aristóteles Júnior, “cerca de 26 mil pessoas foram atingidas pela enchente no bairro Sarandi, conforme levantamento da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade“. Nesse contexto, famílias tiveram que sair de suas casas e encontrar um lugar para ficar.

Contudo, essa não foi a primeira vez que o bairro inundou. Em agosto de 2013, as comunidades Asa Branca, Elizabeth, Nova Brasília e União ficaram alagadas após o rompimento de cerca de seis metros do dique de contenção. Na época, cerca de 700 casas foram afetadas.

A vida da confeiteira Êmilly Parcianello Bastos Veiga Domingos, 20 anos, mudou a partir daquele 4 de maio. A jovem não esperou a água chegar para sair da casa em que morava há um ano no bairro Sarandi. Mas, antes disso, ergueu o máximo possível de móveis, pensando que o nível da água não subiria a ponto de atingi-los. No entanto, o plano deu errado. “Perdemos tudo, móveis, eletrodomésticos, camas, geladeiras e roupas”, ressalta.

A confeiteira Êmilly saiu de casa antes da água chegar, mas não evitou as perdas (Foto: Êmilly Parcianello/Arquivo Pessoal)

Logo no início da enchente, Êmilly começou a perceber as consequências desse episódio. Ela não tinha o básico, roupas para usar. Outra dificuldade enfrentada foi o seu trabalho. “Logo depois veio a preocupação em relação ao serviço. Como eu trabalhava por conta como confeiteira, acabei tendo que pausar as vendas e cancelar encomendas, por ter perdido meus materiais”, enfatiza.

Êmilly morou na sua casa por um ano (Vídeo: Êmilly Parcianello/Arquivo Pessoal)

Por ter que deixar sua casa, Êmilly comenta que recebeu apoio de familiares, da empresa do marido e de pessoas desconhecidas, que a auxiliaram com doações de roupas. Depois do que aconteceu, ela resolveu se mudar para Xangri-lá (RS), uma vez que a catástrofe deixou marcas no âmbito material e no seu psicológico. “Minha saúde mental está bem prejudicada, minha ansiedade aumentou, estresse, tudo”, conta.

“Lembro do alívio de tocar os pés em terra firme”

O apartamento onde a estudante de Direito Carolina Aparecida Monteiro, de 33 anos, mora junto com o marido, a filha de cinco meses e o sogro, que tem problemas de saúde, no bairro Sarandi, ficou ilhada. A água começou a chegar no seu condomínio no sábado, 4 de maio, pela parte da tarde, impossibilitando a entrada e saída do local. À noite, por volta das 17h, começou a subir água pelos bueiros do condomínio, o que intensificou o alagamento.

Carolina e a filha de cinco meses (Foto: Carolina Ramos/Arquivo Pessoal)

Carolina não imaginava que o que estava acontecendo iria durar muito tempo, por isso a solução encontrada foi tentar se manter com o suprimento que eles tinham. No entanto, no domingo, ela e a família já estavam ilhados, sem energia elétrica e sem água. Naquele mesmo dia, às 16h, eles foram resgatados.

Carolina ficou sem acesso ao seu apartamento do dia cinco de maio até seis de junho (Foto: Carolina Aparecida Monteiro Ramos/Arquivo Pessoal)
Carolina ficou sem acesso ao seu apartamento por um mês (Foto: Carolina Ramos/Arquivo Pessoal)

Carolina e a família ficaram na casa de parentes do dia 5 de maio até o dia 6 de junho. Ela acabou recebendo ajuda de familiares e amigos. Nesse cenário, por meio de doações, conseguiu enfrentar as dificuldades. “Saí de casa com um bebê de cinco meses, apenas com uma mochila com os pertences dela e a roupa do corpo. Conseguimos doações de roupas para minha filha”, comenta.

Após o ocorrido e o fato de ter ficado fora de casa por cerca de um mês, Carolina conta que se sente “acabada”. Eles estavam em uma residência com 10 pessoas, cada uma com seus traumas. “Além das notícias que recebíamos, as lembranças dos gritos de socorro que ecoavam na madrugada de sábado para domingo vêm constantemente à minha mente”, destaca.

Segundo a estudante, no momento em que foram resgatados pelo jet ski, a água tinha uma profundidade de mais de seis metros. “Só consigo pensar no pânico que seria caso caíssemos. Lembro das minhas pernas tremendo quando entrei no caminhão do Exército e do alívio de tocar os pés em terra firme. Essas são lembranças que dificilmente vou acabar esquecendo”, complementa Carolina.

“Um momento difícil foi ajudar as pessoas a limparem as suas casas

A assistente jurídica Giulia Barbosa Francisco, também moradora do Sarandi, abrigou familiares que foram atingidos pela enchente. Na madrugada do dia 3 para o dia 4 de maio, a sua dinda e seu filho, que moram em um local do bairro que já costumava ser afetado pelas cheias, teve a a casa atingida pela água. Esse fato também aconteceu com outros parentes – na casa dos seus tios-avós a água subiu até o telhado e a residência dos primos também foi afetada. 

“Os meus familiares perderam praticamente todos os móveis da casa, conseguiram recuperar pouquíssimos objetos. A casa do meu primo ficou 34 dias com água dentro. Então, o pouco que talvez daria para salvar, eles ainda estão tentando, porque tem pouca chance de recuperação”, explica.

