A tragédia climática de maio deste ano causou um grande impacto no comércio do Rio Grande do Sul, e ainda deixa consequências no setor econômico. Dados divulgados pelo boletim econômico-tributário da Receita Estadual apontam que, em junho, cerca de 3 em cada 10 estabelecimentos que foram inundados seguem operando em níveis abaixo da normalidade.
A Federação do Comércio de Bens e de Serviços do Estado do Rio Grande do Sul (Fecomércio-RS) tem atuado ativamente na retomada desses negócios, com medidas como a divulgação de boletins sobre os impactos da tragédia e pressionando as esferas estaduais e federais pelo restabelecimento do PL 3117/2024, que retoma o Pronampe, programa de crédito emergencial para empresas atingidas, aprovado no Congresso Nacional no dia 18 de setembro.
A entidade, que representa empresas dos setores de comércio de bens, serviços e turismo, responsável por 47,5% do PIB do Rio Grande do Sul, desempenha um papel fundamental na economia estadual. Em entrevista à Beta Redação, o empresário e presidente do Sistema Fecomércio/Sesc/Senac-RS, Luiz Carlos Bohn, discute os impactos econômicos provocados pelas enchentes que devastaram a região em 2024, além das perspectivas para o comércio gaúcho no período pós-crise.
Como você avalia o impacto das enchentes de maio no comércio gaúcho, especialmente nas pequenas e médias empresas?
As enchentes tiveram por característica a heterogeneidade de impactos. Os municípios foram atingidos em intensidades diferentes. Dentro dos municípios, há impactos distintos entre os bairros. E mesmo dentro dos bairros, há diferenças entre os atingidos. O que se pode dizer é que a tragédia natural foi um fenômeno urbano, com efeitos muito significativos entre os setores da indústria e dos serviços, incluindo aí o comércio. No entanto, mesmo dentro do comércio, o impacto foi muito diferenciado. No ápice do problema, as atividades de hiper e supermercados, bem como de venda de medicamentos e postos de combustíveis, conseguiram se expandir, enquanto outras atividades amargaram perdas significativas. Nos meses seguintes, observou-se um processo de recuperação intenso, estimulado pela injeção de recursos na economia e necessidade de consumo imediata.
De maneira geral, situações como a que enfrentamos recentemente sempre são mais difíceis para pequenas e médias empresas, mas em especial para as pequenas. Nesse caso, muitas vezes a organização gerencial é mais baixa, não há reservas e o acesso a crédito é muito mais limitado.
De que forma o Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac trabalhou para garantir o apoio emergencial às empresas afetadas pelas enchentes e mitigar os efeitos econômicos gerados pela tragédia climática?
Desde o início das enchentes, acompanhamos de perto os impactos sofridos e identificamos que eles seriam muito severos, não apenas do ponto de vista humano, mas também econômicos, afetando direta ou indiretamente as empresas do comércio de bens, serviços e turismo. Dezenas de milhares de empresas tiveram perdas patrimoniais e muitas outras tiveram perdas devido à queda de receitas ou aumento de custos.
Em primeiro lugar, o sistema prestou ajuda direta às famílias, por meio da manutenção de abrigos, recolhimento e entrega de doações no âmbito do Programa Mesa Brasil, e, ultimamente, com custeio da construção dos Centros Humanitários de Acolhimento.
O Mesa Brasil arrecadou mais de R$ 2 milhões. O montante está sendo aplicado na aquisição de alimentos e também na recuperação de eletrodomésticos, como fogões e geladeiras, que tenham sido avariados pelas cheias em instituições assistenciais cadastradas no programa.
A Unidade Sesc Protásio Alves, por exemplo, desde o início da tragédia, abrigou os atingidos oferecendo refeições, atendimentos médicos, psicológicos e medicações e espaço para acolher pets. No período, colaboradores do Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac de todo o estado atuaram como voluntários na estrutura que chegou a atender 310 pessoas. Além disso, todas as unidades Sesc, Senac e sindicatos filiados foram ponto de coleta de doações e promoveram diversas ações, como entrega de máquinas de lavar e secar para os abrigos, produção de refeições, exames de acuidade visual e fornecimento de óculos para as pessoas que perderam, assim como todo o apoio financeiro e material de entidades do Sistema Comércio para a manutenção das estruturas provisórias. Outros destaques foram os projetos Comércio Solidário e Mobília Solidária.
Além disso, o Sistema também prestou auxílio direto às empresas do setor. Neste sentido, destaco os programas de doação de cestas básicas para funcionários de empresas do comércio e de mobília para as empresas. Por fim, mas não menos importante, está nossa atuação dentro do que é nossa vocação, que é o estudo, a organização e canalização de demandas ao poder público, solicitando medidas de atenuação dos impactos e auxílio às empresas.
