Eleita aos 43 anos como a quinta vereadora mais votada de Porto Alegre, Grazi Oliveira (PSOL) chegou à Câmara com mais de 14 mil votos e uma trajetória marcada pelo compromisso com a educação e a luta antirracista. Professora da rede pública e pesquisadora da UFRGS, onde é doutoranda em Educação, ela é reconhecida por sua atuação nas discussões sobre relações raciais e já publicou um livro sobre o tema.
Nascida na periferia da capital, na Cohab Cavalhada, ela traz para o mandato a experiência de quem constrói a política a partir da base. Antes de assumir o cargo, atuou com o deputado estadual Matheus Gomes, articulando iniciativas voltadas à população negra e trabalhadora. Durante as enchentes que atingiram o estado em maio de 2024, Grazi teve atuação destacada nas ações emergenciais de apoio às comunidades, reforçando sua presença nas ruas e nos territórios.
Na entrevista a seguir, ela fala sobre o início da atuação parlamentar e os desafios de transformar pautas históricas em políticas públicas.
O que te motivou a ir para a política?
Foi viver num espaço onde há ausência de políticas públicas, ausência do Estado. Um lugar onde a perspectiva de vida era muito baixa, era muito pouca. Vendo que, quando as condições de vida existiam, eram em posições subalternas, sempre a servir. Nunca foi a posição para tomar decisões, fazer escolhas ou apresentar as demandas e dificuldades. Enquanto mulher negra e periférica, sabemos bem que é muito difícil ocuparmos os espaços de poder. E, quando ocupamos, a gente percebe que há uma mudança – mesmo que simbólica – porque entendemos que tudo é muito a passos de formiguinha. A gente entende que é possível fazer a mudança, então foi nessa perspectiva (que entrou para a política).
Como é dividir sua atuação entre a política e a educação? De que forma essas duas áreas se conectam no seu trabalho diário?
Sou professora há 23 anos, pedagoga, mestra em educação, e, nesse momento, estou fazendo doutorado na área. Entendo que a escolha de educação tem relação com isso, com a mudança. O papel da educação é fazer a transformação social. Quando a gente educa, quando a gente ensina, temos a possibilidade de fazer com que esses cidadãos que estão se formando possam mudar o mundo. O que eu percebia era que os muros da escola estavam ficando pequenos para tanta coisa que eu achava importante fazer. Então, vir para o parlamento sendo uma professora é diferente. Muda o olhar, muda a postura, muda inclusive a forma de a gente fazer a política porque vivemos na ponta as mazelas da sociedade, a ausência do estado, as dificuldades que os nossos alunos têm de acessar comida, assistência e até saúde.
Que aprendizados da escola você carrega para sua atuação política?
A gente aprende muito dentro da escola. Sempre digo que raros foram os momentos em que fui, de fato, só professora. Durante toda a minha trajetória como profissional cumpri o papel de assistente social, psicóloga, amiga e parceira porque os nossos alunos exigem muito mais do que aprender a somar, a dividir e a ler. A educação me ensinou a olhar para além dos muros da escola, a entender questões como: por que que o meu aluno tem dificuldade de aprender? Por que que o meu aluno tem tanta tem tanta raiva desse mundo? Quando comecei a entender a vida dele para além da sala de aula, quando passei a olhar para a sociedade da forma como ela se organiza – ou como ela não se organiza – entendi que realmente precisava ultrapassar esses muros para lutar por políticas públicas justas e por justiça social.

Grazi é especialista em educação para as relações étnico-raciais e reforça a importância do tema também para a política. BÁRBARA NEVES/ BETA REDAÇÃO
Sua trajetória como educadora é marcada pelas questões étnico-raciais e você inclusive escreveu um livro sobre essa temática. Qual a importância desse tema tanto na educação quanto na política?
Trabalhar com as relações raciais dentro da escola que é garantir trabalhemos com a história e cultura afro-brasileira, africana e indígena. Faz com que a gente compreenda o que aconteceu no passado, para que que não se repita no presente. E compreender o que aconteceu no passado faz sentido porque a gente entende que as próprias leis brasileiras se estruturavam dentro do racismo. Não é à toa a lei da vadiagem, não é à toa a lei que nos proibiu de frequentar a escola pública. A educação para as relações étnico-raciais é essencial para a gente entender como as relações deveriam devem funcionar, porque nós somos diferentes. A gente começa a trazer é conhecimento, e é isso que nos abre outros caminhos. Quando não temos conhecimento nos tronamos ignorantes. Na política, é mais importante ainda. Somos uma minoria ocupando esses espaços de poder. Vocês acham que foi fácil lutar por políticas públicas quando que garantem a licença maternidade ou que preveem a distribuição de absorventes gratuitos, por exemplo? Como seria se os homens é quem precisassem disso? Essas políticas já teriam sido pensadas.
