Conheça cinco histórias de transformação por meio da arte marcial brasileira.

As primeiras luzes do dia invadem as amplas janelas da academia de jiu-jitsu, pintando o tatame gasto em tons de dourado e revelando os vestígios de inúmeras horas de treinamento. O aroma característico de lona permeia o ambiente, enquanto os primeiros praticantes se reúnem, ajustando suas faixas com determinação.

Em uma das paredes, retratos preto e branco dos mestres da arte marcial supervisionam o ambiente, contando a história do jiu-jitsu brasileiro desde a origem até o momento atual na Alliance Novo Hamburgo. O último quadro, vazio, provoca em letras brancas sobre o fundo preto: “VOCÊ”.

Neste espaço, situado na avenida Nações Unidas, sob a sombra dos trilhos do trem, a reportagem descobriu outras cinco histórias que se entrelaçam. Sem super-heróis, essas narrativas apresentam pessoas comuns que, graças à disciplina e à comunidade que formaram, abriram caminhos para se tornarem versões melhores de si mesmas.

Para esses atletas, não se trata apenas de aprender a lutar. O jiu-jitsu, enquanto arte marcial, ensina a lidar com as adversidades em todos os lugares. Todos os entrevistados, sem exceção, disseram que o jiu-jitsu transformou completamente suas vidas.

Os irmãos Gracie são considerados fundadores da modalidade do Brazilian Jiu-Jitsu (Foto: Rodrigo Westphalen)

Entre pais e filhos

Há treze anos, Joel Luiz “Bobzão” Neres da Silva e seu filho Guilherme Dal Pra Neres da Silva embarcaram em uma jornada que mudaria suas vidas. Na época, Guilherme, com pouco mais de 10 anos, estava sedentário e com sobrepeso, assim como o pai.

Na busca por um esporte para Guilherme, Bobzão foi persuadido pelo irmão a tentar o jiu-jitsu. “Eu tinha preconceito, dizia que era ‘muita esfregação’”.

O ponto de virada ocorreu durante uma visita a uma academia, muito bem indicada. Ao chegarem lá, o professor informou que não havia treino para crianças, mas, se Bobzão começasse a treinar, então o filho poderia participar junto.

Bobzão negou, dizendo que estava “velho para isso”. O professor o examinou de cima a baixo e o provocou: “ele disse, na frente do meu filho, que eu parecia preguiçoso”, conta. “Eu não queria ser visto assim.” 

Bob é chamado de paizão por vários atletas e é reconhecido pela atenção aos alunos (Foto: Acervo Pessoal)

Assim, pai e filho começaram a treinar juntos. Após o primeiro treino exaustivo, Bobzão e Guilherme voltaram para casa, conversando animadamente no carro. A esposa de Bobzão, ao vê-los tão envolvidos e comunicativos, não pôde conter as lágrimas. “Minha esposa me disse: ‘fazia anos que tu não tinha uma conversa tão atenta com teu filho’”.

A arte marcial gerou uma ligação única entre Bobzão e Guilherme. Com o tempo, ambos não apenas perderam peso, mas descobriram uma paixão pelo esporte, pelas competições e por impactar positivamente na vida de outras pessoas.

“Hoje eu quero proporcionar essa experiência para o maior número de pais e filhos que eu puder”, conta o empresário, que assumiu a Alliance Novo Hamburgo em 2018, para não deixar o local fechar as portas.

O jiu-jitsu proporcionou a Joel e Guilherme uma relação rara entre pai e filho
(Foto: Acervo Pessoal)

Sempre por lá, Bobzão agora treina as equipes quando quer. É Guilherme, com 23 anos e uma faixa preta na cintura, que, atualmente, é o principal treinador da academia. E ele não se imagina fazendo outra coisa. “Hoje eu prefiro ser mais professor do que atleta”, comenta o jovem. “Estou ensinando algo que eu amo, sem precisar ficar nervoso ou cortar peso.”

Antes uma criança tímida, Guilherme agora é atleta e professor, sem medo da atenção (Foto: Acervo Pessoal)

O jovem esteve a primeira vez no World Jiu-Jitsu Championship, na Califórnia, EUA, em 2022. “Levantamos um dinheiro aqui na academia – com rifa, com feijoada… e consegui ir pro mundial”. Foi a primeira vez que Guilherme esteve fora do país. “Fiz duas boas lutas, mas perdi nas quartas [de final]. Fiquei a uma luta do pódio.” 

