O Brasil vive uma crise de saúde mental com impacto direto na vida de trabalhadores e de empresas. Segundo dados do Ministério da Previdência Social, em 2024, foram 472.328 afastamentos médicos concedidos – entre as principais causas, estão a depressão e ansiedade.
De acordo com psiquiatras e psicólogos, esses números são derivados da situação atual do mercado de trabalho e das cicatrizes causadas pela pandemia do COVID-19.
Relatos de dentro do trabalho
Para entender melhor o cenário, a reportagem da Beta Redação conversou com Bernardo* que, em maio desse ano, teve um caso de burnout. O funcionário relata que o trabalho ficou mais intensificado após uma troca de setor. “Aliado a isso, tive COVID e segui trabalhando além do horário para cumprir um prazo. Fora do trabalho, eu estava com diversas atividades paralelas e cada vez eu pegava mais coisas, chegou um ponto que não aguentei mais”, relatou.
Na opinião do funcionário, o sofrimento mental é tratado como um problema individual, quando na verdade reflete questões coletivas do ambiente de trabalho. “Isso faz com que a responsabilidade por lidar com a pressão recaia apenas sobre o trabalhador, sem que se olhe para as causas estruturais que geram esse adoecimento”, comenta.
A empresa em que Bernardo* trabalha disponibiliza apoio de um psicólogo para seus funcionários e ele conta que fazia contato com ele, tanto antes quanto depois do caso do afastamento.
Segundo Bernardo*, o psicólogo consegue ajudar fazendo a ponte entre a pessoa que está sofrendo e a gestão da empresa, desde que haja uma real motivação por parte dela para mudar o que causou o burnout em primeiro lugar, por parte da empresa. Ele conta que, felizmente, no seu caso, isso existiu.
Porém, a fonte também levantou a dúvida do real impacto do profissional de saúde mental dentro da empresa, expressando que, enquanto as coisas não mudarem na essência, os afastamentos podem continuar existindo. “Se a pressão no trabalho for resultado da necessidade cada vez maior de entregar mais resultados, ignorando os próprios limites, que diferença o psicólogo da empresa consegue fazer?”, questionou.

Nova regra busca prevenir adoecimento mental nas empresas
Visando uma maneira de tentar reverter esse cenário, foi feita uma atualização na NR 01. Norma Regulamentadora que traz as disposições gerais relativas à segurança e saúde no trabalho, ela também elenca os requisitos para o gerenciamento de riscos ocupacionais e as medidas de prevenção em Segurança e Saúde no Trabalho. A NR 01 é importante por trazer os preceitos fundamentais dos cuidados que os empregadores devem estabelecer no ambiente de trabalho, a fim de garantir o bem-estar físico e mental do trabalhador.
A advogada Carla Piuco explica que as Normas Regulamentadoras foram aprovadas pela Portaria N.° 3.214, editada pelo Ministério do Trabalho em 08 de junho de 1978, e que existem 28 Nrs, sobre Segurança e Medicina do Trabalho. A profissional também explica que todas passaram por muitas atualizações, a fim de se adequarem ao mundo do trabalho que está em constante mudança.
Em 2024, através da Portaria 1.419/2024, a NR 01 foi alterada e acrescentou a necessidade de considerar os Fatores de Riscos Psicossociais Relacionados aos Trabalho (FRRT) dentro do GRO (Gerenciamento de Riscos Ocupacionais).
O GRO é um programa onde a empresa, através de levantamento de dados, identifica os perigos de possíveis lesões ou agravos à saúde, avalia os riscos ocupacionais, indica o nível de risco, implementa medidas de prevenção e comunica aos trabalhadores sobre os riscos.
Já os riscos psicossociais são reconhecidos como decorrentes de problemas na organização e gestão do trabalho, tais como cargas de trabalho excessivas, exigências contraditórias e falta de clareza na definição das funções, falta de participação na tomada de decisões que afetam o trabalhador, falta de apoio das chefias ou dos colegas, assédio psicológico e sexual, etc.

A nova atualização da NR 01 deveria ter entrado em vigor em 26 de maio, porém, ela foi adiada até 2026. A advogada explica que a Confederação Nacional da Indústria e as Federações das Indústrias de vários estados do país se mobilizaram e argumentaram juntos ao Ministério do Trabalho que precisariam de um tempo maior para se estruturarem, causando esse adiamento. Inclusive, o Serviço Social da Indústria (SESI) irá oferecer auxílio às indústrias a fim de garantir a adequação as novas exigências da NR 01.
Uma grande dúvida que pairava sobre essa lei era se todas as empresas iriam ter que se enquadrar nesses novos padrões. A advogada explicou que isso irá variar de empresa para empresa. “Na avaliação de riscos psicossociais, cada empresa irá considerar quais os fatores da sua atividade de trabalho são estressores e quais podem levar à ocorrência de doença mental ou agravamento de doença mental”, enfatizou.
Também explicou que GRO não é obrigatório para MEIS (Micro Empreendedores Individuais) e para as empresas cujas atividades são legalmente enquadradas em atividade de baixo risco, os chamados riscos 01 e 02 (existe uma tabela de atividades de risco que vai de 01- baixo risco a 04-alto risco). Desse modo, as MEIs e as empresas de atividade de risco 01 ou 02 não serão afetadas pelas atualizações da NR 01.
Carla entende a aprova a importância da lei, contudo ressalta que em um país do tamanho do Brasil, onde a maioria das empresas são de pequeno e médio porte, a redução de fatores de risco psicossociais, mesmo com as inovações da NR 01, pode ainda ser uma realidade distante.

Porém, a advogada também entende que esses casos podem variar de acordo com o perfil de cada trabalhador. “Ademais, entendo que a cultura do cuidado com a saúde mental passa também pelo próprio trabalhador que por vezes cumpre jornadas exaustivas priorizando uma renda maior em detrimento do seu descanso e vida social . A necessidade e a realidade se impõem e os trabalhadores se submetem por vezes a mais de um tipo de trabalho para complementar sua renda”, sublinhou.
A atualização da NR 01 e outras iniciativas que colocam a saúde mental no centro das discussões são passos importantes, mas ainda insuficientes diante da realidade enfrentada por muitos trabalhadores. O adoecimento mental não gera impacto apenas na vida de quem sofre, mas também atinge famílias, colegas e as próprias empresas, que lidam com afastamentos, queda de produtividade e um ambiente cada vez mais adoecido. Enquanto as mudanças não saem do papel e a cultura do cuidado não se torna prioridade, a sobrecarga segue produzindo uma bola de neve difícil de conter e que cobra seu preço de todos os lados.