Matéria produzida por Babi Bühler, Bárbara Neves, Eduarda Cidade e Luísa Bell
São quase quatro mil crianças e adolescentes vivendo em abrigos ou com famílias acolhedoras, no estado. No entanto, apenas 14% desses jovens estão disponíveis para adoção. Os dados são do Serviço Nacional de Acolhimento, e se referem ao mês de outubro.
Um exemplo dessa realidade é o Lar Esperança, localizado na Zona Norte de Porto Alegre, que abriga 15 crianças, mas apenas 3 delas estão na fila de adoção. Uma destas crianças que chegou há pouco mais de um mês é um menino que chamaremos de Bruno. Um garoto inteligente, afetuoso, que ganhou o coração da equipe. Mas pode ser mesmo que Bruno esteja de passagem, como também são chamadas estas casas. A equipe do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) faz o acompanhamento do menino com a família biológica, pois o objetivo é que esta relação possa ser reconstruída.
A opinião não é compartilhada pela assistente social do Lar Patrícia Camargo, tampouco pela psicóloga Karen Rhoden. Elas argumentam que após acompanhar diversas vezes a sua família, não acreditam que ela consiga superar suas fragilidades. O processo está em curso desde os primeiros meses de vida do menino. Apesar de discordarem com a opinião do CREAS, as profissionais do Lar respeitam a argumentação deles.
“Durante o processo de adoção é preciso passar pela destituição do poder familiar, só que anterior a isso, no primeiro momento a gente pensa assim ‘nossa, tem que fazer esse movimento de distribuição logo para que as crianças tenham a oportunidade de uma nova família’, mas, no entanto, tem uma outra questão humana que a gente precisa levar em consideração que é o afeto que as crianças têm pela família biológica e o desejo de retornar para esse âmbito familiar”, explica a psicóloga.
Ela reconhece que é uma questão polêmica, pois ao mesmo tempo em que junto com os profissionais do abrigo busca ser ágil para facilitar a adoção das crianças, é necessário também reconhecer os afetos e o amor incondicional — apesar das dificuldades enfrentadas — que elas ainda nutrem por suas famílias biológicas.
As famílias biológicas buscam ajuda através do Centro de Referência de Assistência Social – CRAS e do Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS para superar suas vulnerabilidades. Karen destacou que há muitos casos de sucesso com as crianças voltando para a sua família biológica e que esse é um passo importante que muitas vezes antecede o processo de destituição do poder familiar.
O desafio de fazer a reaproximação nos casos de abuso
No caso da adolescente que chamaremos de Júlia*, foram anos de tentativa da mãe, de trazê-la de volta para a casa, mas tanto os profissionais de psicologia e assistência social do abrigo quanto os do Judiciário, concluiriam que isso não era mais possível. O motivo é a saúde mental da mãe que expôs a filha a um abuso sexual cometido por um familiar. O processo durou quase quatro anos, nesse período Júlia* seguiu no abrigo. A adolescente ainda deseja se reaproximar da mãe. Cabe aos profissionais do Lar Esperança explicar que a fragilidade da mãe a impede de retomar essa convivência. Inicialmente o Judiciário não queria permitir o encontro das duas, mas os profissionais do Abrigo conseguiram, em uma audiência, promover a despedida entre elas.
A juíza da Vara da Infância e da Juventude, de Porto Alegre (RS), Carmen Carolina Veiga Cabral ressalta a importância de ter um cuidado com essas crianças que passaram por situações difíceis.
“A gente tem que respeitar o tempo dessas crianças, que vem de uma violação de direitos muito grande. Imagina como fica uma criança ou adolescente abusado sexualmente.”
Júlia* agora está destituída, Karen explica que ela chegou ao acolhimento com 12 anos, uma idade já difícil para o processo de adoção. Agora ela está com 15. A psicóloga reforça que nenhum caso é igual a outro e que é preciso levar em consideração o processo de cada família para chegar a uma solução justa para a criança e seus familiares.
A burocracia também reduz as chances de crianças serem adotadas mais cedo
Para a Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões, Maria Berenice Dias, a burocracia para adotar é perversa, devido ao fato de existirem milhares de crianças literalmente depositadas em abrigos durante muitos anos. Além disso, há uma busca incansável e equivocada de manter as crianças com a sua família biológica ou com algum parente.
“Enfim, demora anos, enquanto isso as crianças vão crescendo e a partir dos 12 anos é difícil uma criança ser adotada. Então, assim, nós precisamos é mudar esta dinâmica”, esclarece a Vice-presidente Nacional do Instituo Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
Mas para a psicóloga do abrigo, Karen Rhoden, a volta para a família biológica se dá quando ela consegue superar suas vulnerabilidades, que podem ser questões financeiras, violência física ou sexual, e que a volta ao lar de origem é mais comum do que a destituição. Destituir é a última instância, quando há uma fragilidade que não consegue ser superada.
