Atleta feminina do Alliance Novo Hamburgo conquistou temporada invicta e ouro no Campeonato Brasileiro de Jiu-Jitsu com a faixa branca.

Era sábado de manhã. Uma voz infantil surgia do falante do celular: “Dinda, é hoje…”. O tom oscilante da afilhada, de 6 anos, deixava óbvio o nervosismo. A pequena estava prestes a enfrentar uma competição de Ginástica Olímpica e procurava ajuda.

Ouvindo o áudio, estava Amanda Baronio, de 28 anos, fotógrafa que começou a treinar jiu-jitsu no primeiro semestre de 2022. Com performance quase invicta desde a primeira competição, a atleta tem mais medalhas de ouro do que meses desde o início da carreira. Era ela a principal referência.

“Tu fica nervosa? O que tu faz?”, indagava a criança. “Eu quero fazer que nem tu — eu quero ganhar!”

Amanda Baronio é uma mulher branca, compete na categoria meio pesado, tem cabelos castanhos escuros e tatuagens. Está sentada em um tatame com nove medalhas espalhadas no chão em sua frente. Ela sorri. Ao fundo, um painel com o texto "Alliance Jiu-Jitsu Team".
Amanda Luiza Baronio teve temporada invicta na faixa branca em 2023 (Foto: Robson Müller/Acervo)

O empresário e diretor criativo Robson Müller, de 29 anos, fala da companheira, de quem está noivo, com absoluta admiração. “Ela ganhou o campeonato brasileiro na faixa branca e, agora, pegou a faixa azul, conseguiu o primeiro patrocínio, e vai ganhar de novo”, diz. “Na faixa roxa, já vamos tentar o mundial na Califórnia”.

Müller é graduado na faixa roxa e pratica desde 2017 no mesmo centro de treinamento que revelou Amanda para o Brasil (e para ele) ano passado: o Alliance de Novo Hamburgo. O centro de treinamento fica em frente ao trem, na avenida Nações Unidas, entre as estações Fenac e terminal.

Robson e Amanda se abraçam em treino na Alliance Novo Hamburgo. Robson sorri.
O casal se conheceu no tatame e continua dividindo treinos. (Foto: ConneFotos/Divulgação)

Conquista conjunta

Sob uma luz quente no estúdio comercial de aproximadamente 30m², Amanda Luiza Baronio sentava de costas à estante cinza industrial, que carregava alguns porta-retratos, uma cafeteira de cápsula e uns livros.

Ela estava com o cabelo preso em um coque alto, de calça de moletom preta com detalhes de flores vermelhas; nos pés, um tênis branco. Vestia uma blusa manga curta preta que ajustava ao corpo, destacando um pouco do desenho dos músculos quando ela apoiava os cotovelos na mesa. A posição dava destaque às artes que havia encravado na pele: uma gata oldschool no dorso da mão direita, em referência à Lilo, de quem é tutora; florais negros subindo o antebraço; e os dedos das mãos carregando, letra a letra, a frase “Self Love” — melhor vista com os punhos cerrados.

Nos olhos, que ela desviava somente quando começava a relembrar das cenas que vivenciou, é possível ver um comprometimento afiado. “Eu aprendo rápido”, diz. 

Ao lado, Robson Müller vestia um sobretudo cinza de malha grossa e um moletom preto por baixo, cujo capuz pendia no pescoço. Estava com os óculos de armação preta, característicos, e um boné da mesma cor. “A Amanda é uma dessas alienígenas que tudo que ela pega para fazer, ela faz bem”, comenta ainda como se estivesse incrédulo.

Robson ajuda Amanda a distribuir 7 medalhas nos antebraços para a foto. Amanda sorri em direção à Câmera. No pescoço, a medalha de ouro do campeonato brasileiro.
O pedido de casamento foi feito em um ônibus na volta de uma competição (Foto: Rodrigo Westphalen)

Ele se contorce um pouco e aponta para um quadro da estante, contando da vez que estiveram gravando um documentário sobre uma banda gauchesca em um CTG e, num momento de pausa, Amanda começou a tocar bateria sem nunca ter feito isso antes.

Ela insiste: “eu aprendo rápido, só — é uma coisa mental, e o jiu-jitsu tem muito disso”.

Nessa arte marcial, não importa tanto o tamanho ou a força do oponente. Os movimentos são uma série de tentativas de encontrar brechas e impedir avanços ao mesmo tempo, sob a pressão do adversário e em constante risco de ficar sem ar ou deixar um membro livre para uma torção. “É muito mental”, reafirma, “tu olha para a luta de um atleta profissional e se pergunta: como que a cabeça dessa pessoa funciona? Como essa pessoa pensa?”.

