Atingido pela enchente, movimento na capital completa seis meses e se reergue a partir da união dos moradores
Ocupado desde o dia 15 de dezembro de 2023, o antigo prédio do Ministério Público, edifício Protetora, estava abandonado desde 2018. A construção, que fica na esquina da avenida Júlio de Castilhos com a praça Rui Barbosa, possui 17 andares. Destes, quatro estão ocupados pelo movimento União por Moradia Popular (UNMP) com a ocupação chamada Periferia no Centro.
Liderada de maneira coletiva, a ocupação conta com 126 famílias e 200 pessoas cadastradas. Atualmente, apenas 40 famílias estão morando no local, totalizando um número de 70 a 80 moradores, devido às condições precárias de acesso à energia elétrica. A maior parte dos habitantes são gaúchos, contando também com venezuelanos, senegaleses e brasileiros de outros estados.
A ocupação se comunica com a Superintendência do Patrimônio da União (SPU), visto que o edifício é patrimônio federal, para garantir a continuidade da moradia. Em 2022 o imóvel chegou a participar de um leilão do governo federal, mas não foi comprado e, segundo o jornal O Globo, o edifício está entre os 500 imóveis a serem destinados à habitação. Neste cenário, os bens da União são repassados às prefeituras, que então planejam e executam os projetos de moradia. A Beta Redação entrou em contato com o órgão, mas não obteve resposta sobre a ocupação Periferia no Centro.
A secretária de habitação de Porto Alegre, Simone Somensi, que ocupa o cargo desde o dia 8 de março deste ano, afirma que o projeto não é de conhecimento da pasta. “A prefeitura não recebe área ocupada, não receberíamos esse imóvel”, afirma, quando questionada sobre a possibilidade de efetivação da proposta. E completa: “Se uma pessoa estranha invade a tua casa, tu vais proteger a tua propriedade. O município tem o mesmo dever. Possivelmente entraríamos com uma reintegração de posse”, assegura a secretária quando indagada a respeito do que aconteceria caso o prédio já pertencesse à prefeitura.
A secretária ainda cita que o edifício está inscrito no programa de retrofit do Minha Casa Minha Vida Entidades, que adapta imóveis antigos para habitações. Vale ressaltar que o prédio foi construído em 1950 para ser um condomínio residencial, já foi sede da Justiça Federal e, entre 1997 e 2018, foi onde o Ministério Público Federal se estabeleceu. A propriedade estava vazia desde então, com sinais de abandono e apenas alguns seguranças trabalhando no local.
Os impactos da enchente e o protagonismo feminino
Mesmo com o cenário de insegurança, o clima na ocupação Periferia no Centro é de união e esperança. Envolvidos na limpeza do prédio, que foi atingido pelas enchentes de maio, os moradores e apoiadores se dedicaram em um mutirão para retirar a lama que se instalou no espaço térreo da construção. No almoço, todos se deslocam até o refeitório, que está situado no segundo andar e é composto por uma mesa e dois bancos grandes de madeira. No dia 22 de junho, quando a reportagem da Beta Redação visitou a ocupação, o cardápio foi arroz, feijão e carne de porco servidos em panelas grandes para atender a todos os presentes. Para a surpresa de muitos, um dos moradores preparou um bolo de chocolate para cantar parabéns à Sílvia, uma das moradoras, que se emocionou com a demonstração de carinho.
Sílvia Cristina, 51 anos, é paraense e faz parte da liderança da Periferia no Centro. Casada com um gaúcho, ela se dedica à causa da moradia popular desde os 22 anos e residiu em alguns estados representando diferentes movimentos. Sílvia defende a ideia de transformar o edifício em um grande espaço de moradia popular. “Estamos aqui para mostrar à sociedade que existem muitos prédios públicos abandonados, sem nenhuma utilidade e milhares de famílias morando de favor ou em abrigos. Precisamos dar um objetivo para esses imóveis”, explica.
O protagonismo feminino é um objetivo na ocupação Periferia no Centro, levando em consideração que elas são maioria entre os residentes. Sílvia conta sobre a importância de dar voz e valorizar a diversidade. “Trabalhamos o papel das mulheres como lideranças na sociedade”, enfatiza. Como parte da liderança, ela foi uma entre outros cinco moradores a permanecerem durante a enchente. “Fiquei com mais cinco companheiros por mais de duas semanas para mantermos a vigilância do prédio”, conta. Sílvia ainda relata que essa é uma missão da União por Moradia Popular. “Nosso objetivo é formar lideranças femininas dentro do movimento”, explica.
Jurema Alves, de 43 anos, é a representante local do movimento, e se apresenta como “educadora social, mulher periférica e formada em educação física”. Com orgulho do local que ocupa, ela conta que sempre trabalhou com o esporte como um meio de intervenção social. Atuante há mais de 20 anos nas lutas sociais, como o direito à moradia e os direitos das mulheres, ela define as políticas públicas como fragilizadas. “Uma sociedade onde vemos muitas violações de direitos cometidas pelo estado”, relata. Questionada pela Beta Redação sobre o futuro da ocupação Periferia no Centro, ela afirma: “não queremos que o nosso povo siga morando em ocupações, queremos que o direito de morar seja garantido pelos poderes e que a promessa de governo seja cumprida”.
Janaina Oliveira, de 44 anos, moradora da ocupação, também foi convidada a fazer parte da liderança. Antes de chegar ao edifício Protetora, ela morava em uma área de risco. A cada chuva, sua casa era invadida pela água que escorria de uma ribanceira. Com o sonho da casa própria, Janaina almeja essa conquista. “Eu luto por moradia desde os meus 14 anos, quando a minha mãe faleceu. Até hoje não tive a oportunidade de dizer que eu tenho uma casa”, lamenta. Janaina trabalhou por anos com reciclagem e já foi militante do Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST). Ela participou de algumas ocupações ao lado do movimento e, de maneira independente, criou ocupações temporárias com a família, devido à falta de moradia.
O movimento também está presente em outros estados, e seus membros gaúchos seguem engajados em cozinhas comunitárias, preparando refeições para pessoas em vulnerabilidade social e vítimas das enchentes. Alguns voluntários são residentes da ocupação Periferia no Centro e revezam suas atividades com o momento de ajudar o próximo. Independente das dificuldades encontradas, a união mostra resistência.