O que motivou a criação do Projeto de Lei 3117/2024 e quais foram os principais desafios enfrentados até sua aprovação?
Diante dos desafios burocráticos enfrentados para contratações emergenciais no cenário de enfrentamento das enchentes ocorridas no Rio Grande do Sul, foi editada a Medida Provisória nº 1.221/2024, que criou um regime excepcional para compras e contratações de obras e serviços em situações de calamidade pública. Frente aos diversos desafios do Congresso Nacional, que tem suas atividades reduzidas em ano eleitoral, a MP 1.221 corria risco de perder vigência por falta de votação. Neste cenário o PL nº 3.117 de 2024 foi apresentado como um substituto para a MP 1.221. Durante a tramitação do projeto, a MP 12.16/2024, que versava sobre o Pronampe solidário, chegou ao fim de seu prazo de vigência, razão que levou à busca de emendas ao PL 3.117 para que também contemplasse os dispositivos da MP do Pronampe. Apesar de se tratar de matéria extremamente urgente e relevante, o PL 3.117 não estava no rol de projetos que seriam apreciados no chamado “esforço concentrado”, sessões convocadas entre agosto e setembro para compensar a parada para as eleições. Findas as sessões previamente agendadas, buscamos pressionar a presidência da Câmara dos Deputados juntamente com a bancada gaúcha para que fosse convocada uma sessão extraordinária a fim de apreciar o PL 3.117/2024, fomos bem-sucedidos em sensibilizar o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP), e tivemos a sessão convocada para o dia 18 de setembro, onde o projeto foi aprovado.
Como o Pronampe pode ajudar as empresas atingidas pelas enchentes a se reerguerem financeiramente?
Além de ofertar crédito com subvenção de 40%, o Pronampe dispõe de prazo de carência de até dois anos e prazo de pagamento de 60 meses [5 anos]. A concessão de crédito subsidiado, com condições facilitadas de pagamento, é fundamental para garantir a sobrevivência dos pequenos negócios. Muitos deles foram totalmente atingidos pela enchente, ficando impossibilitados de operar por semanas ou até mesmo meses. Além das perdas materiais, como danos ao imóvel, mobiliário e estoque de produtos, há perdas relacionadas à interrupção do fluxo de caixa, considerando que esses empreendimentos necessitaram ficar fechados por tempo significativo. Portanto, a concessão de crédito é vital para garantir que esses negócios continuem existindo. Sem fonte de recursos, os prejuízos para as empresas e, consequentemente, à economia gaúcha, seriam significativamente maiores. Dada a sua importância para a reconstrução das empresas, defendemos a ampliação do Pronampe e a remoção de empecilhos burocráticos, como a exigência da CND [Certidão Negativa de Débito].
Quais são as perspectivas econômicas para o comércio gaúcho a curto e médio prazo, considerando os efeitos das enchentes e o cenário econômico atual?
No curto prazo, há um processo de recuperação na economia gaúcha derivado do impulso gerado pela combinação de transferências, antecipações e disponibilizações de recursos financeiros e a necessidade de consumo imediato. Entre os setores da economia, o comércio tende a ser muito favorecido neste momento. Entretanto, é pouco provável que o ritmo observado recentemente continuará o mesmo, porém ainda não se sabe qual o tamanho da desaceleração que deveremos observar. Por mais que o mercado de trabalho esteja em recuperação, ainda temos 13.424 vínculos formais a menos do que tínhamos antes das enchentes, o nível de endividamento das famílias aumentou e muito capital foi destruído. Tudo isso tende a repercutir no consumo das famílias e, consequentemente, na dinâmica do comércio.
O térreo da sede da Fecomércio-RS foi afetado pelas águas das enchentes. Como foi e está sendo a retomada?
A retomada da totalidade das atividades está prevista para o mês de outubro, mas desde o início das enchentes nossos colaboradores tiveram todo o suporte necessário e, atualmente, estamos operando em outras unidades Sesc e Senac, em Porto Alegre, além do home office. As estruturas que estavam localizadas na parte térrea foram afetadas e, desde a drenagem de toda água, temos equipes de trabalho atuando pra a recuperação dos espaços danificados.
Por fim, quais lições a crise das enchentes trouxe para o comércio gaúcho em termos de resiliência e gestão de risco?
Mais uma vez estivemos diante do fato de que o improvável é diferente do impossível. Nesse sentido, preparar-se para situações, ainda que improváveis, mas que possam gerar grandes perdas, deve estar entre as decisões de alocação de recursos do empresariado. Nesse sentido, contratar seguros, fazer reservas de caixa, manter-se adimplente com o fisco e com fornecedores, bem como ter um nível adequado de alavancagem são elementos que podem ajudar a passar por momentos de dificuldade com menos dor.