O nome Lar Esperança parece ser adequado ao espaço que visitamos. Um local distante da ideia de perda de direitos básicos, hostil e sem vida, como parecer ser o estereótipo de muitos abrigos infantis. O espaço é grande, lúdico e repleto de natureza. No local, além do abrigo para crianças em situação de destituição familiar e aptas para adoção, há também atividades para crianças realizarem no turno inverso da escola e uma escola de educação infantil.
Famílias podem levar anos até conseguir a guarda definitiva
A bancária Lúcia Tuchtenhagen (60 anos), e o funcionário público estadual, Marcio Mendonça da Silva (59 anos), moradores de Porto Alegre, resolveram adotar a filha Veri quando ela tinha 4 anos e 5 meses, idade em que ela já foi morar com o casal. Entretanto, o processo de adoção foi concluído quando ela tinha 9 anos e 10 meses. Hoje, Veri tem 10 anos e 6 meses.
“Recebemos a guarda para fins de adoção em agosto de 2018, mas a conclusão da adoção ocorreu em dezembro de 2023, porque nossa filha não tinha a destituição finalizada”, explica.
Luciana destaca que os principais desafios enfrentados durante o processo da adoção foi a desorganização da instituição onde a sua filha estava abrigada, juntamente com a ineficiência da equipe do judiciário.
“Fomos quase todos os dias ao abrigo, porque a partir do momento que conhecemos ela, já era nossa filha. Não queríamos ficar sem saber como ela estava. Após várias idas e vindas, durante o expediente de trabalho e atravessando a cidade, tendo muito desencontros, fomos questionados sobre o nosso real interesse em adotar, o que não nos deixou muito abalados. Nesse meio tempo, a juíza que estava com o nosso caso pediu afastamento e atrasou um pouco mais a vinda da nossa filha para casa.”
O processo de adoção no Brasil é regido pela Lei nº 13.509/2017 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que busca sempre garantir o melhor interesse da criança ou adolescente que está sendo adotado.
Lucimar Quadros da Silva, de 59 anos, bancário e morador de Gravataí, casado com Rafael da Silva Gerhardt, de 49 anos, dono de um salão de beleza, também passou por um processo de adoção.
A decisão de adotar surgiu a partir do desejo de aumentar a família e da aproximação com casas de passagem através de doações. João Vitor foi adotado quando ele tinha 3 meses e 20 dias. Hoje tem 14 anos. A espera pela adoção foi de três anos e meio, isso somado a mais meio ano de espera da habilitação, ou seja, foram 4 anos até conseguir a adoção legal.
“O João Vitor não chegou a ficar muito tempo em um abrigo, porque ele foi entregue no fórum pela mãe e avó biológicas com três meses e como estava com bronquiolite, foi internado. Acreditamos que ele ficou apenas 20 dias na casa de passagem e depois veio para nós. No caso do João, como ele foi entregue para adoção pela mãe, o processo de destituição familiar já foi assinado no fórum e depois só teve mais uma audiência, que era a chance para recorrer, mas ninguém apareceu. Contudo, nós participamos de tudo certinho e estávamos presentes”, relata Lucimar.
Rafael destaca que, apesar da espera de três anos para a adoção, ele e seu parceiro não consideram esse período tão longo, quando comparado a outros casos de adoção. O casal optou por preencher o formulário de interesse com critérios flexíveis, solicitando apenas uma criança com até cinco anos e sem doenças incuráveis. Ele observa que, dependendo das preferências expressas no formulário pelos pretendentes, como idade, condições de saúde ou outras especificidades, o tempo de espera pode passar de três anos.
“Se o pretendente colocar que não quer uma criança com doenças nem tratáveis, tira a possibilidade de crianças que não estiverem 100% saudáveis na fila. Como o João, na época, estava com bronquiolite, foi tratado e melhorou. Caso a gente tivesse preenchido isso, ele não teria vindo para nós. Inclusive, se a criança tiver com otite, ela não vai estar saudável e não vai ser indicada, caso o pretendente não queira crianças com problemas tratáveis. Por isso, é preciso ter o cuidado de não colocar que só aceita crianças saudáveis”, informa Rafael.
Para Lucimar, mesmo com motivações legais, nem sempre as famílias aceitam a perda da guarda do menor por interesse nos benefícios sociais concedidos a elas.
“Já vimos casos em grupos de adoção que o parente que aceita cuidar da criança não faz por vontade genuína, mas pelo auxílio financeiro ou benefícios, como cestas básicas, e essas crianças retornam à casa de passagem com ferimentos e traumas”.
Recorte da adoção no estado
De acordo com os dados presentes no Painel de controle de adoção no BR realizado pelo Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento em parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o qual é atualizado diariamente. No Rio Grande do Sul, cerca de 3.822 crianças e adolescentes estão acolhidos em casas de passagem ou por famílias acolhedoras, mas apenas 567 estão disponíveis para adoção, o que é um número muito abaixo para o número de pretendes aptos a adotar que são 3.562.
Confira a parte dois da matéria aqui.