*Matéria produzida por Dominik Machado, Giordano Martini, Nicolas Córdova e Petra Karenina
Era uma tarde ensolarada de outubro, propícia para acompanhar uma partida de futebol. O torneio era o Gauchão Feminino, e os times, o Internacional (Porto Alegre) e o Futebol com Vida (Viamão). Mesmo sendo sábado, e com entrada gratuita, o público foi pequeno. Nas arquibancadas, o público era composto principalmente por parentes e amigos das jogadoras.
Apesar de ter um dos maiores e melhores estádios do país, o time feminino do Inter costuma utilizar o campo do SESC, que fica na zona leste da capital, devido aos altos custos de abertura do Estádio Beira-Rio, porém o estádio funciona para o futebol feminino em algumas ocasiões, como a final do Gauchão Femino, que geralmente é composto pela dupla Grenal. O estádio do Inter, inclusive, é um dos estádios indicados para a Copa do Mundo de Futebol Feminino em 2027, que será realizada no Brasil.
O placar da partida deu bem a mostra da diferença de estrutura e condições de trabalho dos dois times: 15 a zero para o Inter. O time colorado feminino patrolou as jogadoras do Futebol com Vida, que é uma SAF (Sociedade Anônima do Futebol). Diferentemente do Inter, o time de Viamão não paga salário para as suas jogadoras.
“As gurias trabalham o dia todo, algumas trabalham à noite, e é difícil conseguir horário para treinar, porque a vida delas não é só o futebol. Elas não conseguem ter o futebol como atividade principal”, comentou Carolina Pinho, esposa da jogadora Lícia.
A meio-campista começou sua carreira no Internacional, mas precisou parar para fazer faculdade. Agora, aos 37 anos e atuando como professora de educação física, ela está retornando ao futebol apenas por paixão.
O personal trainer Emerson Silva era outro familiar que também estava acompanhando a partida. Sua filha, Ana Silva, de 19 anos, jogava no Oriente, time de Canoas, mas o clube fechou sua delegação feminina. Atualmente, ela atua no Futebol com Vida. Emerson explica que clubes como o que a filha joga não conseguem manter o futebol feminino durante todo o ano.
“Quando o campeonato está prestes a começar, eles convocam as meninas e se organizam um ou dois meses antes. É por isso que vemos a diferença no placar. Não adianta ficar triste; essa é a verdade”, comenta.
O pai da jogadora também menciona que a falta de investimento desmotiva as atletas a continuar nessa carreira.
“Na segunda-feira, ela precisa trabalhar. Se ela se machucar aqui hoje, como vai trabalhar na segunda? É difícil eu cobrar dela em uma situação assim”, finaliza.
Desigualdade é amplamente conhecida pelos gestores públicos
A realidade da Ana e da Lícia é compartilhada por 70% das atletas do futebol feminino no Brasil. A grande maioria tem dupla jornada, e quase metade (47,9%) não recebe qualquer ajuda de custo para treinar. Estes dados estão presentes parcialmente no Diagnóstico do Futebol Femino, pesquisa divulgada pela Secretaria Nacional de Futebol e Defesa dos Direitos do Torcedor, que faz parte de um documento ainda mais amplo, denominado Estratégia Nacional para o Futebol Feminino, produzido pelo Ministério do Esporte (MESP), que visa enfrentar desafios históricos, como a falta de investimento, desigualdade de gênero, e ausência de infraestrutura adequada.
Através de um pedido via Lei de Acesso à Informação, a reportagem obteve a totalidade dos resultados dos questionário, onde 432 (Futebol Feminino) e 356 (Categoria de Base) mulheres de áreas variadas dentro do esporte responderam.
A reportagem também conversou com Marluce Magalhães e Geraldo Magalhães, pais da atleta Giulia Giovanna, do Internacional. A família da jogadora vem de Brasília e conta que Giulia joga futebol desde cedo.
“Primeiro, ela foi para a escola do Cruzeiro lá em Brasília, e com 14 anos foi ‘achada’ entre os meninos que ela jogava. Então foi para outro time em São Paulo, e de lá ela veio para o Inter” explicou a mãe.
Marluce e Geraldo continuam morando em Brasília, enquanto Giulia mora em um alojamento disponibilizado pelo Internacional. A atleta passou por diversos clubes durante sua carreira e os pais, que a acompanham nessa jornada, enxergam que o momento em que ela está é o melhor.
“Hoje a gente vê uma estrutura diferenciada aqui no sul. Por onde ela passou, com certeza foi a melhor ” enfatizou Marluce.
É importante ressaltar que o Internacional é um clube que já tem uma estrutura formada, enquanto diversos outros times do futebol feminino não tem todo esse investimento, conforme vimos nos relatos dos familiares da equipe Futebol Com Vida.
“Desde quando ela iniciou, a gente acompanha o crescimento do futebol feminino, mas chegar a um campo como esse, bem estruturado como é o do Internacional, foi bem complicado.” finalizou o pai da jogadora.
O Internacional, por ser um dos gigantes do estado e do Brasil, consegue fazer contrato de tipo CLT tanto em sua categoria adulta como nas categorias de base. Com base no questionário, podemos observar que grande parte dos contratos na categoria adulta são por CLT, porém a situação é bem diferente quando olhamos para o espectro da base, mostrando que as histórias das Gurias Coloradas ainda são exceção dentro do cenário do futebol feminino no Brasil.
As estrelas do Sub-20 que já vivem o sonho
Assistindo ao jogo no dia 14 de setembro, também estavam jogadoras do Sub-20 do Internacional, que na véspera, estavam comentando sobre a preparação para o Brasileiro Sub-20. Entre elas, estava Vanessa Arnaboldi, zagueira paraguaia de 19 anos que atualmente joga pelo Internacional e também pela seleção do seu país natal.
Vanessa comenta que começou a morar no Brasil por conta de seus padrinhos, que eram do Paraná, e lá começou a jogar no time do Toledo. Enfatiza que o começo foi muito difícil.
“No começo era muito ruim, chorava todos os dias! Todos os dias eu chorava com saudades de casa, porque eu era uma criança, tinha apenas 13 anos” explicou.
A zagueira ainda fala que, comparado ao seu país natal, a estrutura e investimento do Brasil no futebol feminino são significativamente maiores.
“Quando eu saí de lá eu nem sabia que tinha times grandes, como o Olímpia ou o Cerro Porteño. Eu vim até o Brasil, porque, eu achei que no Paraguai não tinha” concluiu a atleta, mostrando como falta visibilidade para a modalidade.
A reportagem ainda conversou com as atletas do Internacional Luiza Fridrich e Bianca Martins. Ambas são gaúchas, sendo Luiza Porto-Alegrense e Bianca de Derrubadas, no interior do estado, na divisa com Santa Catarina. Luiza concilia os estudos com a rotina de treinamentos e viagens, além de destacar o apoio da escola, embora reconheça as dificuldades devido às viagens. Ela iniciou no futebol jogando futsal na escola, e posteriormente entrou na Escola de Futebol da Duda, voltada para meninas, antes de passar pela peneira do Inter Sub-14.
Já Bianca, natural de Derrubadas, a cerca de 480 km de Porto Alegre, está há quase dois anos no Inter. Além de sua ligação com o Internacional, menciona ter jogado um campeonato gaúcho pelo Flamengo de São Pedro, um time de sua cidade, antes de se juntar ao clube colorado. Ambas compartilham o objetivo imediato de vencer o Campeonato Brasileiro Sub-20 e, no caso de Luiza, também o sonho de se formar enquanto concilia as demandas como atleta.