RS tem quase quatro mil crianças acolhidas em abrigos, mas só 14% estão aptas para adoção 

A dificuldade de localizar o paradeiro dos genitores é um dos fatores que atrapalha o processo
No estado, a maioria das crianças disponíveis para adoção tem entre 14 a 16 anos (Foto: Luísa Bell)
No estado, a maioria das crianças disponíveis para adoção tem entre 14 a 16 anos (Foto: Luísa Bell)

Matéria produzida por Babi Bühler, Bárbara Neves, Eduarda Cidade e Luísa Bell

A lei brasileira prevê que quando crianças e adolescentes são retirados de suas residências por alguma quebra de vínculo familiar é porque alguns de seus direitos mais básicos foram violados. Através do Conselho Tutelar, elas são encaminhadas para uma instituição de acolhimento. A depender da violação que a criança sofreu, os familiares são proibidos de visitá-la. Nesse momento inicia-se a perda de vínculo com a família biológica e começa o processo de destituição do poder familiar que pode terminar com uma possível adoção, depois de diversas e longas etapas. 

Dados do Conselho Nacional de Justiça revelam que, no Rio Grande do Sul, a maioria das 539 crianças disponíveis para adoção estão na faixa etária entre 14 e mais 16 anos. Esses jovens tendem a ficar em casas de passagem por mais de três anos, enquanto crianças de até dois anos costumam permanecer nos abrigos por períodos mais curtos, não mais do que seis meses. 

Os dados são do Serviço Nacional de Acolhimento, e se referem ao mês de outubro.  (Infográfico: Eduarda Cidade)

Os dados são do Serviço Nacional de Acolhimento, e se referem ao mês de outubro.  (Infográfico: Eduarda Cidade) 

Segundo a juíza, do 2º juizado da Vara da Infância e da Juventude, Carmen Carolina Veiga Cabral, não existe um tempo definido para as crianças ficarem nos abrigos. Isso ocorre porque, em alguns casos, existe uma demora para encontrar os genitores do menor. Nesse caso, não é possível realizar as audiências de adoção sem a presença dos pais biológicos.

“O que acontece às vezes você demora para a localização dos genitores. Dizer assim para vocês, são pessoas que não têm paradeiro. Não estou criticando não é um julgamento sobre eles, mas dizendo o que acontece na maioria dos casos”, comenta. O processo de adoção tem um prazo de 120 dias. No entanto, na maioria dos casos, ele é mais demorado.  

Juíza do 2º juizado da Infância e da Juventude de Porto Alegre, Carmem Carolina, explicou os diversos fatores que levam a uma criança ficar em um abrigo/casa de acolhimento (Foto: Luísa Bell)

Juíza do 2º juizado da Infância e da Juventude de Porto Alegre, Carmen Carolina, explicou os diversos fatores que levam a uma criança ficar em um abrigo/casa de acolhimento (Foto: Luísa Bell)

Em Porto Alegre, a juíza Carmen atua na área da Infância e Juventude há 5 anos (área protetiva), mas iniciou na carreira em 1988. “Não tenho ideia de quantos processos já atuei. São 26 anos de magistratura. Então, posso dizer que inúmeros processos”, esclarece.  

Entre as suas atribuições está a de fazer audiências de instrução, escutando as partes do processo e as testemunhas. Também participa de audiências concentradas, nas quais se desloca até os abrigos na Zona Norte de Porto Alegre. Nessa circunstância, a juíza escuta as equipes técnicas, a rede de assistência e os demais envolvidos no processo (pais, avós, tios, parentes extensos), conforme o caso. Isso é feito para averiguar a possibilidade de a criança ou adolescente voltar ao convívio familiar. “Esgotada essa possibilidade, então, munida de laudo técnico, podemos colocar a criança ou adolescente em família substituta”, explica.

O tempo no processo de adoção  

Para o casal de Gravataí, Lucimar Quadros da Silva, de 59 anos, e com Rafael da Silva Gerhardt, de 49 anos, a espera pela adoção, demorou em torno de três anos e meio, isso somado a mais meio ano de espera da habilitação, ou seja, foram 4 anos até conseguir a adoção legal. O bancário e o dono de Salão de Beleza adotaram o seu filho, João Vitor, de 14 anos, quando ele tinha 3 meses e 20 dias

“O João Vitor não chegou a ficar muito tempo em um abrigo, porque ele foi entregue no fórum pela mãe e avó biológicas com três meses e como estava com bronquiolite, foi internado. Acreditamos que ele ficou apenas 20 dias na casa de passagem e depois veio para nós. No caso do João, como ele foi entregue para adoção, o processo de destituição familiar já foi assinado no fórum e depois só teve mais uma audiência, que era a chance para recorrer, mas ninguém apareceu. Mas nós participamos de tudo certinho e estávamos presentes”, relata Lucimar.  

