Jessica, a tradutora intercultural de acolhimento

Entre idas e vindas pela América Latina, mediadora encontrou um novo começo, no Brasil, auxiliando imigrantes no acesso à rede de saúde de Porto Alegre

Ainda não são 8 horas da manhã. O vai e vem de pacientes na Unidade de Saúde Ramos, zona norte de Porto Alegre, indica uma quinta-feira de muito trabalho. “Próximo, número 56”, chama a enfermeira.

É ali, no bairro Santa Rosa de Lima, o primeiro compromisso da mediadora intercultural Jessica Morales, que acompanhará Zoila na consulta da filha, auxiliando na comunicação da venezuelana com os profissionais de saúde.

À primeira vista, ela parece ser apenas uma tradutora para imigrantes. Mas poucos minutos de observação revelam que a mediadora desempenha um papel muito maior: o de acolher e orientar, sendo um pouco amiga e família. Uma relação que preenche vazios de quem atende e é atendido. “Porque como mediador tu te identificas por ser migrante também.”

Três países em sete anos

A Jessica é guria de interior. Filha de mãe venezuelana e pai colombiano, é a mais nova “e rebelde” de cinco irmãos. Nasceu em El Tigre, – distante 450 quilômetros da capital Caracas –, uma cidade de praias e fazendas com cerca de 140 mil habitantes, onde “a vida era alegre e quente.”

Das coisas mais fabulosas da infância, visitar os avós em Zuata, montar a cavalo e participar da festa de toros coleados – algo similar ao rodeio gaúcho – são as que mais deixam saudade. Fazem os olhos encher d’água ao lembrar dos tempos de outrora.

Como tantos outros jovens, o sonho profissional levou Jessica à cidade grande, Caracas. Sem praias, fazendas e toros, mudou até o jeito de falar. A meta era cursar Administração de Empresas, mas a gravidez não programada, aos 20 anos, exigiu uma pausa na carreira ainda no quarto semestre.

Foi neste período que a jovem buscou à Igreja e se encontrou com Deus. Uma forma de preencher a solidão de quem morava longe da família.

Mais madura e com o marido farmacêutico, viu aflorar o gosto pela área da saúde. Fez técnico em Farmácia, Paramédico, Laboratório e Enfermagem, acumulando experiências na área estética, dermatológica e geriátrica.

Muito diploma e muito emprego, pois na atual situação da Venezuela, um só já não era suficiente. Jessica se desdobrava em três. “Nós precisávamos tomar uma decisão pela nossa família, porque estava insustentável.”

Mãe de três filhas, Jessica tem formação na área da saúde e atua como mediadora desde 2024 – NICOLAS CÓRDOVA/BETA REDAÇÃO

Uma oportunidade de emprego e a promessa de melhor remuneração levaram a família à Colômbia, em 2018. Pouco mais de um ano depois, outro convite, desta vez ao Peru.

No país andino, a preocupação deixou de ser o emprego, e sim a falta de documentação das filhas mais novas. Então com 11 e 12 anos, tinham somente a certidão de nascimento, um documento não reconhecido no Peru. “Eu imaginava como ia ser no futuro para elas entrarem numa universidade.”

Na Venezuela é preciso ter no mínimo nove anos para emissão de um RG. Já no Peru, só após oito anos de moradia. O tempo não estava a favor de Jessica.

É nesse cenário que o Brasil vira opção. Pesava a favor o fato de duas irmãs já morarem no país. O receio mesmo era o idioma. “Tomamos a decisão por causa da documentação e porque víamos um país estável financeiramente e mais seguro.” No Peru, ficou somente a filha mais velha para terminar os estudos. O restante da família juntou mala e cuia.

Mas sem documentos, sem avião. A viagem para as terras gaúchas foi uma peregrinação sobre rodas. Oito dias de ônibus, seis ou sete veículos – Jessica até perdeu a conta. Do Acre a Porto Alegre, mais de 4.090 quilômetros. E tem quem reclame de ir até Bagé.

O abraço do Brasil

A mediadora é daquelas de sorriso de orelha a orelha. Libriana, de corpo alto e esguio, tem o olhar meigo e o jeito tímido e reservado de quem ainda se adapta ao novo país.

Nas malas, trouxe as lembranças. No peito, a tristeza e a saudade de quem ficou. Há o alívio de ver as filhas enturmadas e uma esperança pelo que virá.

Por aqui, teve o importante apoio da irmã, mas deu logo um jeito de arrumar emprego e casa. Em 15 dias, já trabalhava de caixa em um supermercado. Durou pouco tempo, o suficiente para cabeça dar um nó e ainda sofrer uma labirintite. Acrescenta-se, aqui, a enchente.

“Estudei tanto para ser caixa? Foi um impacto para mim, fiquei deprimida. Meu marido era mais valente e continuou. Eu estava agradecida a Deus, mas não podia ficar ali.”