Antes do jiu-jitsu, quase não viajavam. “Meu pai tinha um emprego estável, ganhando bem em uma firma, e nunca tinha viajado de avião até começarmos a ir em competições em outros estados”. Agora, ele quer conseguir que o pai e a mãe possam viajar junto para o exterior. “Quero levar eles juntos para a Califórnia e, um dia, para a Europa”, fala com brilho nos olhos.

Joel, Guilherme e Vanessa são chamados carinhosamente de Bobzão, Bob filho e Bob mãe no Centro de Treinamento. (Foto: Acervo Pessoal)

O sonho da faixa preta

“Hoje eu estive em São Leopoldo, na Scharlau, para buscar salsichões para uma ação da Alliance”, comenta Giovani Goulart, 43, um dos mais antigos atletas de jiu-jitsu da academia. “Muitos nem sabem que eu estou sempre envolvido nisso.” Giovani já estava na faixa roxa quando Bobzão e Guilherme pisaram a primeira vez em um tatame.

Apesar de uma série de complicações de saúde, Giovani seguiu na luta sem baixar a cabeça (Foto: Acervo Pessoal)

O atleta fala com muita emoção sobre a própria história. Começou a trabalhar com 14 anos na indústria do calçado e, em dez anos, estava num cargo importante de uma multinacional. Viajou para a China, onde se descuidou da saúde e chegou a 147 kg.

Um mal súbito o fez voltar para o Brasil e recomeçar a treinar e a cuidar da alimentação. Em três meses, ganhou o primeiro campeonato gaúcho na faixa branca. Em quatro anos, chegou a 83 kg. A mudança foi radical na condição de vida e na autoestima.

Giovani mudou a alimentação e passou a se exercitar frequentemente (Foto: Acervo Pessoal)

Por razões de trabalho, novamente, parou de treinar. Ficou 5 anos longe dos tatames, enquanto Bobzão e Guilherme avançavam. Parou na faixa roxa. “Eu tinha um peso muito grande por não ter me focado em subir as graduações”, comenta.

Em Dois Irmãos, onde morava na época, sofreu consequências de um erro médico. Uma pneumonia mal administrada comprometeu totalmente os dois rins. “Há cinco anos eu faço hemodiálise, três vezes por semana, sessões de cinco horas”, explica. “E a minha vida não parou.”

Sob tratamento com hemodiálise, Giovani enfrentou um início de depressão e uma parada cardiorespiratória. “Os médicos me trouxeram de volta”, diz. Com a voz embargada, ele comenta que ele já se via como faixa preta, apesar de não ter até então consolidado essa graduação.

Voltou a treinar após insistência da esposa, Cintia Vaz, e de conversar com Bobzão. Assumiu, pouco depois, uma vaga como treinador em Dois Irmãos. Na faixa marrom, e sob tratamento, foi campeão ProSports, ouro na Categoria e bronze no Absoluto, ao lado do filho Eduardo Goulart, seu maior orgulho. “É uma promessa muito forte da Alliance”, diz.

Campeões em família, Giovani se orgulha da trajetória do filho Eduardo (Foto: Acervo Pessoal)

A vida, porém, mais uma vez, o tirou do tatame. No início desse ano, uma dengue intensa e uma cirurgia o deixaram com a mobilidade e a força comprometidas. “Não consegui mais treinar, nem treinar o Eduardo”, conta.

Para ele, nenhuma lesão foi tão dolorida quanto essa. “No jiu-jitsu, a pior dor que eu já tive é a de não poder treinar.”

A faixa preta chegou para Giovani após 17 anos (Foto: Acervo Pessoal)

“Eu tinha o sonho de receber a faixa preta e dar esse orgulho pro meu filho. Isso eu consegui. Agora, meu sonho é viver para ver ele receber a faixa preta”, afirma.

Eduardo Goulart, com 13 anos, foi ouro no Absoluto e prata na Categoria, na Copa Mercosul, dia 29/10 (Foto: Acervo Pessoal)

Descobrindo uma família

Aos 17 anos, Jaqueline Da Silva Lupin foi expulsa de casa pela mãe biológica. Era uma sexta-feira e ela recebeu o prazo de um dia para sair. Acabou sendo acolhida na primeira academia de Bobzão, a Bob’s Team, em Canudos, onde treinava jiu-jitsu há alguns meses.

Hoje, Jaque se assusta com a transformação que teve (Foto: Acervo Pessoal)

Jaque tinha histórico de ser brigona, com ocorrências junto ao Conselho Tutelar. Começou no jiu-jitsu por precisar extravasar o que carregava em si – e a musculação não estava atendendo.

