Da periferia para o mundo: o empreendedorismo como motor de transformação social

Empresários periféricos movimentam mais de R$12,5 bilhões por ano no Rio Grande do Sul
O Formô fica localizado na R. Ernesto Araújo, 838 - LARISSA HAR/BETA REDAÇÃO

É natural para o ser humano associar uma coisa a outra, correlacionar situações e transformá-las em regras. Isso ocorre nos mais diversos contextos, e não é diferente quando falamos sobre periferia. Assim que ouvimos esse termo, uma imagem se forma em nossa cabeça – muitas vezes influenciada pelo que se vê em filmes como Cidade de Deus, por exemplo. A obra retrata a vida em uma favela do Rio de Janeiro, evidenciando a violência, o tráfico de drogas e a desigualdade social. Embora seja impossível negar que essa realidade esteja presente em muitas favelas brasileiras, elas não se resumem a isso. Assim como em qualquer outro lugar, essas comunidades abrigam histórias incríveis que frequentemente ficam à margem dos holofotes, ofuscadas pela criminalidade.

O Morro da Cruz, em Porto Alegre, é uma das maiores favelas do Rio Grande do Sul – LARISSA HAR/BETA REDAÇÃO

Entre essas histórias destaca-se o crescimento do empreendedorismo periférico, em que moradores transformam limitações em oportunidades, criando negócios inovadores e impactando positivamente o desenvolvimento social e econômico de suas regiões. Um exemplo é a trajetória de Michel Couto, um homem negro de 39 anos, morador do Morro da Cruz, na periferia da Zona Leste de Porto Alegre.

Michel iniciou sua vida profissional em um emprego muitas vezes associado ao estereótipo do homem negro: o de segurança. Por alguns anos, trabalhou nessa função, mas seu sonho ia além. Ao ingressar em uma agência como segurança, Michel, com esforço e dedicação, alcançou o cargo de diretor de imagem. Atualmente ele tem seu próprio negócio, a Formô Hub, um espaço que vai muito além de uma agência de comunicação.

A empresa de Michel oferece serviços como produção de panfletos, cartões de visita, pesquisas de mercado e criação de marcas e identidades visuais. No entanto, o verdadeiro impacto da Formô está em sua essência como um hub de inovação social. O projeto tem como compromisso fomentar o empreendedorismo periférico, descentralizar tecnologias e inseri-las no repertório de soluções criadas no Morro da Cruz. Além disso, conecta as inovações geradas na periferia com o mundo, potencializando o impacto positivo dessas iniciativas. Mais do que um negócio, a Formô Hub é um ecossistema de impacto social, que busca o desenvolvimento regional.

Um exemplo disso é o fornecimento de internet sem fio gratuita para a comunidade, iniciativa realizada em parceria com a prefeitura de Porto Alegre que facilita o desenvolvimento de pequenos empreendimentos locais e amplia o acesso à cultura, ao conhecimento e ao lazer. “A gente precisa estar focado na geração de renda e ampliar as oportunidades de negócio dentro da periferia. Só assim conseguimos impactar a qualidade de vida, o meio ambiente, o transporte, tudo, né? É um movimento de economia circular que começa aqui, no Morro da Cruz, e pode inspirar o mundo”, reflete Michel. Questionado sobre o motivo de continuar morando e empreendendo na periferia, Michel responde sem hesitar: “Eu amo esse lugar. Foi aqui que meu caráter foi moldado, que eu me tornei quem sou. Se as pessoas gostam de mim, é porque esse lugar tem muito a dizer sobre o meu comportamento. Se eu não falar bem do Morro e lutar por ele, quem fará isso?”.

A história de Michel é apenas uma entre tantas no Rio Grande do Sul, mas que ainda recebem pouca atenção. Segundo dados do Data Favela, 76% dos moradores de comunidades periféricas já têm, tiveram ou planejam abrir um negócio próprio. Em Porto Alegre, 99% desses empreendedores atuam diretamente nas comunidades onde vivem, fomentando o desenvolvimento local. Apesar disso, enfrentam desafios significativos: apenas um terço dos negócios possui CNPJ, e muitos não têm um espaço fixo para operar. Além disso, 9 em cada 10 empreendedores afirmam que a falta de investimentos em projetos sociais e infraestrutura local dificulta o crescimento de suas iniciativas. Mesmo com a carência de iniciativas governamentais, empresários periféricos movimentam mais de R$ 12,5 bilhões por ano no Rio Grande do Sul.

Michel Couto criou o Formô Hub como uma maneira de potencializar as criações do Morro da Cruz – LARISSA HAR/BETA REDAÇÃO

Foi para mudar essa realidade que surgiu a ExpoFavela, a maior feira de empreendedorismo da América Latina. Organizada pela Central Única das Favelas (Cufa), a feira conecta empreendedores de regiões periféricas a investidores e empresas, gerando oportunidades de negócios e transformação social. Em novembro deste ano, Porto Alegre recebeu a segunda edição do evento, com 5 mil projetos inscritos, dos quais 100 foram selecionados para exposição. Entre eles, os 10 melhores participarão da edição nacional da ExpoFavela, em 2025. Além da exposição, o evento ofereceu palestras, shows e diversas atrações culturais. Um dos destaques foi Michel Couto, que compartilhou sua trajetória como empreendedor periférico, inspirando outros a transformarem suas realidades.

Os resultados da primeira edição da feira impressionam: dentre os negócios que participaram da ExpoFavela em 2023, aproximadamente 83% buscaram sua formalização. Além disso, 90% declararam ter aumentado seu faturamento graças à visibilidade obtida no evento e às conexões criadas. “Mais do que conectar a favela com o asfalto e a periferia com o mundo corporativo, a ExpoFavela dá visibilidade e empodera os empreendedores. Essa feira potencializa, mas, principalmente, mostra o que já existe dentro das comunidades. Muitas soluções para problemas do nosso dia a dia surgem nesses territórios e, por conta da negligência da sociedade, acabam invisíveis. A ExpoFavela vem para revelar o tamanho e a potência desses empreendedores”, afirma Junior Torres, coordenador da Cufa RS.

Mais do que negócios, o empreendedorismo representa transformação social. Histórias como a de Michel Couto mostram que, quando há oportunidades e apoio, as periferias deixam de ser vistas apenas como espaços de carência e passam a ser reconhecidas como polos de inovação e criatividade. A ExpoFavela, ao dar visibilidade a iniciativas como a Formô Hub, demonstra que a mudança não depende apenas dos moradores das comunidades, mas também de uma sociedade que reconheça o valor dessas ideias e invista nelas. Afinal, a potência das periferias já existe. O que falta é a ponte para conectá-las ao mundo. “Eu acredito que a gente não precise sair daqui para realmente impactar o mundo, já que ele nos impacta a todo o momento. Se ele tem como nos impactar, nossa missão é impactá-lo de volta”, conclui Michel.

Bárbara Cezimbra de Andrade

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