“Não faz nem 95 anos que nós mulheres temos o direito de votar. Então imagina as pessoas negras. Como vamos trazer as nossas necessidades para a política, se nós não ocupamos esses espaços? As pessoas brancas podem até se sensibilizar, ou inclusive falar por nós, como aconteceu por muito tempo. Temos aliados, pessoas brancas anti-racistas, mas é diferente quando nós ocupamos esse lugar. Então, educação para as relações étnico-raciais é fundamental para a estrutura do país, porque hoje tudo se desencadeia do fato de ainda vivermos em uma sociedade racista. Estamos aqui para resistir”.
Porto Alegre, geograficamente, é uma cidade que se expandiu bastante, com diversas regiões periféricas. Como o poder público pode incentivar a participação política das pessoas dessas áreas na vida política da cidade?
Essa é uma das grandes lutas dentro do nosso mandato. Nós precisávamos colocar as periferias na agenda de debate da cidade. Hoje, temos alguns instrumentos como o orçamento participativo, por exemplo, que são direcionados a essas localidades, no qual conseguimos mover minimamente lideranças comunitárias, representações que podem, de fato, ajudar a pensar como melhorar a situação da sua comunidade. Outro mecanismo é poder fomentar e fortalecer tais lideranças para incentivá-las a acessarem seus direitos. Isso porque uma das coisas que percebemos é a falta de conhecimento sobre seus direitos. Muitas vezes, as pessoas não sabem o papel do CRAS, por exemplo. Ou, então, quando ir ao posto de saúde, qual a hora certa de buscar um hospital, entre outras dúvidas. Então, penso que quando fortalecemos a comunidade e as lideranças, é no sentido de dizer para elas: “Ó esse é o caminho. Você tem direito a isso, você pode buscar aqui, sem ela precisar depender de ninguém”.
Como é a relação entre comunidade e poder público?
Nesse lugar de vereadora, que foi eleita pela comunidade, é saber que tenho a confiança de pessoas que lá vivem, da qual eu também sou oriunda. Ou seja, pessoas que são da periferia sabem que eu também sou de lá. Mulheres, mulheres negras que nem eu, sabem dos desafios que nós temos, também depositaram seu voto no nosso mandato esperando dias melhores, lutas por políticas públicas melhores. Sobre o parlamento, este é, para mim, um espaço burguês. Um espaço que tem muita relação com a forma colonialista e como se formou o nosso país. Um espaço que, infelizmente, precisamos ocupar para poder ter o poder. Mas, estou muito mais na comunidade do que aqui dentro. Estou muito mais junto com as pessoas, caminhando pelas ruas, olhando para as questões que precisamos melhorar. Aqui dentro (parlamento) faço uso desse espaço como ferramenta para fazer com que aquilo que nas caminhadas, nas andanças, nas escutas, a gente possa transformar.

Doutoranda em educação pela Ufrgs, ela tem vários objetos que identificam suas causas decorando o gabinete. BÁRBARA NEVES/BETA REDAÇÃO
Nesses primeiros meses de mandato, quais foram os maiores desafios que você enfrentou?
Foram três meses de muito desafio, porque somos uma minoria de vereadores e vereadoras progressistas, que pensam nas políticas voltadas aos direitos humanos, que entendem que boa parte da população é oprimida por diferentes razões. Justamente por sermos minoria, não temos força tamanha para fazer as mudanças e as transformações que como gostaríamos. Quando conseguimos amenizar projetos de lei que são apresentados, por exemplo, pelo executivo, que visam privatizar serviços públicos ou contratar empresas terceirizadas ao invés de fazer concurso público, por exemplo. Temos tentado agir mais no sentido de amenizar o impacto quando são apresentados projetos como esse.
Já foi possível tirar alguma proposta do papel?