Em casa, até então, tinha uma figura materna ausente, que vinha dia sim, dia não. “Ela demonstrava amor dando dinheiro pra gente, era isso que eu conhecia como afeto”, conta. “Ela… trabalhava com a vida, sabe?”

Quando precisou sair com urgência de onde morava, a primeira coisa que fez foi fazer uma mochila, pegar a faixa e o kimono e ir para a academia. Treinou até esquecer o problema — apesar de não conseguir se livrar dele assim.

Passou um tempo na casa de uma amiga. Depois, pediu abrigo na academia de Bobzão, que a acolheu, como possível. Jaque ajudava no que podia naquele pequeno negócio, dormia em uma salinha nos fundos e usava a cozinha da academia de musculação do andar de cima. “Foi um tempo bem turbulento, mas foi o que mudou minha vida”, comenta.

Bobzão treinava Jaqueline e a amiga Alessandra na Bob’s Team (Foto: Acervo Pessoal)

Foi ali que se aproximou de uma família de praticantes de jiu-jitsu que ela já conhecia. Raquel Wallauer ofereceu a máquina de lavar de seu apartamento para que Jaque utilizasse. Aos poucos, junto do marido Manoel Cabrera e do filho Vinicius, convidou Jaque para ficar por lá. Aos 18 anos, Jaqueline foi adotada pela nova família, com quem mora até hoje, aos 22.

À esquerda, o irmão Vinícius, e ao centro a mãe Raquel. (Foto: Acervo Pessoal)

“Grande parte da minha vida é o Bob, pela oportunidade que ele me deu”, diz. A atleta, e, há um ano, atendente da Alliance Novo Hamburgo, conta como o jiu-jitsu e a família extendida em torno do Bobzão a ensinaram sobre disciplina, respeito e afeto.

“Eu tinha um ego muito grande, sentia muita raiva”, lembra a jovem, que não suportava abraços, era quieta e ríspida com quem tentava se aproximar. Hoje, é uma mulher confiante, comunicativa e acolhedora. “É assustador saber que eu era daquele jeito”, expressa olhando por cima do ombro. O acolhimento e o jiu-jitsu que a transformaram.

“A gente tem que honrar nossos professores”, fala com um sorriso. “Olhando de fora, não se tem ideia de tudo que o Bob já fez pelas pessoas aqui.”

Jaque está na faixa roxa e compete pela Alliance NH sob orientação de Bobzão (Foto: Reprodução/Instagram)

Uma criança transformada

“Eu sentei em frente à professora e chorei”, conta a técnica em enfermagem. “Ela tava falando de uma outra criança, que não era a minha.”

Pamela Lino Oliveira, de 36 anos, é mãe de duas meninas. Lavínia, a mais nova, de sete anos, apresentava um comportamento difícil desde o início da alfabetização.

A criança era dependente para todas as atividades, não respeitava hierarquias e resistia às novas responsabilidades. “Ela dizia coisas como: ‘porque eu tenho que aprender a escrever meu nome se você sabe meu nome?’” 

“Ela não queria deixar de ser um bebê”, analisa Pamela. “O principal argumento que ela usava era o ‘não consigo fazer’.” 

Lavínia queria ter controle de tudo, mas seu ambiente estava mudando e as responsabilidades estavam surgindo. A resposta foi a negação.

Lavínia começou a ficar com sobrepeso e tinha explosões de irritação. “Era um corpo que pedia ajuda”, diz Pamela. Para a profissional da saúde, estava claro que a filha precisava de alguma atividade física.

O marido de Pamela, Maurício Milhano Oliveira, atleta de jiu-jitsu, tentou persuadi-la a colocarem Lavínia na arte marcial. “Eu não queria — achava muito violento, muito masculino”, conta a mãe. Porém, a criança não se encaixava em outras atividades.

O pai de Lavínia tentava explicar que o jiu-jitsu ensinaria a criança a dominar a si mesma. “Ele tentava sinalizar que ela precisava de uma atividade em que não teria controle de nada… aí, eu aceitei tentar”, conta.

No primeiro dia, Pamela ficou apavorada com os barulhos, o tatame e saber que meninos e meninas lutavam juntos. Queria fazer qualquer coisa para tirar Lavínia de lá. Mas algo aconteceu. 

Em duas semanas de treino, Lavínia mudou. Ela passou a ser participativa em casa, a se comportar na escola e a educar os colegas. “Ela começou a falar para os coleguinhas: ‘não precisa chupar bico’, ‘levanta a mão para falar’.”