AboutStudio

Do outro lado da sala, um painel grande exibe uma arte de um rosto feminino se fragmentando em um mosaico colorido. Ao lado, alguns tripés carregam lâmpadas com caixas difusoras. A mesa que o casal se senta fica posicionada quase no coração do AboutStudio. 

O espaço, situado em um coworking próximo à rua Frederico Link em Novo Hamburgo, é a materialização dos planos de expansão do trabalho criativo de Robson, que comprou metade de uma sociedade que Amanda tinha, voltada à fotografia. “Ele complementa minhas habilidades e eu complemento as dele”, comenta.

Patrocinador da equipe Alliance, o estúdio criativo produz campanhas audiovisuais, documentários, identidades visuais, além de fotografias de retrato e de evento. Robson planeja expandir o negócio ainda mais em breve.

Por conta da sensibilidade estética, o casal enxerga arte nos rostos vermelhos, suados, nos corpos exauridos, na entrega completa ao momento, nas texturas, luz e sombra. Existe algo de libertador na crueza do jiu-jitsu.

Dentro dos centros de treinamento, colegas de treino viram amigos, que viram uma família. Bobzão enfatiza que, no tatame, profissionais de todas as áreas se despem do cotidiano para competir em um xadrez corporal cujo resultado não se compra. “O jiu-jitsu vai se tornando um estilo de vida”, diz Amanda, que não se vê em outro esporte.

Nesse contraste do bruto com o sensível, Amanda vê espaço para desenvolver um estilo autêntico de retratos. Ela pretende dedicar mais de seu trabalho à fotografia do esporte.

Mulher de quimono branco com cabelo preso no topo da cabeça olha atentamente para instruções de treinador.
Em roda de atletas ajoelhados, treinador Bobzão aparece em foco.
Foto mostra detalhe de pés femininos de duas mulheres, frente a frente, descalças no tatame. Sacos de pancada estão deitados ao fundo.
Atletas femininas de jiu-jitsu conversam em descontração. Bobzão conversa com uma atleta de cabelo curto, que sorri.
Atleta feminina de jiu-jitsu está deitada de bruços no tatame, com queixo apoiado na mão, observando atentamente a fala de alguém em uma roda durante um treino.
Dois atletas homens de jiu-jitsu estão em luta, deitados no tatame da Alliance Novo Hamburgo.

Fotos: Amanda Baronio/Acervo

Ao ser questionada quando que virou uma prioridade o desempenho no jiu-jitsu, Amanda responde rindo: “quando eu comecei a ganhar todas as competições”. Ou seja: com mais ou menos três meses de treino. 

Trajetória fora da curva

“O mais normal é não ganhar na primeira competição”, conta Amanda. No jiu-jitsu, a pessoa precisa atravessar um ginásio com gritos de todos os lados, oito lutas acontecendo ao mesmo tempo e um cheiro forte de suor no ar — nada é rotineiro, nada inspira segurança. “Tenho certeza absoluta que o fato de eu ter feito vários anos de terapia na minha vida, antes desse momento, me ajudaram a me livrar dos estressores”, arrisca uma explicação. 

Na primeira luta do primeiro campeonato, Amanda foi posta frente a frente com uma competidora com quatro graus a mais que ela. “São dois anos a mais de prática”, explicou. Ela pensou apenas em tentar sobreviver. 

A única ousadia que ela faria era tomar a iniciativa de agarrar a competidora e levar ela para o chão. Esse era seu objetivo e foi isso que ela repassou uma centena de vezes na própria cabeça na semana anterior. 

Amanda comenta, agora, com leveza: “É sobre perder o controle e ficar em paz sobre isso”. “É a paz no caos”, diz Robson, ao seu lado. “É uma pessoa querendo te matar e não podendo… porque tem regras, né? Mas é uma pessoa querendo te estrangular ou quebrar um membro e você tem que lidar com isso”. 

Em ginásio de competição, juiz levanta braço da atleta Amanda Baronio sinalizando vitória sobre oponente. Amanda veste quimono preto com faixa branca. Oponente veste quimono branco com faixa branca. Ao fundo, em outra área de competição, dois homens estão em luta.
Competições regionais de jiu-jitsu ocorrem todos os meses em Porto Alegre. (Foto: Acervo)

“Como você explica pra uma pessoa que era extremamente ansiosa, que ela vai entrar numa luta, só ela e outra pessoa, onde um ganha e outro perde… e conseguir que ela fique tranquila?”, questiona a atleta. Ela não conseguiria em outra época. 