Já tivemos avanços. Um exemplo é um projeto, apresentado inicialmente pelo hoje deputado Matheus Gomes (PSOL), que conseguimos desarquivar. O projeto propõe que empresas privadas que tenham 50% ou mais de homens realizem formações sobre o combate à violência contra as mulheres. As empresas que aderirem a essa proposta passariam a ter um selo para credenciar credenciá-las como empresas amigas das mulheres. Além disso, protocolamos mais outros três projetos, sendo um deles relacionado à cultura. Em 2025, completaram 20 anos da descida da Borges, que é um evento que acontece, ou melhor que acontecia, todos os anos com todas as escolas de samba da cidade. Por algum tempo esse projeto ficou abandonado, e quando retomado contemplou apenas as campeãs. Esse evento nasce num protesto de quando o Carnaval sai da região central e passa a ser mais uma vez colocado na periferia da cidade. Sabendo que a descida da Borges movimenta muito a nossa população das comunidades, todo mundo vem para acompanhar sua escola de samba. Então, apresentamos um projeto de para tornar esse evento parte da cultura imaterial de Porto Alegre. Também apresentamos um projeto de lei que propõe uma bolsa auxílio para as famílias, em especial, com crianças atípicas. Muitas mães de filhos atípicos são mães solos. Precisam largar o mercado de trabalho para acompanhar seus filhos nas terapias, na escola, durante o tratamento. Hoje, não há uma fonte renda para essas famílias – a não ser o BPC (Benefício de Prestação Continuada) um valor que a gente sabe que muitas vezes é usado integralmente nas terapias e medicações. O que estamos pedindo é para que as mães ou responsáveis de pessoas atípicas possam receber uma bolsa auxílio um salário-mínimo.
Em 2025, Porto Alegre não teve Carnaval de rua, uma ausência sentida por artistas, coletivos culturais e pela população. O que levou a essa situação e qual é a sua avaliação sobre o poder público diante do ocorrido?
Realmente houve um erro dentro desse processo, porque o governo Melo não é um governo novo, poderia ter se programado, se organizado, como acontece em todas as festividades. Inclusive, eu fiz uma pergunta para a Secretária de Cultura, Liliana Cardoso, é, dizendo para ela: “Pois é, mas na Semana Farroupilha ninguém se perde nos prazos, né? Então, qual é o problema?”. Foi um erro gravíssimo do executivo, da prefeitura, do governo Melo e nós fizemos um exercício de agora acompanhar para que esse erro não repita. Porto Alegre precisa ser alegre. E estamos um momento em que as pessoas não estão conseguindo ser felizes na cidade. A nossa juventude tem muito pouco espaço para viver a alegria de curtir a noite, de se divertir, e o Carnaval foi um exemplo disso. Não ter Carnaval no Carnaval diz muito sobre as escolhas políticas que são feitas por esse governo. Mesmo que as pessoas não percebam, o racismo também acontece de forma subjetiva. Até quando a gente esquece algo, esse “esquecer” também tem relação com aquilo que a gente não se importa.
Você teve participação ativa durante as enchentes de 2024. Um ano depois, o que você tira de lição dessa tragédia e como enxerga o futuro da capital em relação ao tema das mudanças climáticas?
Confesso para vocês que eu chorei desesperadamente foi só agora, quando vimos o documentário “E se a Casa Fosse Sua?”, do Instituto E Se Fosse Você. O documentário me fez olhar de uma forma não imersa naquilo que a gente estávamos vivendo. Eu também fui atingida. Fiquei um mês fora de casa. Saí só com a roupa do corpo. Fui acolhida por amigos, não precisei ir para um abrigo. Mas vivi todos os passos, né? Fui atingida, fiquei fora de casa. Depois que a gente se se reestruturou, fui para a rua ajudar. Ali comecei a entender melhor que nós vivemos num momento de emergência climática. Essa foi a primeira lição. A segunda é que nós vivemos numa sociedade, reafirmo, racista. Porque o racismo ambiental foi ficou evidente com as enchentes. Não é à toa que as comunidades mais atingidas foram as periféricas e por consequência as negras perdendo tudo, não só memória, não só lembranças, mas perdendo 20 anos de trabalho, de construção, de vida. Um exemplo foi ter chegado numa casa para limpar, ver o micro-ondas e a dona da casa dizer assim: “E ainda estou pagando a terceira prestação”. Foram coisas fortes, apesar de materiais, mas era fruto do trabalho de todos os dias daquelas pessoas. A terceira lição foi em relação à saúde mental. Se eu falo sobre isso e já me abalo, imagina as pessoas que de fato perderam tudo. Eu não perdi tudo, eu só não consegui entrar para dentro de casa. O máximo que aconteceu foi uma geladeira que tinha ficado podre. Foi meu o único prejuízo. Hoje, uma das minhas preocupações como vereadora é como a comunidade se prepara para eventos como esse.