A criança ouviu do treinador que uma atleta se alimentava bem e não comia salgadinhos, nem bolachas. Passou, então, a cuidar da alimentação. “Ela é essa criança, hoje”, fala com orgulho. “É como se ela me dissesse: ‘eu precisava disso’.”

Na entrega de boletins da escola, Pamela foi chamada para uma conversa em particular. “Eu já estava esperando o pior sobre o que ouviria”, comenta a mãe, ainda muito marcada pelo comportamento anterior da filha. Quando começaram os elogios, Pamela não conteve a emoção. “Eu saí de lá em lágrimas pelo relato da professora, não parecia nada com a minha filha… ela se transformou.”

O boletim de Lavínia a rendeu um grau na faixa — um grau que ela pode perder se não se comportar (Foto: Acervo Pessoal)

O sucesso da transformação da filha, segundo Pamela, é muito devido ao trabalho do instrutor Tales Gabriel Perfeito. “As crianças respeitam muito ele”, comenta. “Toda academia precisava de um Tales.”

No tatame, a pequena entendeu os limites que os pais não conseguiam dar. “A gente não quer que eles sofram… mas não é sofrimento, é um mal necessário. Eu não posso tirar ela de baixo do oponente, ela tem que sair sozinha”, explica. “E o jiu-jitsu mostrou para ela que ela consegue.”

Dedicação pela saúde mental

Ele é mecânico e síndico de um condomínio de 70 apartamentos. O estresse é uma companhia constante na vida de Fábio Cardoso, de 44 anos. O técnico em mecânica industrial hoje tem dificuldade de acreditar que viveu isso, mas houve um ponto em que realmente pensou em tirar a própria vida.

“Minha família é minha base, minha fortaleza”, expressa o atleta (Foto: Acervo Pessoal)

Fábio é casado e pai de uma criança. Diagnosticado com Transtorno Bipolar, o tratamento contínuo estava somado aos remédios para depressão. Quatro comprimidos por dia, que não eram capazes de segurar suas explosões de raiva.

Preocupado com a situação, seu vice-sindíco o convidou para começar no jiu-jitsu. “Eu não queria, achava muita agarração, era estranho”, comenta o mecânico.

Com a insistência, aceitou tentar. Fábio, com 1,78 m de altura, estava com 127 kg. Na primeira aula, ouviu a introdução de Bobzão, aprendeu uma primeira técnica e foi desafiado a segurar o instrutor por três segundos. Por cinco minutos, Bobzão apenas se defenderia.

“Eu não aguentei dois minutos”, conta. Fábio saiu da aula prometendo revidar. No trajeto para casa, enviou um áudio de WhatsApp para o vice-síndico, repetindo a promessa. “Desde então eu nunca mais parei de treinar”, sorri.

No primeiro campeonato, Fábio ganhou double gold, categoria e absoluto (Foto: Acervo Pessoal)

“Eu era um cara totalmente explosivo, sem diálogo e sem foco”, detalha. Esse comportamento tóxico impactava no trabalho e na relação com a família, que se deteriorava dia após dia.

Pouco tempo depois, Fábio estava com o humor diferente e havia emagrecido. “O médico me perguntou o que eu estava fazendo”, conta. “Jiu-jitsu”, respondeu. Recebeu alta de duas das quatro medicações.

O treino e a comunidade ao redor da prática inspiraram Fábio a melhorar e se dedicar. Agora, dois anos depois daquele primeiro treino, ele tem diversas vitórias em competições, está com 97 kg e carrega a faixa azul com um sorriso.

Fábio recebeu a faixa azul este ano (Foto: Acervo Pessoal)

O que mais o impacta, porém, é a diferença que o jiu-jitsu fez em sua vida pessoal. “O jiu fez eu querer ser a minha melhor versão”, explica Fábio. “Hoje, por exemplo, eu não quero dar o melhor presente pra minha filha, quero ser o melhor presente para ela.”

“Por causa do jiu-jitsu, eu me reaproximei de Deus e da minha família”, diz. Segundo ele, todos deveriam praticar alguma arte marcial. “Quando tu colocar um kimono, tua vida vai mudar.”

A próxima meta de Fábio é conseguir segurar Bobzão na posição “100 kg” por três segundos (Foto: Rodrigo Westphalen)

NOTA: No dia de publicação desta matéria, Giovani Goulart foi chamado para a cirurgia de transplante de rins.

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