“É um recurso que a gente deixou de arrecadar”, critica presidente do Comitesinos sobre a cobrança pelo uso dos recursos hídricos

Viviane Feijó explica que a medida foi aprovada em março de 2024, mas há "interesse político" em não implementá-la
Viviane Feijó, presidente do Comitesinos em entrevista exclusiva - LUCAS KOMINKIEWICZ/BETA REDAÇÃO

Prevista há 30 anos na Lei Estadual 10.350, de 1994, que instituiu a Política Estadual de Recursos Hídricos, a cobrança pelo uso dos recursos hídricos naturais ainda não tem todos os instrumentos aplicados pelo Rio Grande do Sul. O estado inspirou, inclusive, o desenvolvimento da Política Nacional, Lei 9.433/1997. Os comitês de bacia têm papel deliberativo e trabalham pela gestão das águas, sendo responsáveis, por exemplo, pela definição de mecanismos e valores para implementar a cobrança em cada região. Ao todo, são 25 comitês no RS.

A presidente do Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos, Viviane Feijó, é bióloga, engenheira de bioprocessos e biotecnologia e operadora de tratamento de água no Serviço Municipal de Água e Esgotos (Semae) de São Leopoldo (RS). Ela reforça que a mesma Lei 10.350/1994 instituiu o Comitesinos, que abrange 30 municípios, e define a atuação dos comitês e outras ferramentas para garantir a preservação dos recursos hídricos, como o Plano de Bacia, que estabelece as metas e as ações necessária por região. Além disso, há as outorgas, que são autorizações para o uso da água. Cada trecho do rio tem uma quantidade de pessoas que podem utilizar a água conforme a sua vazão, para que a vazão ecológica, a vida no rio, não seja afetada. 

A presidente relata que o Plano de Bacia do Sinos, de 2014, prevê um estudo de alternativas para garantir a vazão do rio e o equilíbrio do balanço hídrico. Segundo ela, o estudo é fundamental porque ele vai apontar quais são as intervenções necessárias para que se garanta água ao longo de todo ano, tanto nos períodos de cheias quanto nos de seca, e que ele poderia estar pronto há anos, se já estivesse implementada a cobrança pelo uso da água. Confira a seguir os principais trechos da entrevista concedida à Beta Redação.

O que representa a cobrança pela água, estabelecida em plenária pelo Comitesinos em março de 2024?

A cobrança tem três finalidades: definir que a água tem valor, que é necessário evitar o desperdício e destinar esse dinheiro para a recuperação da própria bacia. A Política Estadual de Recursos Hídricos conta com diversos instrumentos. Um deles é a cobrança, que regulamenta que quem retira a água do rio tem de pagar por aquela vazão. Ela tem uma função social: mostrar que a água não está ali gratuitamente. Também é uma forma de fazer com que as pessoas economizem, que só retirem do rio a água que vão realmente precisar no seu processo produtivo, ao diminuírem o seu valor de outorga. Às vezes um usuário solicita uma outorga muito acima daquela que precisa e, com a cobrança, acaba diminuindo. Isso abre espaço para outros usuários entrarem naquele trecho, esse balanço é definido por trecho, por região.

Como funciona a gestão dos valores provenientes dessa política? Quem recebe e como ele é aplicado?

Esse valor vai ser usado para ações já apontadas no Plano de Bacia, definidas por gestões anteriores através dessa organização democrática e popular que é o comitê. A arrecadação tem que ser feita pelo Estado porque é ele que dá as outorgas. Depois o dinheiro deve ser encaminhado a uma instituição, que é a agência de bacia. Ela vai fazer todas as licitações e contratações. É importante frisar que esse dinheiro volta para a bacia, o Estado não pode arrecadar e colocar num caixa único, num fundo, ele tem que usar esse dinheiro com uma rubrica exclusiva para cada bacia. O usuário que está pagando vai ter o retorno, porque o dinheiro vai ser aplicado na recuperação da água que ele está retirando, em quantidade e qualidade.

“O dinheiro não pode ser aplicado em nada diferente do Plano de Bacia.”

O que é uma agência de bacia?