Você tem alguma proposta sobre este tema?
No plano de contingência, nossa proposta é como organizar uma brigada de emergência. Essa equipe é quem vai dar suporte para a comunidade. “Aconteceu! Alagou! Para onde a gente orienta a nossa comunidade para ir? Ah, a escola X está preparada para isso. Lá na escola Y, o que que a gente tem? Tem bote? Tem maca? Tem itens de primeiros socorros? Como a que essa escola tá preparada para ser o QG para uma situação de emergência? A gente tem bote para ir lá salvar as pessoas? Ou a gente tem que ficar esperando a Defesa Civil para fazer isso?”. Outra coisa é a conscientização. Teremos uma luta muito grande na discussão do plano diretor. Porto Alegre é uma cidade em obras. E esta é a ideia do governo que nós temos aí. Mas se pararmos para pensar sobre essas construções, quem consegue comprar um apartamento dessas grandes construtoras? Por que um apartamento de 30m2 por 1 milhão de reais? Temos 100.000 imóveis desocupados, por que não repensar isso? Por que não realocar isso? Poderíamos ter resolvido o problema dos abrigos dando esses espaços para essas pessoas morarem? Precisamos estar preparado para as coisas que possam vir e que o poder público faça as obras e as reformas que precisam ser feitas para ontem.

A parlamentar teve participação ativa durante as enchentes de maio de 2024. BÁRBARA NEVES/BETA REDAÇÃO
Nos últimos dias, o estado teve diversos feminicídios. Como você enxerga essa situação e o que o seu mandato tem feito para o enfrentamento da violência contra a mulher em Porto Alegre?
Temos 1.300.000 habitantes na cidade de Porto Alegre. Desse 1.300.000 nós, mulheres, somos a maioria e temos apenas uma delegacia de denúncia especializada para atendimento à mulher. Um espaço que carece de profissionais capacitados para acolher as mulheres, tem um atendimento burocrático. É sempre uma corrida contra o tempo, não é o agressor que acaba tendo que largar tudo, é a mulher que pega os filhos pela mão e sai de casa. Um problema, a meu ver, está em assimilar que o homicídio é último estágio problema, o último momento. O que nós precisamos entender é como a gente prevê, estamos falhando na prevenção. E eu não estou falando uma prevenção direcionada apenas a mulheres adultas que são capazes de identificar a violência, o que fazer a partir disso. Não, eu estou falando lá na escola. Quando falamos sobre os direitos das mulheres e de gênero. Se hoje mulheres morrem muito mais, tem muita relação com a ausência de ter na escola, uma educação pensada para isso. Um dos caminhos a se seguir, a longo prazo, é mudar a forma como nós educamos os nossos estudantes e como a gente age dentro da escola. A curto prazo, precisamos ter campanhas publicitárias a todo momento na televisão, nos lugares, nos espaços públicos, informativos.
Em 2026 teremos eleições novamente, desta vez em âmbito estadual e federal. Como política, que cenário você acha que encontraremos?
Vamos ter um período muito difícil. Há um crescimento enorme da extrema direita. Esse crescimento assustador é acompanhado por um discurso de ódio muito profundo. Mas o problema maior é que isso ganha a opinião pública. Sou uma mulher de esquerda, vereadora de esquerda, e diante disso temos um desafio muito grande de tentar lutar e combater essa narrativa que vem ganhando força. Será uma eleição difícil em que vamos precisar pensar em como conscientizar a população sobre a importância não só de votar, mas votar com consciência. Outra coisa que precisa ser muito nítida para a população é que quem ajuda a aprovar os projetos ¨malucos¨ é o legislativo. É importante votar no governador, no presidente? É! Mas precisamos olhar quem vamos colocar na assembleia legislativa, no congresso nacional e no senado.