Sistema agroecológico de produção minimiza impactos da enchente em cooperativa do Vale do Caí

Associados da Ecocitrus durante período de colheita das laranjas. (Foto: Divulgação Ecocitrus)

Há mais de 40 anos, a citricultura é a principal fonte de renda da família de Ricardo Weber. As primeiras mudas de bergamota, plantadas pelo pai na década de 80, já deram lugar à terceira geração de árvores. O produtor, da cidade de Montenegro, integra a Cooperativa dos Citricultores Ecológicos do Vale do Caí – Ecocitrus e foi um dos associados que perderam toda a safra com as chuvas.  

“A gente não perdeu só as frutas, mas todo o salário da gente, pois vivemos disso”, afirma. Ricardo amarga o segundo ano consecutivo de prejuízos devido ao clima. Em julho de 2023, as chuvas impediram metade da colheita de bergamotas e, somadas ao evento deste ano, as perdas chegam a 75 toneladas de frutas. “Nossa propriedade é uma área de enchente que já alagou outras vezes. Mas as chuvas dos últimos anos estão diferentes, não têm explicação”, conta.  

Parte do pomar da família de Ricardo ficou alagado durante a enchente e devido ao excesso de umidade as bergamoteiras perderam muitos dos frutos. (Foto: Ricardo Weber/Arquivo Pessoal)

Segundo o agrônomo da Ecocitrus Daniel Büttenbender, a cooperativa ainda está desenvolvendo um relatório técnico-administrativo dos prejuízos. Dados iniciais mostram que cinco dos 120 associados tiveram parte do pomar levada pela enchente, dois sofreram com deslizamentos de terra, enquanto os demais, a exemplo de Ricardo, foram afetados pelo excesso de umidade e a falta de sol. De forma direta – sem considerar esses dois últimos fatores -, a entidade estima que 150 toneladas de frutas deixaram de ser colhidas e, consequentemente, 75 mil litros de suco não foram produzidos pela agroindústria.

O agrônomo esclarece, contudo, que, no caso da laranja, a baixa safra deste ano não está ligada diretamente à enchente, uma vez que ainda é reflexo das chuvas de 2023, as quais impactaram na florada das mudas. “Fora a perda física dos pomares, há o dano psicológico do produtor. A gente nota no pessoal enquanto caminha pelo pomar uma tristeza estampada no rosto”, relata.  

Para além do suporte técnico, a cooperativa trabalha para fechar parcerias e buscar linhas de crédito aos associados. O presidente da Ecocitrus, Pedro Schneider, não descarta a possibilidade de buscar financiamento para a própria entidade. “Vamos ter que administrar a nossa cooperativa com pouca margem de lucro, atuando com baixa rentabilidade. Ainda estamos avaliando o cenário e nesse momento é difícil fazer muitas previsões”, afirma.  

Pomar de um dos associados da Ecocitrus ficou totalmente submerso durante a enchente. (Foto: Daniel Büttenbender/Arquivo Pessoal)

Perda de safra, mas pouco impacto no solo

A Ecocitrus é uma importante referência gaúcha no sistema de produção agroecológica e cooperativa, além de um modelo de aplicação da economia circular nesses setores. Conforme Schneider, as principais frentes de trabalho, hoje, são o aumento da produção orgânica e a profissionalização dos associados no que tange ao manejo do solo e à retenção de água nas propriedades. Questões que ajudaram a amenizar os impactos da enchente. 

“Nós tivemos áreas inundadas e perdas, sim, mas nossas propriedades conseguem reter a água por mais tempo, evitando que a chuva corra morro abaixo tão logo ela chegue no solo. Se tivéssemos [enquanto sociedade] mais consciência e um cuidado maior com as lavouras, acredito que o caos teria sido menor”, afirma o presidente. 

Na visão técnica do agrônomo da Ecocitrus, esse manejo conservacionista do solo tem como base justificativas econômicas e não ecológicas. “Tanto se fala de não fazer plantio morro acima e morro abaixo, e sim, no sentido plano do terreno, justamente para apoiar na retenção e no escoamento da água. Mas para ganhar rendimento de máquina, muitos agricultores optam pelos morros e acabam compactando esse solo”, explica.

Daniel admite que alguns dos associados também cultivam os citrus em morros, pelo fato de as propriedades serem estreitas, mas que há um trabalho de compensação por meio de cobertura vegetal e do sistema de agroflorestas.

Dois associados da Ecocitrus sofreram com deslizamentos de terra. À direita, é possível verificar um exemplo do plantio de citrus em morros, e à esquerda, plantio feito em terreno plano. (Fotos: Daniel Büttenbender/Arquivo Pessoal)

Para a Organização das Cooperativas do Estado do Rio Grande do Sul (Ocergs), a emergência climática do Estado exige um pensar e fazer diferente. “A área ambiental precisa de mais cooperação. Ações individuais de municípios e entidades serão superadas pela ação climática mundial. Temos que criar mecanismos efetivos de proteção a nível regional e nacional”, destaca o presidente Darci Hartmann. 

