A proposta de abolir a escala de trabalho 6×1 (seis dias de trabalho e um de folga na semana) tem gerado um intenso debate nacional, envolvendo trabalhadores, empregadores e especialistas em relações trabalhistas. Esse movimento reflete uma tendência global em direção a práticas laborais mais flexíveis e alinhadas às demandas contemporâneas de produtividade e bem-estar. A mudança visa oferecer maior flexibilidade nas jornadas de trabalho, prometendo impactos significativos na qualidade de vida dos empregados. Enquanto muitos trabalhadores aguardam ansiosamente por melhores condições de equilíbrio entre vida pessoal e profissional, boa parte dos empregadores se mostram contrários, alegando implicações operacionais e econômicas que a transição pode gerar.
Em meio a essa discussão, a Beta Redação ouviu histórias de trabalhadores que vivenciam na prática as dificuldades e as esperanças que cercam a proposta. Entre eles, Viviane Casagrande, uma funcionária de 46 anos que trabalha em um shopping de Porto Alegre (RS). Com uma rotina intensa, antes do ofício de vendedora, trabalhou por 20 anos em uma autoescola, onde sua jornada era de segunda a sexta-feira. “Foi bem difícil me adaptar, mas tu vais te acostumando.” Viviane revela que apesar de sempre ter trabalhado com operações administrativas em suas experiências anteriores, se encontrou mesmo como profissional de vendas. Segundo ela, existia esse desejo de mudança em tentar algo novo. A vendedora ainda ressalta que um dos grandes motivos da transição de carreira foi o fato de que o comércio oferece um retorno financeiro mais atrativo.
Na rotina intensa de cada semana, o dia de folga é sempre o mais esperado, mas ainda assim insuficiente. “No dia da folga, a gente quer fazer tudo junto, quer aproveitar para ir ao médico, quer aproveitar pra ficar com os filhos, quer limpar a casa, lavar roupa, e no final precisa escolher uma coisa ou outra”, explica. Viviane, mãe de duas filhas – Ynaie, 23, e Bárbara, 10 – fala sobre o sentimento de frustração em não conseguir dar conta de tudo o que gostaria. A mais nova, segundo Viviane, sempre pergunta pelo dia de folga da mãe, ou até mesmo quando ela vai sair do emprego em shopping, seguindo essa rotina. “Às vezes eu queria sair com elas, queria passear, fazer alguma coisa, aí não dá, né?”, complementa.
Além do papel de vendedora e mãe, Viviane fala sobre como é difícil conciliar as relações com amigos e familiares. “Eu não tenho vida social”, enfatiza. Tudo precisa ser planejado e organizado com, no mínimo, muita antecedência. Convites de última hora? Nem pensar.
Quando pensa em uma escala diferente da que trabalha hoje, ela diz ter muitas dúvidas, sendo seu maior receio em relação às metas a serem batidas e, claro, o comissionamento. “Durante a semana, o movimento é fraco. Então, se eu trabalhar de segunda a sexta, vou ter uma meta para X bater. E aí, no final de semana, que o movimento é intenso, outras pessoas virão vender. Então é meio contraditório: ao mesmo tempo que é bom, seria ruim”, explica a vendedora.
Por falar em metas, esse é um assunto que preocupa permanentemente os comerciários, como é o caso de Viviane. “Eu preciso bater minha meta para poder ganhar um bom salário. Então acaba que não adianta eu vir só no meu horário. Tem vezes que eu trabalho sábado das 10h às 22h”, acrescenta.
“A gente fica estressada”
Quem também vive uma jornada dupla é a vendedora Cristina Vargas, de 23 anos. Mãe de uma menina de três anos, Cristina trabalhou anteriormente em uma escala 5×2 no modelo home office. “Foi bem ruim a mudança. Antes eu tinha tempo de fazer as coisas, de aproveitar mais a minha filha. Hoje em dia, chego em casa e ela já está dormindo”, explica. A rotina exaustiva de trabalho e a falta de tempo para a filha são motivos de preocupação. “Não consigo acompanhar ela aprendendo a falar palavras novas, não consigo acompanhar ela se desenvolvendo”, complementa.
Cristina divide esses anseios com o marido, que também trabalha no modelo 6×1. Ainda que a rotina do companheiro seja mais flexível, e isso permita que ele possa se dedicar mais aos cuidados da filha e da casa, ela fala sobre a falta de uma rede de apoio. “Temos os nossos familiares, mas não sobreponho a responsabilidade da minha filha sobre outras pessoas. Consigo conciliar bem o que eu posso. Dói ser mãe e ter que trabalhar fora, mas, ao mesmo tempo, dói ficar em casa e não poder dar tudo o que tu poderia para o teu filho”, explica.