Processo de adoção 

Em entrevista realizada por meio de aplicativo de conversa WhatsApp, a juíza Conceição Aparecida Canho Sampaio, que atua na  Vara de Juizado Regional da Infância e da Juventude da Comarca de Osório, ressaltou que uma das etapas para poder concluir essa habilitação é que este pretendente à adoção participe de um curso para adoção.

“Aqui em Osório nós fazemos este curso, algumas comarcas têm ONGs, que fazem esse curso para habilitação para adoção, como por exemplo a Elo, e neste curso a gente trabalha diversas dinâmicas. A gente inicia com a parte jurídica, explicando o que é adoção, todo o aspecto da destituição do Poder Familiar daquela criança, ou da entrega voluntária”, comenta.  

Quando a criança está apta para adoção, ela é inserida no Sistema Nacional de Adoção (SNA) e depois, acontece todo processo legal de adoção. Neste curso, também são efetuadas dinâmicas, para trabalhar o perfil que aquele pretendente intenciona e dinâmicas sociais. Depois desse curso, essa pessoa é habilitada para adoção.

“Nós temos normalmente trabalhado muito assim o perfil pretendido, porque eu observo algumas tendências de pessoas com mais idade querendo adotar bebês”, complementa.     

Processo para desvincular a criança da família biológica 

Além da destituição, a outros fatores que levam as crianças a permanecer nos abrigos. Conforme a juíza do 2º juizado da Infância e da Juventude, Carmen Carolina Veiga Cabral, questões como, por exemplo, vícios dos pais biológicos ou parentes, violência, casos de abusos, financeiras, entre outros. Em alguns casos, a criança quando é mais velha pode optar por não ser mais adotada.

“Também tem isso, às vezes a criança muda de ideia queria porque queria ser adotada. Ontem, um menino falou [na audiência]: eu não quero ser adotado”, esclarece. 

Segundo a psicóloga do Lar Esperança, Karen Rhoden, não existe idade mínima para criança decidir se quer ser adotada ou não, se ela já consegue se posicionar e falar o que sente é o que vale.

“Quando ela vai entrar na questão dos aplicativos de adoção, a equipe do Judiciário chama a equipe técnica junto dessa criança, para que ela seja ouvida e saber se ela quer ser adotada. Se ela pensa em ter uma família, se ela quer ser adotada de forma nacional ou internacional, se ela quer fazer um videozinho para o aplicativo, como é que ela quer fazer, tudo isso é questionado. A criança sempre tem voz nesse sentido” destaca. 

Com base nos números do dia 19/11, atualmente há 3783 crianças e adolescentes acolhidos no Rio Grande do Sul. Destes, 569 estão aptos para adoção, sendo que 219 já estão vinculados a pretendentes devidamente habilitados.  Os dados foram solicitados por meio do pedido de LAI (Lei de Acesso à Informação), ao SNA (Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento).  

Outros pontos que resultam   

Especialmente nos casos em que há tentativa de reintegração da criança à família biológica, esta pode ser uma questão bastante delicada, o que pode tornar o processo excessivamente prolongado, afastando as chances da adoção da criança que se encontra no sistema de acolhimento.  

Segundo a juíza Carmen, a demora ocorre em razão do processo de destituição do poder familiar. Muitas vezes, por conta do encaminhamento da criança/adolescente à família extensa (parentes próximos com vínculo de afinidade e afetividade), mas principalmente em razão do necessário cumprimento processual de esgotamento das possibilidades de citação pessoal dos genitores. Enquanto não esgotadas as tentativas, o processo não desenvolve e a criança/adolescente permanece em acolhimento institucional ou familiar.   

O 2º juizado da Infância e da Juventude de Porto Alegre, fica localizado no quinto andar do prédio 1 do Fórum Central da Capital (Foto: Luísa Bell)

O 2º juizado da Infância e da Juventude de Porto Alegre, fica localizado no quinto andar do prédio 1 do Fórum Central da Capital (Foto: Luísa Bell)

Conforme a Constituição Federal tem por regra a prioridade absoluta conferida as crianças e aos adolescentes e a Lei Nacional de Adoção (Lei nº 12.010/2009) trouxe avanços para acelerar o processo de adoção.