Não temos hoje essa entidade, o Estado não precisa criar uma. Ele pode definir uma instituição existente como uma agência de bacia, é o que diz a lei nacional. Em todo o Brasil, na verdade, ninguém criou uma entidade para constituir uma agência, o que foi feito foi escolher uma que já existe, um consórcio, ou um departamento do Estado, para atuar como agência, fazendo o recolhimento desse valor, repassando para as contratações conforme os comitês definirem.

Quando se fala em investir na recuperação da bacia, quais ações poderiam ser adotadas?

Se pode fazer, por exemplo, abatimento de carga, juntar três ou quatro municípios e aumentar o monitoramento contra as cheias, ampliar ou recompor a mata ciliar em algumas regiões, construir uma ETE [Estação de Tratamento de Efluentes] e tratar, por exemplo, o esgoto de um município pequeno, que não teria condições de fazer isso sozinho. 

Qual o papel dos comitês de bacia em relação a cobrança?

Eles são entidades voluntárias que deliberam como deve ser a gestão pública da água naquela região. Eles definem, e a agência de bacia faz as contratações necessárias conforme o orçamento que arrecadou durante o ano. Também podem definir que vai se arrecadar por dois ou três anos, e depois se começa a contratação. Como em 30 anos a cobrança nunca foi implementada, nós começamos a avaliar na lei o que depende dos comitês: definir valores e qual é o mecanismo, ou seja, a fórmula de cobrança em cada bacia. O Estado passa o valor para a agência, que vai questionar o comitê sobre onde ele decide que seja utilizado. O dinheiro não pode ser aplicado em nada diferente do Plano de Bacia, que define quais são as ações para recuperação da bacia e as metas. No caso do Sinos são 10 macroprogramas e 37 ações.

Viviane em entrevista na sede do Comitesinos, na Unisinos São Leopoldo – LUCAS KOMINKIEWICZ/BETA REDAÇÃO

Quem deve fiscalizar o cumprimento da política? Como e quais medidas serão adotadas?

O Estado não deixa de ter o papel fiscalizador, mas os comitês vão acompanhar também. Esse é um assunto que está diretamente ligado às necessidades de cada bacia. A sociedade, através do comitê, também pode fazer esse acompanhamento. Mesmo essa entidade sendo uma associação, um consórcio ou algo assim, ela vai estar com o recurso público, então ela vai ter Portal de Transparência, vai ter que apresentar todos os usos de cada valor. Há uma porcentagem que é para a manutenção da própria entidade, para a contratação de funcionários, para que ela consiga funcionar e trabalhar como uma agência de bacia e possa dar esse suporte técnico aos comitês, que é em torno de 8% no Rio Grande do Sul. No Brasil, na lei nacional, é 7,5%. Mas o grande montante, mais de 90% do valor, volta para a própria bacia hidrográfica. 

“Quem deve pagar são todos que retiram água ou fazem lançamento de efluente no Rio dos Sinos.”

Como é feito o cálculo para a cobrança?

O valor definido para aquela categoria de usuário é multiplicado pela vazão que ele retira. Esse é o valor pela cobrança da água que é captada, somado ao valor pelo lançamento. Então, por exemplo, quem lança algum efluente que modifique a qualidade da água, também tem que pagar. As categorias de usuários têm valores diferentes conforme suas características. São valores baixos para cada um, cerca de R$ 0,04 por metro cúbico, mas o montante para toda a bacia, quando a gente soma esse valor em um ano, é considerável. O usuário vai pagar no final de cada ano o correspondente à vazão que ele retirou de água naquele período. No Sinos, seguimos o que já apontava o Plano de Bacia, utilizamos referências nacionais, médias já aplicadas no país. O Estado tem controle disso, eles devem ter um órgão que vai avaliar quanto cada um capta. Todas as empresas, operadoras de saneamento, os produtores rurais, as indústrias, mineradoras, todos que captam a água têm lá o seu CNPJ ou CPF e qual é o fim. Através disso, o Estado vai usar o mecanismo e os valores que foram aprovados no Comitesinos e vai fazer o cálculo: Viviane capta de água, por ano, tanto, o valor dela vai ser X, então ele vai mandar um boleto no final do ano para a Viviane. 