Sobre o fim da escala 6×1, a opinião de Cristina é clara: precisa acabar. “Sou contra essa escala, não só por eu trabalhar nesse modelo, porque mesmo que não trabalhasse, seria contra por empatia. Às vezes a gente está fechando a loja às 22h e as pessoas ainda estão entrando, sabe?” Ela ainda explica que esse modelo limita o trabalhador e não permite que desfrute do tempo para si mesmo, para se autoconhecer, para amadurecer, poder se formar.
Cristina chama atenção para as respostas que o corpo dá para essa rotina intensa, sejam elas físicas ou mentais. A vendedora argumenta que isso atrapalha as próprias relações de trabalho, bem como as familiares. “A gente fica estressada com os nossos, essa é a pior parte. Você não tem tanta paciência por conta de uma noite maldormida, dor de cabeça, nas costas, pernas e pés por ficar o dia inteiro em pé”, acrescenta.
A CLT, a PEC e o movimento
Para compreender melhor as implicações da proposta de mudança na escala de trabalho, é importante considerar o que diz a legislação trabalhista. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) permite que setores específicos, como hotéis, hospitais e lojas de varejo, operem em escalas. Assim, a carga horária da escala 6×1 deve seguir as normas da CLT, com um máximo de 8 horas diárias e 44 horas semanais.
Quanto aos feriados, se uma data cai em um dia de trabalho, o empregado pode ter direito a um pagamento adicional ou a uma folga compensatória, dependendo das normas e acordos coletivos.
Recentemente, a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) apresentou uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que busca reduzir a carga horária semanal para 36 horas e implementar uma semana de trabalho de 4 dias. Essa proposta poderia substituir a tradicional escala 6×1, promovendo um modelo que prioriza a qualidade de vida dos trabalhadores.
A PEC já recolheu as 171 assinaturas necessárias para iniciar a tramitação no Congresso Nacional. Esse apoio reflete um interesse crescente por um modelo de trabalho que busca melhorar a qualidade de vida, reduzindo as horas trabalhadas e aumentando o tempo de descanso.
A proposta da deputada foi inspirada pelo movimento Vida Além do Trabalho (VAT), Fundado por Rick Azevedo, um ex-balconista de farmácia que se tornou vereador pelo PSOL no Rio de Janeiro, o VAT ganhou força após um vídeo seu viralizar nas redes sociais, no qual ele defendia o fim do modelo vigente. Com um abaixo-assinado que já conta com mais de 2 milhões de apoiadores, a ideia de Rick foi levada adiante pela correligionária Erika Hilton.
Próximos passos, prós e contras
O advogado trabalhista Pedro Fernandes Pereira Júnior detalha as próximas etapas da tramitação da PEC e analisa os possíveis impactos da proposta. Agora que o projeto já recolheu as assinaturas necessárias para poder tramitar no Congresso Nacional ele deve passar por algumas etapas. O primeiro passo é na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que verifica se a proposta está de acordo com as regras da Constituição e se pode continuar a ser discutida.
Caso a CCJ aprove, a PEC segue para uma Comissão Especial. Nesse momento, o foco é entender melhor o que a proposta muda na prática. Essa comissão pode realizar reuniões para ouvir opiniões de especialistas, trabalhadores, empregadores e outras pessoas interessadas no tema. Além disso, os deputados podem sugerir mudanças no texto original.
Depois dessa fase, a PEC vai para duas rodadas de votação no plenário da Câmara dos Deputados. Se passar, o mesmo processo acontece no Senado. Se a proposta for aprovada em ambos, ela não requer a assinatura do Presidente da República para vigorar.
Segundo Pedro, a principal vantagem da mudança para os trabalhadores é a melhoria na qualidade de vida. “Com períodos de descanso mais frequentes, há maior tempo para lazer, convívio familiar e recuperação física e mental, o que reduz o estresse e melhora a saúde”, afirma. Essa condição também beneficia os empregadores, que podem observar um aumento na produtividade e uma redução no absenteísmo, já que funcionários descansados tendem a cometer menos erros e faltar menos.
Por outro lado, o especialista alerta para o risco de que a mudança para a escala 6×1 possa incentivar uma maior precarização do trabalho, especialmente se não forem implementadas medidas adequadas para proteger os direitos dos trabalhadores. Esse risco se manifesta principalmente através do aumento de contratos temporários ou intermitentes. “Esses tipos de contratos podem ser atraentes para os empregadores, pois oferecem maior flexibilidade na gestão da força de trabalho e podem reduzir os custos associados a encargos trabalhistas permanentes. No entanto, eles geralmente oferecem menos garantias e seguranças para os empregados”, explica.
De acordo com Pedro, esse tipo de contatação pode acarretar incertezas para os trabalhadores, como a falta de estabilidade no emprego, menor acesso a benefícios como férias remuneradas e décimo terceiro salário e uma redução na contribuição para a aposentadoria. Essa precarização pode gerar um ambiente de trabalho onde os empregados se sintam menos valorizados e inseguros quanto ao futuro, o que pode impactar negativamente sua motivação e produtividade.