Praça da Alfândega, o daguerreótipo de Porto Alegre

Uma visita ao espaço verde encravado no coração da capital gaúcha

Não é um dia de semana, mas o trânsito de pessoas é grande na praça. Há dois dias, nesse mesmo horário, as pessoas pareciam mais apressadas, o som das buzinas imperava no ar e decidi não conversar com absolutamente ninguém – apenas me sentei em um banco em frente ao Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), que funciona em um prédio histórico, símbolo de um período marcante da história da Capital, e observei. Hoje é sábado e metade do dia já se foi, algumas pessoas já estão de folga, outras quase em hora de se liberar, há qualquer coisa de mais leve imperando por aqui – ao invés de buzinas, ouço pássaros; ao invés de pessoas sem tempo, correndo e fumando, encontro o Eduardo, advogado e mestrando em Direito Ambiental, que do alto de seus 52 anos de idade, repousa num banco aproveitando a sombra das árvores.

É um sábado de outono qualquer. Estaciono o carro em frente à prefeitura municipal, no Google Maps leio: Praça Montevidéu. Caminho solenemente sob um sol forte das três da tarde em direção à esquina das ruas Sete de Setembro e General Câmara. É por ali que chego à Praça da Alfândega.

Espaço ao centro da praça, vista para o cais da cidade e museus próximos.  Foto: Pedro Curi

Retira de uma ecobag uma banana e a come lentamente, como que sorvendo não o sabor da fruta, mas o momento de relaxamento nesse lugar, “o Centro Histórico, essa região toda, para mim, é o coração de Porto Alegre”, diz. Acompanho esse porto-alegrense da gema abrir um pacote de bolachas salgadas enquanto ele discorre sobre o que o fez se mudar do Quarto Distrito para a Zona Sul. “Foi a enchente, perdi tudo”, conta.

Eduardo é apenas uma das dezenas de pessoas sentadas nos bancos de madeira da Praça, sob a copa das árvores, enquanto o tempo passa. Também cobertas do sol, encontro as estátuas de Mario Quintana e Carlos Drummond Andrade, como em um diálogo que nunca tem fim – menos porque industrializaram a esperança e mais porque quando se vê já se passaram 50 anos. Mas se, para o poeta alegretense mais proeminente deste Estado, 50 anos significam uma vida, para uma cidade eles são apenas um piscar de olhos.

A praça arborizada que conhecemos hoje nem sempre foi assim. Como parte considerável de Porto Alegre, essa região é fruto dos aterros realizados às margens do lago Guaíba, no início da década de 1910. Na área em que hoje fica a Avenida Sepúlveda, havia uma amurada e uma escada de pedras, que dava acesso à cidade pelo rio. Era uma porta de entrada de pessoas e mercadorias. Se atualmente a Praça da Alfândega faz parte do “coração da cidade”, no correr dos anos ela foi uma observadora da história sendo construída, uma testemunha da força do tempo.

Esse local, varrido por inúmeros garis, como a dona Elaine, uma senhora com o rosto marcado pela aspereza dos seus 66 anos de vida, dos quais mais de 20 empunhando o cabo de uma vassoura pelas ruas de Porto Alegre, hoje, “possui muito policiamento e poucos moradores de rua”, me confidencia ela. Mas aqui já aconteceram assassinatos, como o do líder dos casais açorianos que chegaram pelo Guaíba, em função do Tratado de Madrid, ao então Porto do Dornelles, que, em meados do século XVIII, fazia parte da sesmaria de Gerônimo de Ornellas – pai do algoz açoriano.

Enquanto observo o monumento ao General Osório, patrono das armas do Exército Brasileiro e herói da Guerra do Paraguai, noto, na pracinha infantil, crianças brincando em balanços. Nos corredores do jardim, à noroeste da Praça, trabalhadores vestindo roupas com faixas luminosas dormem nos bancos em meio à agitação da Capital. Dali vejo o restaurante que vende “autênticos panchos uruguaios” e o corredor de bancas de artesanatos hippies – que ocupam o mesmo espaço desde os anos 1980, me jura o artesão capixaba Vinícius, de 40 anos, “itinerante desde 1998, quando vim para Porto Alegre a primeira vez para acompanhar o Fórum Social Mundial”, disse segurando uma lata de cerveja. Uma rápida pesquisa no Google, mais tarde, corrigiria Vinícius: o primeiro Fórum Social Mundial foi realizado na capital do Rio Grande do Sul só em 2001.

Estátua tradicional da praça, pombo repousa sobre a cabeça do busto.  Foto: Pedro Curi

O relógio se aproxima das 17h e me preparo para ir embora. Lembro da 14° Bienal do Mercosul, e confirmo que há uma exposição no Farol Santander – centro cultural que funciona no prédio do extinto Banco da Província, às margens da Rua General Câmara, por onde eu teria que caminhar para chegar ao carro. Vejo que Eduardo já foi embora, há apenas uma casca de banana sob o banco. Lembro do trânsito na saída da cidade no fim da tarde e abandono a ideia de ir à exposição.

Eu caminhava a passos lentos, como quase nunca acontece, pela Rua Sete de Setembro, quando vi um prédio ostentando as cicatrizes da enchente de 2024. Lembrei que, há um ano, general e poetas estavam mergulhados nas águas do Guaíba e me perdi refletindo sobre o quanto essa praça já viu e reflete a história de Porto Alegre, do tempo dos coronéis da terra aos coronéis do varejo e do concreto armado e, apressado, quase corro para ver o que há nessa Bienal, ouvindo a voz de Antônio Abujamra declamar Quintana – “não deixe de fazer algo que gosta devido à falta de tempo”.

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