Do controle à tela: o desafio de transformar jogos em séries e filmes de sucesso

Como adaptar narrativas interativas para o audiovisual, conquistando fãs e novos públicos sem perder a essência dos jogos que conquistaram o mundo

Nos últimos anos, as adaptações de jogos eletrônicos para cinema e televisão deixaram de ser apenas uma promessa para se tornar uma tendência consolidada no audiovisual. Títulos como The Last of Us e Arcane conquistaram público e abriram espaço para uma nova forma de contar histórias, que dialoga diretamente com a cultura gamer — um mercado que, segundo levantamento da Meio & Mensagem, movimentou cerca de US$ 187,7 bilhões em 2024, com expectativa de alcançar US$ 213,3 bilhões em 2027.

Essa expansão econômica faz com que estúdios e plataformas de streaming enxerguem nas narrativas já consolidadas dos jogos uma oportunidade valiosa. Porém, a simples transposição dessas histórias para as telas não é uma tarefa fácil. Transformar um jogo em série ou filme implica, necessariamente, repensar a estrutura narrativa, a linguagem e o ritmo — elementos que funcionam de modo muito distinto entre os dois universos.

Os desafios da adaptação 

Ao contrário dos filmes e das séries, que conduzem o espectador por uma experiência linear e controlada, os jogos oferecem ao jogador autonomia para agir, escolher caminhos e interagir em mundos complexos e dinâmicos. Chris Gonzatti, pesquisador em narrativas transmídia, ressalta essa diferença: “O jogo permite explorar e decidir os rumos da história; na adaptação, essa experiência interativa se perde, e o envolvimento emocional precisa ser reconstruído por outras vias.”

Essa transformação estrutural traz desafios que vão além do roteiro. Enquanto jogos frequentemente apresentam múltiplos finais e uma liberdade quase infinita para o jogador, filmes e séries exigem uma narrativa com começo, meio e fim definidos. O teórico Henry Jenkins defende que as adaptações mais bem-sucedidas são aquelas que não tentam replicar a história original, mas a expandem, construindo pontes que conectam o universo do jogo a novas possibilidades narrativas. No entanto, muitas produções caem na armadilha da condensação, simplificando personagens e conflitos para caber no formato audiovisual — um caminho que, segundo Gonzatti, pode diluir a essência da obra.

Fã destaca o
impacto emocional que os jogos provocam.
NÍCOLAS SUPPELSA / BETA REDAÇÃO

The Last of Us: uma adaptação que emocionou e dividiu opiniões 

Um dos exemplos mais emblemáticos desse processo é a série The Last of Us, adaptação do famoso jogo da Naughty Dog para a HBO. Gabriel Damke, fã da franquia, destaca o impacto emocional que o jogo provoca: “A sensação que fica é de que não existe certo ou errado, apenas decisões e suas consequências”. A primeira temporada da série conseguiu capturar essa complexidade, permanecendo fiel ao material original e mantendo a essência do drama humano.

Porém, essa fidelidade não impediu mudanças importantes, especialmente na transição do interativo para a série. “No jogo, os personagens possuem diversas formas de lidar com inimigos; na série, optaram por um realismo maior, onde os personagens matam apenas quando necessário”, observa Gabriel. Essa adaptação das mecânicas para a narrativa visual revela o cuidado em respeitar os limites do meio, mas também evidencia que nem tudo pode ser transposto diretamente.

A segunda temporada, por outro lado, gerou controvérsia entre fãs. Mudanças significativas no roteiro desconectaram parte da audiência fiel, levantando o debate sobre até que ponto a adaptação deve priorizar a fidelidade versus a liberdade criativa.

Entre fidelidade e universalidade: como manter o equilíbrio 

O maior desafio das adaptações está, portanto, em encontrar o ponto de equilíbrio entre agradar aos fãs mais apaixonados e conquistar um público geral, que muitas vezes desconhece o universo original. Gonzatti alerta para os riscos de ambos os extremos: “Ser fiel demais pode alienar quem não conhece o jogo, enquanto tentar agradar a todos com uma narrativa genérica pode descaracterizar completamente a obra”.

Assim, a tradução criativa aparece como a estratégia mais promissora. Em vez de simplesmente copiar a história, é preciso entender o que faz o jogo especial — seus temas, personagens e atmosfera — e reinterpretar esses elementos em uma linguagem audiovisual que dialogue com novas audiências e formatos. Isso exige escuta atenta à comunidade gamer e uma sensibilidade para adaptar o potencial narrativo dos jogos para a televisão e o cinema.

A interatividade dos jogos pode se perder
na adaptações.
DIVULGAÇÃO / NAUGHTY DOG

Uma tendência que vai além do entretenimento

A Bain & Company estima que a receita global de videogames pode crescer cerca de 6% ao ano até 2028, alcançando US$ 257 bilhões. Gonzatti reforça o valor dessas propriedades intelectuais: “Jogos têm um enorme potencial para ampliar fronteiras da narrativa e da cultura pop contemporânea”.

Porém, ele faz um alerta importante: “O mercado corre o risco de saturar com produtos genéricos se não houver respeito e profundidade na adaptação”. O diferencial está na intencionalidade e na qualidade da tradução entre mídias — quando bem feita, a adaptação não é só um jogo que virou série, mas uma obra que enriquece o universo cultural e expande as possibilidades narrativas.

O futuro do audiovisual está no encontro entre jogos e telas

Mais do que consumir, as audiências atuais querem sentir-se parte das histórias. As adaptações de jogos para cinema e TV são uma expressão clara dessa transformação na maneira de contar e viver narrativas. Elas revelam o potencial do audiovisual para se reinventar, dialogar com outras mídias e atender a uma geração que valoriza a imersão e a participação.

O “checkpoint” entre o mundo dos jogos e das telas pode representar um novo capítulo para a indústria do entretenimento — uma ponte entre interatividade e experiência compartilhada, entre controle e contemplação, entre o jogador e o espectador. Nesse cenário, as adaptações bem-sucedidas serão aquelas que respeitarem a complexidade e alma dos jogos, ao mesmo tempo em que se tornam arte audiovisual com vida própria.

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