Os invisíveis da cama de concreto e do travesseiro de madeira

As calçadas são como borrachas que apagam a história daqueles que um dia foram mais que apenas um número

O que para alguns é papelão, para outros é moradia. O que aos olhos do mundo é “lixo”, para eles são os únicos bens materiais que ainda podem chamar de seus. Um levantamento do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), realizado em dezembro de 2024, aponta que Porto Alegre possui 5.373 pessoas vivendo em situação de rua.

Este número aumentou de um tempo para cá: eram 4.064 em dezembro do ano anterior. No entanto, seria insensível tratá-los como meros algarismos, afinal, são vidas, são histórias, são pais, filhos, filhas, netos, netas, irmãos e irmãs de alguém. Em cada chão de pedra, escondido entre papelões, roupas e cobertas, encontra-se um ser humano, que em algum momento perdeu-se no caminho e hoje vive à mercê do que as ruas podem lhe entregar.

Os dias da semana são parecidos. É um de cada vez. Pensar no futuro quando não se sabe o que vai comer, – ou se vai comer – parece uma tarefa um tanto quanto ingrata. Aos sábados de manhã, o movimento na avenida João Pessoa, uma das mais conhecidas de Porto Alegre, diminui. O que não diminui é o número de pessoas em situação de rua nos seus arredores.

Existe amor na rua

Por ali, estão pessoas como a Raquel. Brincalhona e de sorriso fácil, mantém um semblante leve, apesar das dificuldades que a vida lhe impôs. Aos 54 anos, conta que passou quase toda sua existência sem ter uma casa para chamar de sua. “Estou na rua há 41 anos. Tudo por causa de um incêndio. Perdemos nossa casa e o restaurante da família. Eu era bem de vida, mas depois desse acontecimento tudo desandou”, conta Raquel Naibert, fazendo questão de deixar claro que o “t” é mudo.

Raquel Naibert conta suas experiências e aprendizados como pessoa em situação de rua. MARCEL VOGT/BETA REDAÇÃO

Nascida na Restinga, Zona Sul de Porto Alegre, a mãe “Quel”, como é conhecida pelos amigos, já viu e viveu muita coisa morando na rua. A maior parte não gosta nem de lembrar a perda do pai, da sua única filha e abusos que a levaram a ficar seis meses em coma. “Tudo isso faz com que a gente se envolva com muita coisa errada. O colégio ensina a ler e a escrever, a rua ensina sobre a vida da maneira mais cruel possível”, sentencia.

Raquel gosta muito de escrever e é dona de uma caligrafia invejável. Em tempos idos escrevia com mais frequência, como um diário. No caderno ilustrado com adesivos do Pernalonga, ela dá vida aos pensamentos. “Tenho diversos deles. Fiquei um tempo sem pegar na caneta, mas agora quero começar um novo”. Essa paixão fez com que se aproximasse do jornal Boca de Rua, que há 25 anos é produzido, gerido e vendido por pessoas com trajetória de rua em Porto Alegre. Frequentadora assídua das reuniões semanais do veículo, carregava consigo diversos exemplares da edição mais recente, pois vê no jornalismo periférico uma possiblidade de mudança.

A mãe “Quel” escreve poemas e histórias em um dos seus cadernos. MARCEL VOGT/BETA REDAÇÃO

A reportagem foi produzida dia 14 de junho, seis dias antes do início do inverno. O sábado em questão apresentava temperaturas relativamente amenas que giravam em torno dos 15°C. Entretanto, os dias anteriores, e principalmente, as noites, apresentaram temperaturas mais baixas. Nas últimas semanas Porto Alegre registrou a morte de quatro moradores de rua em meio à queda brusca nos termômetros.

Questionada sobre o frio, Raquel respondeu com o bom humor que lhe era característico. “Para quem ‘tá’ sozinho sim, mas eu tenho meu cobertor de orelha né”, referindo-se ao companheiro, com quem está junto há quatro anos. A brincadeira logo foi substituída por um semblante fechado quando se aprofundou no assunto. “A droga e o álcool diminuem a sensação de frio. Os entorpecentes se misturam com a depressão e desgraçam nossa vida”, explica.

Durante o mês de maio, a Pastoral do Povo da Rua denunciou que presenciou agentes municipais recolhendo colchões, cobertores e pertences de pessoas em situação de rua.  Desde agosto de 2023, esse tipo de ação é proibida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A prefeitura divulgou uma nota sobre as mortes, mas em nenhum momento citou algo sobre esse suposto recolhimento. O Núcleo de Defesa em Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado (DPE/RS) já encaminhou um ofício à Secretaria Municipal de Assistência Social solicitando informações sobre a abordagem de pessoas em situação de rua e está analisando o material entregue pela prefeitura.  