Pesou, na saída, outro episódio, de desrespeito e preconceito. “Se não sabe falar português, porque está aqui?”, ouviu de um cliente.

O idioma era o maior medo na vinda ao Brasil e hoje é o principal instrumento de trabalho – NICOLAS CÓRDOVA/ BETA REDAÇÃO

Mas Jessica é mulher de fé e de fibra.

Em poucas semanas, por indicação do Centro Ítalo-Brasileiro de Assistência e Instrução às Migrações – CIBAI, se inscreveu numa vaga de cuidadora de idosos do Hospital São Pedro. O olho brilhou: era a oportunidade de atuar na área, aprender novas palavras e técnicas. Por lá ficou cerca de dois meses, pois a labirintite e outros problemas na coluna a impediram de dar 100%. “Mas eu persistia, precisava de outra coisa”.

Novo telefonema do CIBAI e mais uma indicação: desta vez, para mediadora intercultural. Não era exigido diploma, só ser venezuelano – nacionalidade da vaga –, falar português e, especialmente, ter a disposição de trabalhar na perspectiva da interculturalidade, integrando a cultura do migrante à política de saúde do Brasil. “Fiz a entrevista e passei.”

O projeto dos mediadores, em Porto Alegre, nasceu em 2021 e conta, atualmente, com quatro profissionais – dois haitianos, uma senegalesa e a venezuelana. Estes são responsáveis por atender toda a rede de atenção à saúde, desde as unidades até os hospitais. Só em 2024, foram cerca de 162 atendimentos mensais, conforme Relatório de Gestão da Secretaria de Saúde.

“Nós fazemos um treinamento, mas é o dia a dia que ensina. A gente estuda como funciona o SUS, como são os acolhimentos, como é o pronto atendimento, como funcionam as especialidades. E acho que ter um pouco de conhecimento na área da saúde, ajuda a avançar mais rápido”. Todo o trabalho tem a assistência da Área Técnica de Saúde do Imigrante.

O serviço de mediador foi classificado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), este ano, entre as ocupações formais do mercado de trabalho, recebendo o código 5153-35. Uma vitória e um reconhecimento nacional a importância desses profissionais e que permitiu à Jessica substituir o “Tradutor” que até então aparecia na carteira de trabalho.

Entendido o projeto, hora de voltar à recepção da Unidade de Saúde Ramos, na zona norte. O primeiro compromisso do dia está concluído, Jessica troca apenas as últimas palavras com Zoila, a quem acompanha há mais de ano.

Passam das 8h30 e a próxima parada é o Centro de Saúde Santa Marta, zona central, base dos mediadores interculturais. O carro da Secretaria já está à espera, no volante, Júnior aguarda pela colega, que continua seu trabalho no banco de trás. Ela também atende remoto, não dá para parar. Envia mensagens e manda áudios, pergunta se a consulta foi remarcada e quer saber como a migrante está.

A demanda é alta. No último ano, a população venezuelana superou a de haitianos. Não se tem um número exato, mas a Prefeitura Municipal estima cerca de 35 mil. São os próprios migrantes que podem fazer contato com a Jessica, mas as demandas chegam também pela rede de saúde.

Migrante precisa de rede de apoio, a começar pelo próprio mediador.  

Jessica sonha em poder retornar à Venezuela, mas sabe que no momento é impossível – NICOLAS CÓRDOVA/BETA REDAÇÃO

Em agosto, a venezuelana completa um ano na função. Se sente feliz e de coração mais leve. Encontrou uma realização profissional e um jeito de ajudar a “encher esse vazio e a solidão que tem o migrante”. É um pouco mediadora, um pouco filha, irmã e amiga. No mundo ideal, gostaria de exercer a função no país de origem, mas sabe que não é possível. Se Nicolás Maduro cair, talvez.

“Sinto que dentro de mim eu gostaria de voltar, mas sei que vai demorar muitos anos e eu bloqueei no meu coração, isso não vai acontecer. Por enquanto você tem que abraçar e amar o Brasil e é o que nós estamos fazendo como família.”

Chimarrão ela ainda não experimentou – “não sou de provar coisas novas” –, mas o churrasco é garantido, porque carne sempre foi uma das comidas favoritas. Os hobbies são poucos. Nem TV, nem leitura, aproveita o tempo livre para orar e repor as energias.

O idioma ainda gera medo, mas a cada dia de trabalho e a cada nova conversa, cresce a confiança. E, na hora da inquietude, tem na família e em Deus sua força. Agradece desde já a vinda da mãe, que em julho morará com ela. Aos poucos, Jessica sente o conforto e o abraço do Brasil.

1 Comment

  • Obrigado Deus, Obrigado Brasil estou muito Feliz por sua mão Amiga Espero dar cada dia melhores cosas boa para Porto Alegre. Hermoso Reportagem Adorei, Venezuela Os Buenos Somos Mas.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Leia também