Tabela com relação de categorias de usuários e valores, por PU (Preço Unitário) – ARQUIVO COMITESINOS

Como o usuário vai ter um controle da cobrança?

Quem não tem um macromedidor, como as operadoras de saneamento, que medem porque elas precisam dessa vazão para a dosagem de produtos, pode fazer uma declaração de quanto retira por segundo ou por minuto numa vazão, e isso também pode entrar no cálculo da cobrança. Em várias partes do Brasil é feito assim, para quem não consegue medir com equipamento. Por exemplo: eu tenho outorga para retirar 50 litros por segundo, mas na verdade eu uso 25 litros. Quando buscamos o cálculo, nós tentamos encontrar referências de fórmulas muito simples para que o usuário consiga pegar o boleto quando ele receber e identificar: eu retiro tantos m³, o valor é tanto, eu vou pagar tanto. A gente sempre usou como referência o kw/h. 

Quem deve ser cobrado, a partir da adoção dessa política, que antes não era? Quais os segmentos/ramos de negócios que mais fazem uso dos recursos hídricos?

Quem deve pagar são todos aqueles que retiram a água ou fazem algum lançamento de efluente no Rio dos Sinos e nos seus afluentes, ou seja, são todos aqueles que alteram a quantidade ou a qualidade da água. Temos as indústrias, que precisam captar, então aquela que recebe água de uma operadora de saneamento, tratada, não vai pagar diretamente, porque ela paga para a concessionária de água, mas aquela indústria que precisa retirar a água bruta do rio para o seu processo produtivo tem que pagar. Mineradoras, também, são empresas que utilizam a água do rio, e precisam pagar. E os produtores rurais que captam, como eles têm uma certa dificuldade em ratear esse valor, em repassar ele ao consumidor final, e o valor do produto que eles têm é definido por mercado, por outras questões climáticas também, o valor deles sempre é muito menor do que esses R$ 0,04. As operadoras de saneamento são as que mais devem pagar, porque retiram a água bruta, sua matéria-prima, em maior quantidade, tratam e distribuem para a população.

“Há um interesse político de não tocar no assunto da cobrança.”

Há possibilidade de isenção de pagamento?

A lei no Brasil não permite isenção, existem casos de algumas regiões em que foram solicitadas isenções, e na Justiça foi definido que a lei determina que todos devem pagar, mas os valores são reduzidos pela sua condição. Nós colocamos uma linha de corte sempre com “- 500”, então qualquer conta que no final do ano some menos de R$ 500, zera a conta. Se um pequeno produtor, que capta uma quantidade de água, tem pouca produção, ele vai ser isento, vai estar dentro desses “- 500”. Isso vai ser acompanhado por esse sistema de outorgas que o Estado tem, ele sabe o quanto cada um tem autorização para utilizar, e esse valor nunca vai ser acima do valor da outorga. 

De acordo com dados do Comitesinos, Ceará, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Paraíba, Rio Grande do Norte e Goiás já adotaram a cobrança. Por que o Rio Grande do Sul está tão atrasado em relação à medida?

Há um interesse político de não tocar no assunto da cobrança e não avançar. A cobrança é um recurso que a gente deixou de arrecadar, porque o governo do Estado nunca implementou, e eu estou falando aqui de diversos partidos. Precisamos de outras organizações do Estado: como ele vai arrecadar esse valor, como vai mandar o boleto no final de cada ano para cada usuário… Isso tem ainda que ser definido. Além disso, no RS temos uma grande produção agrícola, e geralmente os produtores rurais ficam com receio de que esse pagamento vá interferir muito no resultado final da sua condição financeira, porque eles entendem que já pagam diversas taxas e que isso é uma taxa a mais. 

A presidente do Comitesinos, Viviane Feijó, fala durante a primeira plenária de 2024, em março – LUCAS KOMINKIEWICZ/BETA REDAÇÃO

Quais as vantagens para as empresas, produtores rurais e demais usuários da água bruta? 

