Promotoras Legais Populares enxergam o que o Estado não vê e ajudam mulheres a romper o ciclo da violência

Nos bairros em que mulheres ainda não acessam a rede formal de proteção, as PLPs se tornam ponte, apoio e voz contra a violência que não aparece nos dados

Dez mulheres assassinadas em apenas quatro dias. Entre a Páscoa e o feriado de Tiradentes, o Rio Grande do Sul registrou uma sequência de feminicídios que escancarou o que já não é novidade: o Estado segue falhando em proteger mulheres. E esse número, que por si só já é alarmante, não dá conta da real dimensão do problema. Desde então, de acordo com o Monitoramento dos Indicadores de Violência Contra as Mulheres, feito pelo PROCERGS, três novos casos de feminicídio consumados e 19 tentativas foram registradas no estado, sem contar os episódios de violência que não entram nas estatísticas, por medo, vergonha ou falta de acesso a canais seguros de denúncia.

O monitoramento feito pelo governo estadual classifica as ocorrências em cinco tipos, sendo elas: feminicídio consumado, feminicídio tentado, ameaça, estupro e lesão corporal. No total, de janeiro a maio o levantamento indica o registro de 22.846 ocorrências, conforme a última atualização em 4/6/2025. Dentre elas, o documento registra oficialmente 30 vítimas de feminicídio. Contudo, o cenário pode ser ainda pior. Um levantamento realizado pela Lupa Feminista sugere que há uma subnotificação dos casos por parte do Estado. De acordo com este segundo monitoramento, atualizado no dia 7/6/2025, o número de casos é 35. A divergência apontada pela organização e os registros oficiais revela uma lacuna preocupante: feminicídios que não são reconhecidos como tal, boletins de ocorrência que não viram investigações, e um sistema que, na prática, invisibiliza parte das vítimas.

O Mapa do Feminicídio 2024, feito pela Polícia Civil, traz outro dado que ajuda a entender quem são essas vítimas. O perfil majoritário é composto por mulheres brancas, com baixa escolaridade, solteiras e mães. A maioria dos assassinatos foi cometido por companheiros ou ex-companheiros. Ao contrário do que se imagina, o documento revela que em 62,5% dos casos não havia nenhuma ocorrência policial prévia e que 87,5% das vítimas não tinham medidas protetivas vigentes na data do crime.

As informações levantadas pela Polícia Civil ajudam a revelar onde o sistema de proteção começa a falhar. Quando não há registros anteriores nem medidas protetivas acionadas, o que se vê é uma resposta tardia a uma violência que já estava em curso. Muitas mulheres não chegam a buscar ajuda – seja por medo, dependência financeira ou emocional, vergonha, falta de informação ou por acreditarem que o que vivem faz parte da vida. Em contextos de vulnerabilidade, a denúncia nem sempre parece uma possibilidade real. É justamente nesse estágio inicial, quando o risco ainda é invisível para o Estado, que a proteção deveria começar, mas não começa.

Mulheres que aprendem para proteger

Diante desse gargalo, iniciativas populares têm atuado como linha de frente no enfrentamento à violência. Durante a apuração desta reportagem, mulheres que passaram pela formação de Promotoras Legais Populares (PLPs) relataram experiências em que foram fundamentais para encaminhar denúncias, orientar vítimas, garantir proteção. Em comum, os relatos revelam como o acesso à informação jurídica transforma a forma como essas mulheres lidam com situações de risco, não apenas como vítimas, mas como agentes de orientação, apoio e escuta para outras.

A formação é promovida pela Themis, uma organização que surgiu no Rio Grande do Sul e que há 30 anos segue um viés feminista e antirracista Brasil afora. O curso oferece noções de direito, políticas públicas e funcionamento da rede de proteção, de forma acessível e conectada com a realidade das periferias. Ao formar mulheres como Promotoras Legais Populares, a Themis fortalece uma atuação coletiva que preenche, informalmente, lacunas deixadas por instituições formais de justiça. Em bairros como a Restinga, Lomba do Pinheiro e Bom Jesus, essas lideranças se tornaram referência em situações de violência, como é o caso de Carmen Lúcia Santos Silva.

Aos 65 anos, além dos atendimentos que realiza, a técnica em enfermagem aposentada arranja um espaço na sua agenda para exercer o papel de Promotora Legal Popular. Desde que passou a ser moradora da Restinga, Dona Carmen diz que sua vida mudou totalmente. “Conheci outro tipo de vida, a luta de verdadeira pelas coisas. Esse momento aqui foi o que me amadureceu, o que abriu a minha mente para as dificuldades que eu não conhecia”, explica. Foi na Restinga também que conheceu o projeto promovido pela Themis.

Carmen, que fez parte da primeira turma de PLPs lembra das primeiras impressões que teve. “A gente achava incrível eles (advogadas, delegados e juízes) virem lá do centro, lá da classe média alta da cidade. Eles pegavam cada parte da constituição, liam na forma jurídica e depois desmembravam para a nossa linguagem. Foi uma forma muito clara de fazer entender. Nos trouxe confiança e segurança de que o que estávamos aprendendo, seria para o resto da vida” relembra.  

