Rio Grande do Sul sofre mudanças na fauna e na flora após inundações de maio

Especialistas explicam efeitos da calamidade no estado e falam sobre como agir diante de novos cenários climáticos
O Rio Grande do Sul está passando por extremos climáticos cada vez mais frequentes e com maior intensidade (Foto: Camila Domingues/Palácio Piratini)

As recentes enchentes no Rio Grande do Sul tiveram um impacto significativo na fauna e flora da região. A vegetação natural desempenha um papel crucial na retenção de água e proteção do solo. No entanto, a destruição das áreas de Mata Atlântica, um bioma prevalente no estado, exacerbou os efeitos das enchentes, levando à erosão do solo e à dispersão de sedimentos.

A Universidade Federal do Rio Grande (Furg) destaca a formação de uma mancha de sedimentos que se estende do Lago Guaíba para a Lagoa dos Patos, evidenciando a quantidade de material transportado pelas águas.

Em termos de fauna, a enchente afetou severamente tanto animais terrestres quanto aquáticos, peixes foram dispersos pelas inundações. Assim, muitos animais ficaram presos em áreas urbanas e agrícolas. No centro de Porto Alegre, por exemplo, foram observados jacarés, peixes e até piranhas em áreas afetadas pela água.

Mudança de habitat

Além disso, houve um aumento significativo de infestações de baratas e ratos, que foram forçados a sair de seus habitats naturais devido às inundações. A Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Rio Grande do Sul informou que mais de 11 mil animais foram resgatados, mas estima-se que cerca de 275 mil animais, tanto silvestres quanto domésticos, foram impactados pela emergência.

Segundo o biólogo Pedro Maria de Abreu Ferreira, não se sabe ao certo quais são os impactos mais significativos na flora e fauna pela calamidade. “Isso será respondido somente com estudos mais detalhados”, explica.

O biólogo, que é professor do Programa de Pós-graduação em Ecologia e Evolução da Biodiversidade da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC RS), salienta que, em termos gerais, o que se sabe é que houve um grande deslocamento de sedimentos no curso de alguns rios afetados pelas enchentes, localizados na região do planalto meridional no nordeste do estado gaúcho até a região metropolitana. “Estes sedimentos desaguam direta ou indiretamente no Guaíba, o que causou altos níveis de inundação em regiões da cidade de Porto Alegre”, complementa.

Nas Áreas de Preservação Permanente (APP) íntegras ou relativamente bem preservadas, impactos percebidos envolvem destruição parcial da vegetação. “Mas nestes casos a regra é que a região bem preservada funciona como um tampão entre os rios e as áreas com uso antrópico, reduzindo danos à estruturas e perdas humanas. Mas é provável que os maiores danos à biodiversidade causadas pela enchente tenham ocorrido nestas áreas”, explica o professor da PUCRS.

Além da vegetação de APPs afetadas pela enchente, a fauna que usa destas áreas como habitat foi afetada. Pedro ressalta que áreas agrícolas também foram atingidas. “Há relatos de perdas totais de produção, incluindo uma inviabilização momentânea de novos plantios devido a problemas causados pela desestruturação do solo causada pelo fluxo das águas.”

Animais que utilizam dessas áreas agrícolas se tornaram vítimas, especialmente nos rios da região da serra, onde o fluxo das enchentes foi muito rápido. “Em locais com construções e ocupação humana próximas aos leitos regulares de rios, houve dano potencial aos animais e plantas presentes nestes ambientes mais antropizados. Além, claro, de danos humanos e patrimoniais”, enfatiza.

Manifestações no meio ambiente

Rualdo Menegat é geólogo e estudioso da natureza e suas manifestações. Ele avalia que a precipitação que ocorreu no Rio Grande do Sul era previsível e ocorreu em um território onde há muitas atividades humanas, com uma alta concentração populacional. “A maneira como a água escorre e a alta atividade humana contribuiu para que o danos fossem muito prejudiciais.”