Treinador e sócio da Alliance NH, Joel Luiz Neres da Silva, o “Bobzão”, de 46 anos, dá um sentido místico para o caso: a Amanda não teria começado a treinar antes porque ainda não havia o lugar certo para receber ela. O universo conspirou. 

Foi em 2018 que o Bobzão, considerado um pai por Amanda e Robson, assumiu o centro de treinamento e reformulou a metodologia de treino dos atletas. “Não fazemos todos treinarem a mesma coisa, desenvolvemos o que cada um tem de melhor”, diz. 

O cargo de treinador principal foi passado para o filho, Guilherme Dal Pra Neres da Silva, faixa preta de 23 anos — um dos motivos de Bobzão ter começado no esporte, 11 anos atrás. Apesar disso, Bobzão segue treinando a equipe ocasionalmente e está sempre junto nas competições.

Segundo Bobzão, uma das habilidades que Amanda desenvolveu mais rápido é a escuta. “Demora em torno de um ano, um ano e meio, para um atleta conseguir prestar atenção no que o treinador está dizendo durante uma competição”, explica. “Já teve professores que vieram me dizer: ‘parece que você está com um joystick na mão, cara, tudo que tu fala ela faz’”.

Campeã Brasileira de Jiu-Jitsu Amanda Baronio é abraçada pelo treinador Bobzão em competição da faixa branca.
Bobzão acompanha os treinos e as competições. (Foto: Acervo)

O início da obsessão

Com uma mochila de medalhas largas, que quase não cabem na mão, parece uma eternidade desde aquele primeiro campeonato de Amanda. Mas foi praticamente ontem que ela começou. 

No início de 2022, o irmão da fotógrafa voltou da Irlanda durante as férias, experimentou alguns centros de treinamento e gostou da Alliance. Em poucos dias, ficou sabendo de um campeonato e pediu para competir com o nome da equipe.

Convidada, Amanda foi até Porto Alegre presenciar a Copa Prime. Ao ver as atletas femininas lutando, não teve dúvidas: “eu queria estar ali competindo – eu queria ser como elas.” 

Assim que voltou, marcou uma aula experimental e, um dia depois, se matriculou. “Eu fiquei obcecada e nunca mais parei de treinar”, conta.

Em maio de 2022, a faixa branca rodava em seu corpo e o quimono pesava desajustado enquanto ela sacudia a oponente naquela primeira competição. Faria qualquer coisa para a derrubar. “Mas eu não fazia ideia do que estava fazendo”, ri. Robson conceitua, apresentando um dos inúmeros jargões do universo do jiu-jitsu: “ia derrubar ‘na tora’, como a gente diz”. 

Ela conseguiu. Derrubou a adversária, fez os pontos, se defendeu, passou a guarda e iniciou uma finalização. Sem técnica, “podia fazer a força que quisesse e nunca iria quebrar o braço da guria”, brincou.

Mesmo assim, levou o ouro para casa — o que viria a mudar completamente suas prioridades de vida. 

Mês após mês, Amanda acumulou os chamados double gold, vencendo campeonato regional na categoria peso médio, pela manhã, e no “absoluto”, sem restrição de peso, à tarde. 

Em junho deste ano, após levar o Campeonato Brasileiro para casa, a atleta foi graduada na faixa azul.

Construindo um legado

A busca pelo campeonato mundial inspira, mas não é o que mais importa. “Eu quero imprimir a minha personalidade, eu quero expressar meus valores no jiu-jitsu”, conta Amanda. 

No trajeto, a atleta quer romper ciclos de machismo que ainda permeiam o esporte e inspirar mulheres a experimentarem a transformação que a prática proporciona na autoconfiança, e como isso reflete em todas as relações do dia a dia.

“Eu vejo a Amanda campeã mundial. Nossa primeira mulher campeã mundial”, pensa em voz alta Bobzão, com o olhar distante. “Eu consigo visualizar ela palestrando para muitas mulheres, contando a história dela… eu consigo visualizar ela se despedindo da profissão atual para levar nosso legado, o nome do nosso esporte, para o lugar mais alto do pódio e da vida”, descreve, enquanto olha por cima da pequena grade preta que separa o tatame da área de convivência do Alliance NH, vendo a atleta treinar com Robson. 

O “paizão” — como chamado pelos dois — não consegue evitar a emoção e precisa secar as lágrimas em uma pausa de silêncio. “Essa menina é muito incrível. Ela é um orgulho nosso”, diz. Logo, precisa se recompor para cumprimentar duas crianças que estão de saída. E brinca: “O Robson que me perdoe, mas ele não vai conseguir acompanhar — a não ser pra carregar a sacola dela.”