Giulia não teve a casa atingida pela cheia, mas abrigou parentes e ficou sem água e luz (Foto: Giulia Barbosa/Arquivo Pessoal)

Para Giulia, as principais dificuldades enfrentadas nos primeiros dias eram conseguir roupas para os familiares, além de ficar sem energia elétrica e água. No entanto, ao longo da enchente, por meio de doações, eles conseguiram vestimentas, suprimentos, rações para os cachorros e materiais escolares para as crianças. “Depois, de tudo, um momento difícil foi ajudar as pessoas a limparem as suas casas, ver elas visualizando tão de perto essa dor”, reforça a advogada.

Local onde a Giulia mora (Foto: Giulia Barbosa/Arquivo Pessoal)
Local onde a Giulia mora (Foto: Giulia Barbosa/Arquivo Pessoal)

Giulia não teve sua casa diretamente afetada, mas a sua saúde mental foi abalada, porque ela ficou aproximadamente 14 dias sem água e sem luz. Além disso, a empresa que ela trabalha continuou seguindo sua rotina de serviço normalmente. Justamente por isso, ela se sentia dividida em ter que cumprir o expediente e, ao mesmo tempo, querer ajudar todo mundo. “Isso me deixou bem sobrecarregada e ansiosa. Fora que não podia sair muito de casa, porque tinha a questão de assalto. Como nós éramos uma das poucas ruas em que a água não chegou, tinha essa tensão das casas serem invadidas”, comenta.

“É preciso acelerar a limpeza do bairro”

Para o deputado estadual Matheus Gomes (PSOL), o bairro Sarandi foi tão afetado pelas enchentes devido à sua localização em uma região sensível, que há décadas convive com os alagamentos. Entretanto, não tem atenção do governo municipal e estadual nas ações preventivas. “A falta de manutenção nas Casas de Bombeamento, no Dique do Arroio Feijó e a incapacidade do sistema de drenagem na região foram determinantes para o alagamento dessa dimensão”, destaca.

O deputado não é morador do bairro, mas tem muitos amigos e eleitores por lá, além de ter muito contato com lideranças comunitárias da região. Segundo ele, o poder público entrou em colapso com a invasão das águas. “As pessoas foram obrigadas a se auto-organizar para realizar os salvamentos. Organizações comunitárias como o Quilombo dos Machado, que fica no Sarandi, tomaram para si a responsabilidade de acolher as pessoas, organizar refeições, distribuir os donativos necessários. Estado e as suas instituições, como a Defesa Civil, o Corpo de Bombeiros, o Exército e as forças de segurança pública, também agiram na comunidade, no entanto, falharam em liderar o processo”, ressalta.

Matheus esteve no bairro no dia 19 de junho e presenciou um cenário de descaso, principalmente nos locais mais periféricos, como a Vila Elizabeth. “É preciso acelerar a operação de limpeza do bairro. Muitos moradores não têm sequer um cronograma para saber quando a prefeitura irá retirar os resíduos das ruas. Isso pode gerar crises sanitárias com a transmissão de doenças, como a leptospirose. O restabelecimento de serviços básicos na comunidade é essencial, como a educação básica, saúde e assistência social”, comenta.

Deputado Matheus Gomes no bairro Sarandi (Foto: Equipe Matheus Gomes/Arquivo Pessoal)

Nesse sentido, o deputado destaca a importância de investimentos na prevenção dos desastres climáticos, assim fortalecendo o sistema de proteção contra as cheias e as obras de drenagem. “Também é necessário dialogar com moradores de áreas de risco, como na Asa Branca ou no entorno dos diques, e oferecer condições dignas de moradia a essas pessoas, que não signifique que elas sejam removidas para locais distantes, sem infraestrutura, pelo contrário”, conclui.

O que aconteceu no bairro Sarandi?

O engenheiro civil Jaime Federici Gomes, doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental e professor da Escola Politécnica da PUCRS, explica que as enchentes no bairro Sarandi ocorreram devido a um rompimento parcial do dique e por conta da elevação do Guaíba. “O nível estava mais alto que os diques, um tipo de barragem de terra. A água extravasou por cima, inundando grande parte do Sarandi, quase todo”, enfatiza.

Conforme a sua pesquisa, o dique não estava muito alto, ou seja, ele foi projetado por uma cota de elevação altimétrica menor que o nível da água alcançou durante cheia. Nesse cenário, ele não deu a proteção necessária, e com isso água passou por cima e acabou arrebentando parcialmente o dique.

Nesse sentido, como as pessoas estavam ajudando no resgate de moradores do bairro, a energia elétrica foi desligada. “Então, eles tiveram que desligar a energia também da casa de bombas, senão aconteceria um desastre”, complementa.

Aristóteles Júnior explica que o Sarandi foi inundado devido ao fato de o bairro ter contato e ficar próximo de diversas bacias, que apresentaram inundação em maio de 2024. ”Entre elas a do Lago Guaíba, Arroio Feijó e Rio Gravataí. Além disso, as Estações de Bombeamento de Águas Pluviais (Ebaps) instaladas na área têm nível muito baixo. Com isso, o Guaíba ultrapassou as casas de bombas, que foram alagadas e deixaram de operar”, destaca o coordenador de comunicação do DMAE .

Aristóteles Júnior explica a iniciativa que está sendo realizada no momento para auxiliar os moradores do local. “Duas das três Ebaps localizadas no bairro Sarandi já estão operando – fato que permitiu o recuo da água e o início da limpeza do bairro. O DMAE trabalha para restabelecer a Ebap 21, que também atende a comunidade local”, informa. O Sarandi também recebeu bombas flutuantes, que cumprem a mesma função das casas de bombas. Esse processo iniciou em 19 de maio.

Nesse momento, segundo Aristóteles Júnior, o DMAE projeta obras em todas as casas de bombas da cidade de Porto Alegre. O processo, que está na fase de estudos, deve sair do papel ao longo dos próximos meses.

Babi Bühler

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