“Contudo, na prática, os desafios relacionados à reintegração familiar tornam o processo muito mais demorado do que deveria, uma vez que a legislação especial privilegia excessivamente o vínculo biológico ao considerar prioritária a família natural.”  

Quanto menor a criança, mais rápido ocorre o rompimento do vínculo com a família genitora 

Nesse mesmo sentido, a juíza da Vara da Infância de Porto Alegre afirma que quanto menor a criança mais rápido ocorre o rompimento do vínculo com a família genitora. Quando a criança fica um bom tempo em situação de acolhimento (familiar ou institucional) ela vai se desvinculando da família biológica. Assim, perdendo as memórias de convivência.  Contudo, a criança maior ou um adolescente este vínculo é mais firme. 

No abrigo Lar Esperança, atualmente se encontram 15 crianças morando lá (Foto: Luísa Bell)

No abrigo Lar Esperança, atualmente se encontram 15 crianças morando lá (Foto: Luísa Bell)

“Pode ser um vínculo positivo ou negativo, em que a criança guarda boas memórias da família de origem ou ruins. Isso também acontece. Aliás, boa parte das crianças em situação de acolhimento tem memórias ruins da família biológica, de omissão, de negligência, de abuso”, explica Conceição. 

Conforme a juíza, o rompimento do vínculo da criança com a sua família de sangue depende da idade da criança e da vida que é ofertada para ela, depois que ela é retirada da família biológica.

“Quanto maior a criança, mais longo é o período para desvincular. Mas quando essa criança é colocada já na família adotiva, em que ela recebe amor, cuidados, o rompimento do vínculo ele vai automaticamente acontecer, porque toda criança precisa de afeto. Esse vínculo vai se tornando uma mera lembrança que criança tem da família de origem”, ressalta. 

O importante papel das ONGS voltadas a causa da adoção 

Uma das fundadoras da ONG Amigos de Lucas, Rosi Prigol, ao lado do seu marido Gilberto Prigol, trabalham com um grupo de pessoas que tem interesse em adotar ou que estão em processo de adoção fazendo uma reunião mensal, sempre no primeiro fim de semana do mês, com o grupo na sede da Faculdade Dom Bosco.  

Durante a nossa participação na reunião que aconteceu no primeiro sábado de outubro (5/10), Rosi comentou sobre o processo de destituição do Poder Familiar.  

“Outro caso muitas vezes também são essas pessoas que são tão desprovidas de cultura e de entendimento que tratam os filhos como se fosse uma propriedade. Elas pensam ‘Eu tenho direitos então eu não vou admitir que ninguém fique com eles, eu prefiro que eles fiquem no abrigo do que eles vão para casa de alguém’. Então tem tudo isso para andar num processo, tem toda essa parte legal do processo que torna muito demorado e muito morosa a destituição do Poder familiar.” 

Rosi Prigol e seu marido, Gilberto Prigol, trabalham na ONG Amigos de Lucas com um grupo de pessoas que tem interesse em adotar ou que estão em processo de adoção (Foto: Rosi Prigol/ Arquivo Pessoal)

Rosi Prigol e seu marido, Gilberto Prigol, trabalham na ONG Amigos de Lucas com um grupo de pessoas que tem interesse em adotar ou que estão em processo de adoção (Foto: Rosi Prigol/ Arquivo Pessoal)

Rosi também enfatiza que durante o processo de adoção, a prioridade do poder judiciário é sempre o bem-estar da criança. 

“Tudo depende de o juiz entender o que é benéfico para criança, falamos no melhor interesse da criança e não do adulto, então sempre vai ser assim, tanto para a família biológica quanto para os adotantes. Por exemplo, a Sandra (integrante do grupo) está habilitada, eles não vão se preocupar em buscar uma criança pra Sandra, eles vão se preocupar em pegar uma mãe para uma criança que está precisando que pode ser a Sandra, entende? Então assim, a busca parte da criança para o adulto, não do adulto para criança, a prioridade do direito é a criança, não adulto, é a situação da adoção.” 

 Além disso, Rosi também falou sobre o fato das famílias interessadas em adotar irem atrás da família biológica, pois segundo ela essa prática é proibida por lei.