“Isso realmente acontece. Eles chegam e levam nossas coisas, não tem nem conversa. Quem retruca leva um choque de 5 mil volts. Foi assim que mataram o seu Adão.  Ele tinha 62 anos e problema no coração. Na ocasião, estava apagado depois de ter bebido. Os guardas acharam que ele não queria levantar, deram um choque no pescoço e ele acabou falecendo”, recorda Raquel.

Por maiores que sejam os desafios, ela os enfrenta de peito aberto juntamente com seu companheiro, Anderson. Aos 42 anos, o rapaz de poucas palavras e que esconde os longos cabelos pretos embaixo do boné afirma que está sem moradia há três décadas, desde o dia que fugiu de casa em Viamão. “Era muita pressão para cuidar dos meus irmãos e não gostava do meu padrasto, então fui embora”.  O casal, que divide um único cigarro e aparenta aproveitar cada tragada como se fosse a última, possui, junto, 70 anos de rua. “Se é difícil me reerguer? Não existe muita política pública, me reerguer do jeito que foi, nunca mais vou”, avalia Raquel. Apesar disso, faz o que pode para se manter de pé. Como ela mesma escreve em seu diário, “é nas pequenas alegrias que fazemos nossa própria vida valer a pena”.

Anderson Ribeiro e Raquel Naibert dividem alegrias e dificuldades em parceria. MARCEL VOGT/BETA REDAÇÃO

Olhares que machucam

Não muito distante do local onde o casal se encontrava, um senhor chamava atenção. Carregando um carrinho que parecia quase mais pesado que ele, próximo a um contêiner de lixo, estava Vitorino Alberto Rochedo Loureiro. O nome longo faz jus à sua história de vida, cheia de percalços e transformações, dividida em cinquenta e três capítulos, número da sua idade.

Vitorino Loureiro é religioso e conta que sua vida melhorou muito depois que conheceu Jesus. MARCEL VOGT/BETA REDAÇÃO

Ele não lembra exatamente há quanto tempo está sem moradia. Diz que foram algumas idas e vindas, entre a rua e a casa da família, até que finalmente não teve mais volta. Ao ser perguntado sobre o que o levou, de fato, a ficar nessa situação, Vitorino desconversava, visivelmente desconfortável. “Minha história é muito comprida, para eu contar seriam necessários alguns dias de conversa”, diz, enquanto dá uma leve risada.

Já faz um bom tempo que Vitorino fica no mesmo lugar, próximo à avenida João Pessoa. Por conta disso, já conhece a vizinhança. “O pessoal aqui sabe que sou tranquilo, então me ajudam entregando o lixo para que eu possa levar para a reciclagem e ganhar os meus trocados.”

Apesar do frio, o bageense gosta de ficar na rua mesmo. “Antigamente, tentava ir para os albergues, mas hoje já desisti, muitas vezes tínhamos que ficar horas na fila durante à tarde para conseguir uma vaga. Além disso, só pode ficar 15 dias ali e depois tem que sair. Prefiro ficar por aqui mesmo, no mundo eu sou livre”, descreve Vitorino.

Sobre a atuação dos agentes municipais, compartilha da mesma opinião que Raquel. Conta que já teve muitos dos seus bens recolhidos contra sua vontade. “Tem pessoas que estão na rua que realmente são bandidas, mas a maioria não é. Muitos tem até formação acadêmica, mas acabaram tomando decisões erradas em suas vidas. Não é justo serem tratados dessa maneira.”

Todavia, não é isso que mais o machuca. São os olhares – ou então, a falta deles. Talvez seja um sentimento paradoxal, em que a mistura dessas duas formas de invalidação se faça presente. “Muitas mulheres, quando veem que a gente está passando por perto, chegam a apertar a bolsa no braço, mas na maioria dos casos, as pessoas simplesmente fingem que não existimos”, descreve com o olhar entristecido.

Vitorino é catador e diz que prefere ganhar seu dinheiro de forma honesta do que “pedir por aí”. MARCEL VOGT/BETA REDAÇÃO

Em meio à tanta hostilidade, acabou buscando conforto na religião. Vitorino conta que a partir do momento que se reencontrou com Jesus se sentiu mais feliz. “Lembro de cada versículo, costumo dizer que carrego a Bíblia no meu coração. Desde que me converti não coloquei mais uma gota de álcool na boca”.

Essas são apenas três das milhares de pessoas em situação de rua que existem em Porto Alegre. Essas tiveram suas histórias contadas. Por alguns minutos, quem sabe, puderam sentir que não são invisíveis. Mas e o restante? E as outras 5.370 pessoas, terão a mesma oportunidade? Possivelmente não.

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