Aninha do IAPI: o sorriso que move a comunidade

Ela não canta como Elis nem escreve como David, mas é voz ativa no cotidiano do IAPI

O bairro IAPI, localizado na zona norte de Porto Alegre, é um daqueles lugares onde as paredes falam. Construído originalmente como um conjunto habitacional nos anos 1940, sendo considerado o primeiro condomínio do Brasil, abriga histórias e vozes que ecoam entre os prédios e personagens que fizeram – e continuam – fazendo parte do imaginário gaúcho.

Foi nas ruas do IAPI que despontou a voz inesquecível de Elis Regina, a “pimentinha” da música brasileira, e que o jornalista e cronista David Coimbra viveu sua juventude. No mesmo solo fértil dessas trajetórias nasceu e floresceu uma mulher cujo nome, embora não estampe capas de disco ou colunas de jornal, é sinônimo de luta, acolhimento e amor ao próximo: Aninha do IAPI.

Aninha reflete sobre sua trajetória de vida no bairro onde nasceu, cresceu e escolheu permanecer: o IAPI. FOTO: PETRA KARENINA/BETA REDAÇÃO

Aos 59 anos, Aninha é gigante de história e pequena de altura, com seus apenas 1,50m de pura presença. Carrega no corpo franzino e no rosto com rugas suaves as cicatrizes e os sorrisos de uma vida inteira dedicada à comunidade onde nasceu e escolheu permanecer. Seus passos são curtos, mas determinados; sua voz, mansa, carrega a firmeza de quem conhece a força da solidariedade.

Aninha viu o bairro crescer diante de seus olhos atentos. Por trás dos óculos, discretos como ela, já testemunhou o tempo passar lentamente pelas janelas, os vizinhos envelhecerem, as ruas de paralelepípedo se transformarem em asfalto, os muros e grades se erguerem, os rostos mudarem. Presenciou crises, enfrentou a pandemia, atravessou enchentes, viveu silêncios difíceis e celebrou os risos compartilhados na tradicional festa de São João do bairro.

Com suas mãos calejadas pelo tempo, Aninha fez da solidariedade sua bandeira, erguida não em discursos, mas em atitudes cotidianas. Ela é daquelas presenças silenciosas, mas essenciais, que não precisam de holofotes para serem notadas. Basta algum problema surgir no bairro, uma dificuldade ou necessidade, e ela imediatamente é chamada.

Apresentada como um marco afetivo e comunitário na trajetória da Aninha, a Paróquia Nossa Senhora de Fátima, também foi o local de sua Crisma. FOTO: PETRA KARENINA/BETA REDAÇÃO

Ainda criança, Aninha percorria as ruas do IAPI com olhos curiosos e pés descalços. Brincava de descer o barranco do Parque Alim Pedro em cima de um papelão, e, entre uma risada e outra, já aprendia as primeiras lições de empatia com a mãe, figura central de sua formação. “Levanta, vai ajudar a vizinha”, ela lembra, como quem revive a cena. A frase materna, dita sem grandes pretensões, viria a moldar toda a trajetória de Aninha, uma história marcada por generosidade, compromisso e ação.

Estudou na escola Dr. Edmundo Gardolinski, hoje conhecida como Nossa Senhora do Cenáculo, e fez sua Crisma na Igreja Nossa Senhora de Fátima, onde também participou de encontros e atividades religiosas que estreitaram ainda mais seus laços com a comunidade. “Aqui é minha base, minha história. Não me vejo fora disso”, diz ela, com os olhos brilhando de emoção. Desde cedo, Aninha assumiu papéis de responsabilidade. Aos 11 anos, já era babá dos filhos dos vizinhos, demonstrando que seu dom para cuidar das pessoas não surgiu com o tempo, nasceu com ela.