“Isso quem faz é o judiciário. Então não existe essa possibilidade, o que existe é depois da adoção finalizada, a possibilidade da criança ou adolescente que for adotada saiba da sua história e queira, de repente, retomar o contato com a família de origem”, explica.

Esse processo auxilia na resolução do problema. 

Processo de destituição familiar  

A administradora, de 62 anos, Elisabete Cristina Crucillo relata que os principais desafios enfrentados na época em que ela resolveu adotar uma criança foi a forma como foi encontrado seu filho, dentro de um orfanato. Nessa perspectiva, os pais biológicos ficaram sabendo do interesse na adoção e a mãe genitora ficou colocando empecilhos para assinar.

“Amorosidade da justiça contribuiu para que somente depois de obter a guarda com 11 anos, conseguíssemos resolver a adoção aos 17 anos”, destaca.  

O processo de adoção de seus dois filhos aconteceu de maneiras diferentes. No caso de sua filha, Maria, foi rápido. Contudo, o de Fábio foi mais demorado (Foto: Elisabete Crucillo/ Arquivo Pessoal)

O processo de adoção de seus dois filhos aconteceu de maneiras diferentes. No caso de sua filha, Maria, foi rápido. Contudo, o de Fábio foi mais demorado (Foto: Elisabete Crucillo/ Arquivo Pessoal)

Elisabete tem dois filhos adotivos: Fábio com 39 anos e Maria Luiza de 23. O processo de adoção de Maria ocorreu de forma rápida, em pouco tempo os pais conseguiram a certidão definitiva. Já no caso de Fabio, por conta da destituição familiar, o processo durou cerca de 6 anos.

“Cada caso é um caso, mas afirmo que no caso do meu filho a justiça não levou a sério sua vontade e tempo de convivência”, explica.  

Ela diz que a filha sofreu discriminação já na fila de espera.

“Fiquei sabendo por uma telefonista que 5 casais já tinham contato só não quiseram por ela ser negra. Como isto não interferia, no nosso caso, logo fomos ao encontro dela”, comenta.

No caso do filho, o casal já estava convivendo com ele. Em ambas as adoções, eles receberam visitas das assistentes sociais. 

No início de novembro, segundo a informação havia 851 crianças e adolescentes em processo de destituição do poder familiar, tramitando, registrados no SNA, no Rio Grande do Sul. A informação foi solicitada por meio do pedido de LAI (Lei de Acesso à Informação), ao SNA (Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento). 

Quer saber mais sobre o processo de adoção? 

A Coordenadoria da Infância e Juventude do RS, produziu um material com o passo a passo do processo de preparação para a adoção. Para ter acesso, basta clicar no link: Cartilha de Orientação da Coordenadoria da Infância e Juventude do RS. 

Como fizemos essa reportagem 

Esta reportagem foi realizada na disciplina de Jornalismo Investigativo do curso de Jornalismo da Universidade do Vale do Rio do Sinos – Unisinos, sob a supervisão da professora Luciana Kraemer, no segundo semestre de 2024. Ao longo da produção da reportagem foram feitos cinco pedidos de LAI, referentes a dados sobre: o número de crianças/adolescentes disponíveis para adoção; o número de crianças aguardando para serem adotadas e que já foram adotadas entre os anos 2010 e 2024; o número de pretendentes aguardando para adotar entre os anos 2010 e 2024; o número de crianças/adolescentes que foram devolvidas durante esse mesmo período. 

Os pedidos foram para os respectivos órgãos: Ministério Público Estadual, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Conselho Tutelar do Rio Grande do Sul, Defensoria pública do Rio Grande do Sul e ao Conselho Nacional de Justiça.  

Apenas o Conselho Nacional de Justiça atendeu o pedido e se propôs a tirar dúvidas e passar os dados pelo e-mail do suporte do SNA. O órgão passou quase todos os dados solicitados, o único dado não atendido foi: o número de crianças/adolescentes que foram devolvidas durante o período de 2010 a 2024.  

O CNJ respondeu dizendo: “Sobre a devolução, no momento, o Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ), unidade técnica deste Conselho Nacional de Justiça, está realizando uma pesquisa, no âmbito do Justiça Pesquisa, em parceria com a ABJ, para identificar as motivações das devoluções no Brasil. Faz parte do escopo da pesquisa definir melhor os parâmetros do SNA do que é considerado ‘reinserção’, tanto durante o estágio de convivência quanto após a adoção, a fim de evitar erros metodológicos na divulgação do dado. Assim, no momento, não temos os dados solicitados”. 

Babi Bühler

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