Após a formação, as PLPs recebem um certificado que as habilita a atuarem como tais em suas comunidades. “Não tem nenhuma formalidade e nenhum reconhecimento estatal no sentido de uma autorização. Isso é uma construção de rede comunitária mesmo, de trabalho coletivo, em teia”, explica a Coordenadora da Área de Enfrentamento às Violências da Themis, Rafaela Caporal. As mulheres que concluem o curso e seguem como voluntárias atuam no Serviço de Informação a Mulher (SIM). Atualmente, a Themis mantém seis espaços SIM, que funcionam como ponto de apoio para a atuação das Promotoras Legais Populares no atendimento a mulheres em situação de vulnerabilidade nas comunidades. Os endereços desses locais estão disponíveis ao final da reportagem.

A técnica de enfermagem Carmen Lúcia relatou diversos casos de violência doméstica que enfrentou como PLP. BÁRBARA NEVES/BETA REDAÇÃO 

O papel das PLPs no primeiro contato com vítimas de violência

Os atendimentos chegam a Themis, em sua maioria, através das PLPs de cada território. Rafaela explica que, apesar de terem uma base oficial no centro da cidade, a unidade não comporta a estrutura adequada para realizar essa assistência inicial. “As mulheres acabam indo lá porque o nosso endereço circula, né? Mas não temos esse atendimento aberto. Temos um canal em que as mulheres podem buscar ajuda conosco, que é um e-mail. A partir desse e-mail, fazemos contato com essa mulher e organizamos os encaminhamentos e a orientação jurídica”, complementa.s

Ao longo de mais de 30 anos como PLP, Carmen já ajudou muitas mulheres a saírem de um ciclo de violência, fosse ela física ou psicológica. Para a Beta Redação, Carmen comentou sobre alguns atendimentos, dentre eles o mais recente que levou dois anos para ser concluído e envolveu uma vítima que chegou até ela acreditando já estar divorciada do agressor quando, na verdade, tinha sido enganada por ele durante todo o processo.

O casal tinha mais de 20 anos de convivência. Quando decidiu se separar, a mulher foi convencida pelo ex-marido de que fariam um divórcio litigioso. Ele organizou tudo: marcou reuniões, levou uma suposta mediadora e fez com que ela pagasse R$400,00 pelo serviço, alegando que seria necessário para finalizar a separação. Na prática, o que ele armou foi um acordo de conciliação, que não garantiu nenhuma proteção legal a ela. Com documentos que pareciam oficiais e selos da Justiça, a mulher acreditava que o divórcio estava resolvido. Mas o homem nunca saiu de casa. Continuava circulando pelos cômodos, se embriagava, ficava nu, colocava fogo em objetos e mandava fotos das chamas para a ex-companheira. Quando procurou Carmen, já estava emocionalmente esgotada e sem entender como, mesmo “divorciada”, seguia presa ao agressor dentro do próprio lar.

A partir daí, Carmen passou a acompanhar o caso. Descobriu que a mediação havia sido feita fora da Defensoria Pública, o que é irregular, e que a vítima jamais deveria ter pagado pelo serviço. Foi necessária uma nova articulação judicial para rever todo o processo. Com ajuda de servidoras do fórum, ela conseguiu o apoio de um defensor público e denunciou o falso mediador. Depois de meses de negociação e enfrentamento, uma decisão judicial determinou o afastamento do agressor. Hoje, dois anos após o primeiro atendimento, a mulher finalmente vive sozinha e em segurança.

Entre todos os atendimentos, Carmen diz que os que mais chegam estão ligados a violência doméstica. “Nossa competência é defesa dos direitos humanos das mulheres. Em qualquer âmbito. Tem violência trabalhista, mas a maioria das vezes é violência doméstica do casal.” explica Carmen.

Além disso, ela diz que é muito comum as mulheres desistirem do acompanhamento. “Os homens são muito sedutores e tem muito essa relação de dependência tanto emocional quanto financeira. Eles manipulam, ainda mais quando é um casamento de uma vida inteira”, complementa.

Segundo Carmen, a vítima pensa que tem um limite para ser acolhida, mas é justamente o contrário. Não importa quantas vezes ela queira estar ali.  “Para nós, não importa quantas vezes. A gente jamais vai receber ela na porta e vai dizer ‘por que que tu voltou?’  A gente nunca diz isso. Essa é a nossa regra de trabalho”, pontua.

A Themis produz diversos materiais informativos para o enfrentamento da violência contra as mulheres. BÁRBARA NEVES/BETA REDAÇÃO 

Onde encontrar:

SIM Leste – Rua Jerusalém, 165, 2º andar. CRAS Lestes I, Bom Jesus. | Atendimento: quartas-feiras, das 14h às 17h.

SIM Restinga – Rua Engenheiro Oscar Oliveira Ramos, 1411, sala 01. Escola de Educação Infantil AMOVIR. | Atendimento: segundas-feiras, das 9h às 17h.

SIM Eixo Baltazar – Av. Baltazar de Oliveira Garcia, 2132, área 6, sala 657. Centro Vida. | Atendimento: sextas-feiras, das 14h às 17h.

SIM Lomba do Pinheiro – Rua Carol, 128, 2º andar, sala 01. Parada 13. Grêmio Recreativo Escola de Samba Filhos de Maria. | Atendimento: sextas-feiras, das 13h30min às 17h30min.

SIM Cruzeiro – Rua Dona Otília, Travessa C, 115. ASSMUSOL. | Atendimento: segundas-feiras, das 9h às 12h.

SIM Canoas – Rua 4A, setor 4B, Casa 6, sala 1. Centro Integrado de Economia Solidária e Cidadania Guajuviras. | Atendimento: quintas-feiras, das 14h às 17h.

A instituição feminista fez um material que conta com diversos contatos importantes para mulheres em busca de ajuda. BÁRBARA NEVES/BETA REDAÇÃO

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