O doutor em ciências na área de Ecologia de Paisagem e professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) destaca que para poder ter uma ideia das consequências, precisa ser refletido sobre o percurso do fenômeno climático no estado. Segundo ele, uma precipitação de 800mm na região nordeste do estado, entre quatro e cinco dias, foi uma das causas meteorológicas do fenômeno climático no Rio Grande do Sul. “Esta água precipitada no planalto meridional rapidamente escoou para vales profundos de cinco importantes rios, sendo estes o Alto Jacuí, Taquari-Antas, o Caí, Sinos e Gravataí”, concluiu o geólogo.

O geólogo também explica que estes vales não contam com planícies de inundação, fazendo com que a água escorra por esses rios rapidamente ganhando volume e fazendo com que inundações de 20 metros fossem possíveis em certas regiões. “Os vales profundos desembocam em depressões periféricas na região do Baixo Jacuí (Santa Maria, Rio Pardo, Estrela, Lajeado etc.) até a região metropolitana de Porto Alegre. Já na Capital gaúcha, confluem no Delta do Jacuí e, ali em diante, a água não escorre como torrente fluvial, mas sim por extravasamento de lagos. Primeiro o Guaíba extravasa para Laguna dos Patos, e esta por sua vez, para o Oceano Atlântico”, destaca.

Para Rualdo, os impactos na vegetação ocorreram em três regiões: “No nordeste do estado solos foram arrancados nas margens dos rios. Nos vales profundos foram erodidas margens, levando a vegetação ciliar e enormes deslizamentos de terra. Já nas regiões mais baixas, a água extravasou o canal fluvial cerca de 1.500 metros para os cinco rios que envolvem o estado. Como resultado, grande quantidade de lama acabou sendo depositada.” O geólogo salienta que nas regiões marginais do Lago Guaíba e Laguna dos Patos o impacto foi menor. “Porém, grandes deposições de argila e areia foram sentidas”, acrescenta.

A fauna das regiões ribeirinhas foi afetada na mata ciliar, “uma região úmida que conta com grande quantidade de anfíbios répteis, aves e pequenos mamíferos que vivem nestas margens”, aponta Rualdo. Já em regiões de banhado, o geólogo revela que a lama acabou inibindo nos campos úmidos a proliferação de fauna. “Já onde houve deslizamentos de massa nos solos, a lama diminuiu o oxigênio da água levando a morte de crustáceos e peixes”, conclui.

Rualdo salienta que o problema das inundações e seus impactos não foram os altos níveis de precipitação e velocidade das chuvas, mas a maneira de como o estado e a sociedade atuaram diante situação de calamidade. “O governo deve agir no sentido de diminuir a vulnerabilidade e aumentar a capacidade da sociedade de enfrentar esta calamidade.”

Regiões hipáricas, como banhado e campos, ajudam a filtrar a água, o que diminui o volume da mesma. “Porém, estes sistemas ajudam para que águas não atinjam volumes numa velocidade relâmpago, onde já fica tardio tomar medidas de prevenção e evacuações”, explica. Na visão do especialista, esses serviços ecossistêmicos foram muito desestruturados no último período devido à intensificação do agronegócio e da soja e pela desestruturação dos planos diretores urbanos. “O desmantelamento do código florestal e leis ambientais contribuiu para que estes serviços que protegiam a natureza causassem um desastre maior do que o esperado.”

Outra questão abordada pelo geólogo foi que capacidade do Estado de enfrentar estes fenômenos foi diminuída pela privatização de empresas importantes que são críticas em momentos de emergência como companhias de energia, de saneamento básico, hospitais, levando muitos a ficarem sem luz e água. “O Estado ficou sem uma inteligência estratégica de planejamento”, reitera. “É como se os salva-vidas fossem trancados em uma sala, impedidos de ajudar.”

Pedro Maria de Abreu Ferreira reitera que a ação de esferas públicas não foi eficiente. “Alertas para evacuação de áreas, com base em modelos climáticos dos órgãos competentes, deveriam ser veiculados de forma mais clara, veemente e consolidada.”

Ele, porém, avalia que na questão de apoio de auxílio e apoio financeiro o poder público está fazendo o que é mais adequado diante do tamanho da tragédia. “Mas os problemas claros da gestão estão mais evidentes na questão das bombas que deveriam impedir o acúmulo de água em diversos locais de Porto Alegre. Mesmo que isso seja responsabilidade dos municípios, me parece evidente que a esfera estadual poderia alocar recursos para auxiliar na resolução deste problema e outras questões logísticas, que ocorrem em mais municípios”, conclui o biólogo.