A antiga escola Edmundo Gardolinski, onde Ana estudou na infância, hoje é chamada Nossa Senhora do Cenáculo. FOTO: PETRA KARENINA/BETA REDAÇÃO

Foi durante o período mais difícil de sua vida, ao cuidar da mãe doente por seis anos, que Aninha compreendeu com profundidade o significado do cuidado. Era mais do que estar presente: era ouvir, entender, acolher, insistir mesmo quando parecia impossível. Essa experiência a moldou e, de certa forma, a empurrou ainda mais para o caminho que já trilhava desde menina.

Em 2009, começou a trabalhar como faxineira pela Cootravipa, no mesmo Parque Alim Pedro que fora seu quintal de infância. Alguns anos depois, prestou concurso e se tornou agente comunitária de saúde, atuando diretamente no Posto de Saúde IAPI. Nessa função, Aninha não era apenas uma profissional da saúde: era conselheira, escudo e ponte. Entrava nas casas, ouvia histórias, anotava preocupações, encaminhava soluções. Muitas vezes, era a única presença constante na vida de pessoas esquecidas pelo sistema de saúde público.

O Parque Alim Pedro, seu “quintal de infância”, é palco de memórias e do cotidiano da comunidade. FOTO: PETRA KARENINA/BETA REDAÇÃO

“Eu cobrava de mim um retorno para as pessoas. Se eu prometia algo, eu fazia acontecer”, afirma, sem traço de vaidade, apenas a convicção de quem sabe o valor da palavra.

A relação de confiança que construiu com os moradores fez com que seu nome passasse a circular com força no bairro. Incentivada pela própria comunidade do IAPI, candidatou-se a vereadora pelo antigo PPS (hoje Cidadania), obtendo 1.500 votos em sua primeira tentativa, mesmo sem recursos financeiros ou estrutura partidária. Não se elegeu, mas tornou-se suplente, e sua atuação social seguiu com ainda mais força.

Seu telefone celular é um termômetro do quanto está presente no dia a dia dos moradores. As mensagens não param: dúvidas sobre medicamentos, pedidos de socorro, relatos de abandono, denúncias, cachorros perdidos, podas de árvore e buracos na rua. Aninha escuta, orienta, responde, indica caminhos. E faz tudo isso com algo que é sua marca registrada: o sorriso no rosto. Um sorriso que não é protocolar, é o sorriso de quem acredita que, por mais dura que seja a realidade, a empatia ainda é capaz de mudar o mundo.

O sorriso não é pausa: é parte do trabalho. Aninha é feita de presença e generosidade. FOTO: PETRA KARENINA/BETA REDAÇÃO

Em cada visita, em cada conversa, Aninha leva com ela a leveza de quem aprendeu a transformar dor em serviço. Quem a conhece de perto sabe: sua força está na forma como trata os outros, com respeito. “Ela nunca diz não, mesmo quando não tem como ajudar”, relata Fabiana, moradora do bairro. “Se ela não consegue com as próprias mãos, ela sabe quem pode conseguir.”

Apesar da rotina intensa, Aninha alimenta um sonho pessoal: se aposentar e ir morar no litoral, cercada por cachorros e gatos, e se dedicar a um cotidiano mais calmo e silencioso. Mas até mesmo esse desejo vem acompanhado de uma promessa: “Mesmo morando fora, vou continuar ajudando via Whatsapp e ligações de vídeo. Dou a cara para bater. Eu sou do IAPI, sou raiz.”

Quando perguntada sobre como gostaria de ser lembrada, responde sem hesitar: “Como uma pessoa que tentou ajudar, que fez a sua parte do jeito que pôde.” A verdade é que Aninha já entrou para a história, não dos livros oficiais, mas na memória viva de um bairro inteiro. É a mulher que nunca virou as costas, que estendeu a mão. É o nome que surge nas conversas quando alguém precisa de ajuda. É o sorriso que acalma, que acolhe e que move.

Aninha do IAPI é, antes de tudo, uma presença. Daquelas que fazem falta quando não estão por perto. Daquelas que deixam marcas sem precisar levantar a voz. Aninha é o IAPI!

Reconhecida por onde passa, os laços da vizinhança se revelam. FOTO: PETRA KARENINA/BETA REDAÇÃO

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