Pagar esse valor não inviabiliza nenhum processo produtivo. Na verdade, em todas as regiões, só melhora a condição deles, porque quando uma indústria capta água, precisa, muitas vezes, tratar para utilizar, e com a contribuição há a possibilidade de esse tratamento ser realizado na bacia hidrográfica, e a gente ter uma condição melhor dos nossos rios e de todos os afluentes. Em todos os estados que já implementaram, há uma melhoria na qualidade da água, e os produtores rurais são os mais beneficiados com as ações, porque são os que menos pagam, e muitas das ações que os planos de bacia apontam são para essas áreas mais rurais, que não são urbanizadas ainda, para a garantia de que a água continue sendo produzida. Temos exemplos de outros estados que já aplicam esse valor, que já conseguiram melhorar o enquadramento de águas, que construíram ETEs, e vários sistemas, que inclusive têm PSA, que é o Pagamento por Serviços Ambientais, onde quem é da região rural recebe um valor para proteger as suas áreas, para garantir que haja água para as cidades, por exemplo.

Estamos vivendo extremos como enchentes e seca. Qual o impacto de políticas como essa na contenção das mudanças climáticas e na preparação para os seus efeitos que já estão em curso?

A gente está há 30 anos com uma lei que aponta a cobrança para a recuperação da bacia, e sem arrecadar esse recurso, não fazendo esse investimento, o que já é um exemplo de por que nós chegamos onde nós estamos. Se tivéssemos arrecadado nesses 30 anos, poderíamos ter mais áreas protegidas, ter, provavelmente, intervenções que protegessem melhor a população. Poderíamos ter estudos, mais informações sobre os sistemas de proteção contra as cheias, mais informações sobre as cheias em si, sobre dados meteorológicos também. Se a gente tivesse uma arrecadação contínua através da cobrança, teríamos recurso para todos os estudos, os apontamentos, que o Comitesinos vem fazendo ao longo dos seus 36 anos. Não vai resolver a questão das mudanças climáticas, porque elas não afetam só a bacia hidrográfica, é um conjunto, mas poderíamos estar melhor preparados para essas situações de inundação, ou de escassez. Temos que nos preparar para o monitoramento dessas condições climáticas, precisamos criar meios de sobrevivermos a isso, porque não temos como retroceder muito a situação que está posta, precisamos aprender a conviver com ela.

Desde a decisão do comitê, em março de 2024, favorável à cobrança, houve algum progresso relacionado à política?

Quando há uma deliberação dentro do comitê, ela é encaminhada ao Conselho de Recursos Hídricos para que seja definida como uma resolução do Estado. Nós fizemos esse trâmite, mas nunca foi colocado em pauta, nós inclusive oficiamos o Conselho do Estado, mas não recebemos resposta. Recentemente soubemos que a Promotoria da Bacia cobrou o Estado, já que essa deliberação é de março. Então há também uma ação no Ministério Público acompanhando isso. Tivemos reunião com o Ministério do Meio Ambiente, onde estamos buscando politicamente como avançar. Estamos tentando que o Conselho Nacional de Recursos Hídricos elabore uma moção, dizendo que o Comitesinos já tem a sua deliberação, e proponha o estabelecimento de um projeto piloto para a execução da cobrança na região.

Público acompanha a plenária de março do Comitesinos – LUCAS KOMINKIEWICZ/BETA REDAÇÃO

O que é preciso para que a pauta progrida no RS?

Quanto mais comitês enviarem pedidos ao Conselho de Recursos Hídricos e cobrarem que a pauta seja discutida, mais chance teremos de que essa engrenagem funcione. Além disso, é preciso que o Estado faça a sua parte, que é instituir a agência de bacia e organizar a cobrança. Em algumas regiões do país foi organizado como uma tabela de Excel, é uma lista. Então não é preciso um super sistema para fazer isso, mas você tem que começar de alguma forma. Gostaríamos que fosse feito um projeto piloto. Precisamos mostrar que essa cobrança funciona e ir ampliando isso dentro do estado, nas bacias hidrográficas.

By Lucas Kominkiewicz

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