Homem ajoelhado de quimono no tatame amarra faixa na cintura.
Dois homens jovens, de quimono, deitados no tatame em luta. Um tenta um enforcamento pelas costas do outro.
Homem de quimono em pé escorado na parede do centro de treinamento. Ao fundo, luz da rua entra por uma porta de vidro.
Homem branco com barba deitado estirado no tatame. Feições demonstram exaustão.

Robson fez diversas fotos de treinos no Alliance Novo Hamburgo. (Fotos: Robson Müller/Acervo)

Jiu-Jitsu Brasileiro

A disciplina tem origem no Japão, mas o esporte que se popularizou no mundo todo nasceu no Brasil. O Brazilian Jiu-Jitsu, BJJ, é uma prática que combina força e estratégia em arenas de tatame com área de oito por oito metros. Existem práticas com e sem quimono – roupa tradicional utilizada no Judô, Karatê, Taekwondo e outras artes marciais. 

Os campeonatos seguem uma estrutura de mata-mata, com lutas um contra um. O tempo máximo varia de 5 a 10 minutos, de forma progressiva, conforme a graduação dos competidores. São seis cores de faixa para os adultos e outras três para menores de 15 anos, além da faixa inicial branca e diversos graus – pequenos esparadrapos adicionados à ponta de cor diferente. 

Na graduação, Robson Müller segura faixa roxa na mão esquerda e certificado na mão direita. Treinadores estão em volta, todos de quimono, com faixas pretas de ponta vermelha.
Robson recebeu a faixa roxa quando tinha três graus na faixa azul. (Foto: @ConneFotos/Divulgação)

“Tem três maneiras de vencer”, explica Robson. A primeira é por pontos. Derrubar o oponente, superar a posição de “guarda” dele, conseguir uma posição estratégica pelas costas, virar o jogo (literalmente), entre outras coisas – tudo isso conta para o resultado. 

A segunda forma é por desclassificação. “Essa você não deseja, porque significa que o adversário fez alguma coisa bem ruim”, brinca. 

E a terceira é por finalização. “Que significa quebrar um membro ou estrangular o adversário, ou ele desistir antes”. Três batidas no chão ou no corpo do oponente, levantar a mão aberta ou deixar escapar um grito de dor são suficientes para que o juiz encerre a luta.

Treinamento intenso

“Muita gente começa a treinar pra desopilar, ou para emagrecer”, comenta Robson. Ele mesmo iniciou para ocupar a cabeça depois de se mudar de Tramandaí para a cidade e acabou emagrecendo 24 kg, por se alimentar pouco e treinar muito na época. “Eu treinava das 17h às 18h30 e depois das 19h às 21h, todos os dias.” 

“Era bom ser jovem, né?” ri Amanda. Ela, hoje, consegue se dedicar cerca de 12 horas por semana aos treinos, também diários, e já está negando trabalhos nos finais de semana para evitar conflitos de agenda com os campeonatos. “O objetivo é ganhar para lutar, mas por enquanto eu trabalho para sustentar a luta, né? Cada torneio vai ser um desembolso de mais ou menos R$ 250,00, entre participação, transporte, alimentação…” 

Segundo pesquisa da Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel) de 2017, entre os anos de 2006 e 2017, a prática de artes marciais e lutas aumentaram 109%. As mulheres lideraram o aumento da população fisicamente ativa, porém, representavam apenas 30% dos praticantes de artes marciais em 2015, segundo o estudo suplementar da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) sobre esporte e atividade física daquele ano. Como comparação, oito em cada dez praticantes de Ginástica Rítmica e Artística eram mulheres. 

A PNAD de 2015 também mostra uma diferença entre esportes e gêneros na região Sul do país: enquanto 44% dos homens praticavam esportes uma vez ou menos por semana, 55,4% das mulheres praticavam três ou mais vezes por semana. Essa frequência maior, vivenciada por Robson e Amanda, é característica de artes marciais e lutas: 69,2% dos praticantes treinam três vezes por semana ou mais. 

Os motivos para treinar citados por Robson aparecem na pesquisa, mas não há um recorte por modalidade: 28,9% das pessoas pesquisadas afirmaram praticar esportes para se divertir, enquanto 26,8% afirmaram ser para melhorar a qualidade de vida ou o bem-estar; 19,9% afirmaram ser para melhorar ou manter o desempenho físico, e apenas 9,8% informaram que o motivo é gostar de competir. 

Cinco atletas de jiu-jitsu seguram medalhas em uma arquibancada acompanhados por familiares e pelos treinadores.
Equipe da Alliance NH exibe medalhas junto à “família” que se formou no centro de treinamento. (Foto: Acervo)