Ele defende uma maior verticalização da produção, com maior investimento em tecnologia, cobertura e manejo do solo. Hartmann demonstra preocupação com o cenário de erosão e perda de nutrientes devido à enchente e cita a pesquisa da Faculdade de Agronomia da UFRGS que apontou um prejuízo de R$ 25,5 bilhões. O fato de a enchente ter ocorrido em um período de colheita só potencializou a cifra. “As chuvas vieram justamente no período mais frágil, quando não tinha cobertura de solo”, esclarece o presidente da Ocergs.  

Na Usina de Compostagem da cooperativa Ecocitrus, os resíduos agroindustriais são transformados em composto sólido, biofertilizante e biogás. (Fotos: Divulgação Ecocitrus)

É do solo que quase 320 mil gaúchos cooperados e empregados no setor do cooperativismo agropecuário, onde se inclui a Ecocitrus, tiram sua renda. Por esse motivo, Hartmann reforça a importância de os produtores assumirem o compromisso de proteção do solo: “Temos que cuidar desse patrimônio que é nosso, mas também dos nossos filhos”.

A Ecocitrus busca fazer sua parte. A cooperativa está em contato com a Embrapa, universidades e demais entidades do setor para apoiar na reposição dos nutrientes do solo, por meio da matéria orgânica produzida na Usina de Compostagem, em Montenegro.

Em paralelo, a cooperativa segue desenvolvendo capacitações e apoiando os associados na implantação de agroflorestas e da agricultura biodinâmica e homeopática. “Apesar de a água ter ficado alguns dias no pomar, inclusive com correnteza, não tivemos erosão, pois temos esse cuidado com a cobertura do solo”, conta o associado Ricardo Weber.  

Vegetação rasteira ajuda a proteger a propriedade de Ricardo contra a erosão do solo. (Foto: Ricardo Weber/Arquivo Pessoal)

O desafio da cooperativa – e do sistema de produção ecológico em si – segue sendo o de manter a competitividade e a paridade de valores com empresas do sistema convencional. A Ecocitrus optou por transformar toda a fruta em suco, a fim de tornar sustentável a agroindústria. “Não conseguimos pagar para o agricultor, por uma caixa de fruta que vai virar suco, o mesmo que se pagaria para uma caixa de fruta in natura. E esse é um dos pontos de tensão que a gente tem para resolver”, explica Daniel. O setor lida ainda com o atraso tecnológico do mercado nacional para a produção orgânica e a falta de mão de obra. 

Agroecologia como filosofia de vida 

Assim como os eventos climáticos de maio sinalizam a necessidade de uma relação mais ecológica com o solo, foram eles também que obrigaram, em 2008, o citricultor Ricardo Weber a repensar o sistema de produção convencional utilizado na propriedade. Após um temporal de granizo destruir o pomar e deixá-lo sem fonte de renda durante dois anos, a família optou pelo sistema agroecológico e por ingressar na cooperativa. “Com isso conseguíamos receber de forma gratuita composto para o solo, acompanhamento técnico e capacitação”, explica ele.

Mas não foi somente o fator econômico que pesou na decisão. A filha mais velha de Ricardo – então com 15 anos – foi diagnosticada com linfoma, situação que reforçou o sentimento de mudança. “Não dá para afirmar que a doença da minha filha foi por causa do agrotóxico. Mas depois que passamos por essas situações, a gente vê que precisa mudar de lado”, afirma. 

A família de Ricardo cultiva cerca de 3.500 mudas de bergamota em uma área de sete hectares. (Foto: Ricardo Weber/Arquivo Pessoal)

Conforme o agrônomo da Ecocitrus Daniel Büttenbender, a produção agroecológica é uma alternativa na busca pelo equilíbrio entre as necessidades humanas e ambientais, bem como para a eficiência energética do planeta. “Não adianta eu produzir uma caloria de alimento e para isso gastar cinco calorias de combustível. Até pode ser economicamente viável, mas não energeticamente. E como a gente vê, a natureza já está cobrando essa deficiência”, alerta.  

Para os representantes da Ecocitrus ouvidos pela Beta Redação, ser agroecológico é uma filosofia de vida, é a certeza de poder receber um amigo, um familiar e ir ao pomar degustar uma fruta saudável sem gerar dano para o ambiente e para a saúde. “Eu já teria parado há muito tempo, certamente não seria mais agricultor se não fosse a agroecologia”, conta Schneider.  

Glossário

  • Citricultura: cultivo de frutas cítricas, como laranjas, bergamotas e limões.
  • Verticalização da produção: uma estratégia em que o produtor consegue assumir um papel de “faz tudo”, ficando menos dependente de terceiros.
  • Agrofloresta: modelo agrícola que associa a produção de alimentos com a preservação das florestas. Árvores são plantadas em meio à lavoura, ajudando na cobertura do solo e retenção da água, bem como redução de pragas.

Alana Schneider

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