“O ruído na comunicação entre os gestores e amarras burocráticas da gestão pública em si passou uma imagem de despreparo e pouca eficácia na reação ao desastre e sua predição e sistemas de alerta”, avalia Pedro.

O professor da PUCRS avalia que para catástrofes como essa não se repetirem, as medidas necessárias são muitas. “O mínimo seria uma atualização dos sistemas de monitoramento, alerta, mitigação e reação às enchentes e demais eventos extremos recorrentes nas diferentes regiões do Rio Grande do Sul”. Segundo o biólogo, a elaboração de planos de ação para casos de desastre também é necessária. “Esses planos devem ser públicos e acompanhados de ações permanentes de educação e conscientização da população potencialmente afetada.”

Rualdo Menegat avalia que para que não ocorram tragédias semelhantes, é necessário pensar em um plano de gestão de riscos. “O principal desafio é compreender que as mudanças climáticas são uma realidade e vieram para ficar. Não são uma inevitabilidade, apenas representam uma ameaça, mas tem como enfrentar.” O geólogo salienta que o pior recado que pode surgir desse evento recente é que são tragédias, pois são evitáveis. “Houve uma fraca reação devido à ausência de políticas públicas que mostrem a importância de temas relacionados ao meio ambiente, da emergência climática, da gestão de riscos, da gestão das vulnerabilidades, que deveriam fazer parte da compreensão do que é viver no Rio Grande do Sul”, conclui.

Geólogo afirma que o poder público não agiu da melhor forma ao enfrentar o momento de calamidade (Foto: Rualdo Menegat/Arquivo Pessoal)

Pedro costuma dizer que o Guaíba é um elemento muito importante para a região de Porto Alegre. “Visto que a maior parte da água que bebemos vem de nós, o que acontece nele, acontece conosco. Precisamos ter esse tipo consciência com a natureza além da diminuição de resíduos”, conclui o biólogo.

O professor do programa de pós-graduação em Ecologia e Evolução da Biodiversidade reitera que, assim como muitos outros locais do planeta, o Rio Grande do Sul está passando por extremos climáticos cada vez mais intensos e frequentes e isso já vem sendo alertado há alguns anos. “Porém, nossos biomas não irão passar por fases de adaptação destes eventos que são apenas mais uma força atuando no processo de seleção natural e na configuração de paisagens naturais. Estes seguirão existindo por muitos milhões de anos adiante, passando por diversas mudanças em decorrência da seleção natural na escala temporal geológica”, salienta.

Pedro relata que estas enchentes de maio de 2024 serviram para mostrar o quão valiosas são as Áreas de Proteção Permanente bem preservadas. “Precisamos também priorizar investimentos em uma produção agrícola sustentável e que atenda às demandas nutricionais reais”, reitera o professor da PUCRS.

“Digo para meus alunos que precisamos do nosso ecossistema para existir, mas a recíproca não é verdadeira. Devemos nos preocupar sim com a viabilidade da nossa própria espécie, no contexto de mudanças climáticas globais e o aumento da frequência de eventos extremos. Há um consenso científico que estes impactos são causas imediatas destes extremos, mas reduzi-los é evidentemente o primeiro passo”, conclui Ferreira, que leciona a disciplina de Ecologia e Sustentabilidade.

A recuperação da fauna aquática, especialmente de peixes e anfíbios, é esperada para ocorrer relativamente rápido devido à alta resiliência dessas espécies. Entretanto, a introdução de novas espécies no ecossistema, como a piranha e a tilápia, pode ter efeitos duradouros e complicar o processo de recuperação.

Quanto à flora, a destruição das áreas de vegetação natural tem um impacto significativo na recuperação das áreas afetadas. Nas planícies, onde a vegetação é mais adaptada às flutuações de água, a recuperação pode ser mais rápida. No entanto, nas áreas serranas e urbanas, onde a vegetação já está bastante degradada, a recuperação será mais lenta e complicada.

Marco Antonio de Oliveira Moreira

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