Um trocadilho, alguns sonhos e muitas vidas transformadas

Como um fotógrafo utilizou uma quadra de tênis abandonada na Zona Sul de Porto Alegre para alterar o rumo da vida de jovens e crianças
Marcelo Ruschel em frente à entrada do WinBelemDon - JOÃO PEDRO CHAGAS/BETA REDAÇÃO

Em 31 de outubro de 2000, a história dele tomou um rumo diferente. Já gostava de fazer parte da mudança, gostava de estender a mão ao próximo, mas nada que havia feito até aquele momento se igualaria ao que estava por vir. Antes de explicar essa história, precisamos voltar ainda mais no tempo.

Em 2 de março de 1963 nascia Marcelo Ruschel. Passou sua infância no bairro Floresta, em Porto Alegre (RS). Aos seis anos, ganhou um presente um tanto incomum para crianças daquela idade: uma câmera. Foi dada pelo avô, que tinha a fotografia como maior hobby. A partir dali o pequeno Marcelo daria os primeiros passos na profissão que abriria grandes portas na sua vida profissional.

Sempre muito envolvido com o tênis, passou bons momentos na Associação Leopoldina Juvenil. Foi naquele espaço que as duas paixões se interligaram pela primeira vez. Resolveu fotografar um campeonato que acontecia no clube, de brincadeira. “O pessoal que trabalhava lá sugeriu que eu deixasse algumas fotos expostas para que fossem compradas. Eu logo respondi, ‘Quem é que vai querer comprar?’. De certa forma, estava certo, nenhuma foi vendida, mas a partir daquela momento minha carreira se iniciava”, lembra o fotógrafo.


E que grande carreira. Foram 31 anos na fotografia, atuando em diversas áreas antes de aposentar as lentes. Cobrindo o esporte que era sua paixão, chegou até o mais alto nível. Desbravou o mundo, cobriu muitas edições da Copa Davis, campeonatos da International Tennis Federation (ITF), Grand Slams, e trabalhou na Confederação Brasileira de Tênis (CBT), na qual fotografou Gustavo Kuerten levantando dois dos seus três troféus de Roland Garros.


Apesar de tantas glórias vivenciando aquele universo, não gostava de se limitar. Tinha outras paixões na fotografia, como a ambiental. “Fazer cliques do meio ambiente me levou a conhecer lugares inimagináveis e despertou um interesse muito grande em devolver para a comunidade de alguma forma.”

Tudo começou quando foi fazer um trabalho da Ilha do Lobos, em Torres, no litoral norte gaúcho, que é um refúgio de leões-marinhos e lobos-marinhos e um dos únicos locais no Brasil onde é possível avistar esses mamíferos aquáticos. “Aqueles animais precisavam de ajuda. Quando me dei conta, já estava fazendo abaixo-assinado e tendo reuniões com o ministro do Meio Ambiente sobre o tema”, conta ele, orgulhoso por ter feito a diferença à época . Não muito depois disso, retornou a Porto Alegre. Desta vez, para morar no bairro Belém Novo, zona sul da cidade. Caminhando pelos arredores de casa, deparou com uma quadra de tênis abandonada e instantaneamente teve a ideia que mudaria não só a sua, mas a vida de centenas de jovens que ali iriam pisar.

Juntou a oportunidade com sua vontade incandescente de fazer a diferença. “O bairro era, é ainda é, vazio de atendimento, me senti na obrigação de fazer algo.” O começo não foi fácil, mas o trocadilho com o nome deu o gás necessário para o início. WimBelemDon. Nome escolhido pelo próprio Marcelo, juntava um dos maiores torneios de tênis do mundo com o bairro do seu coração. Na hora, talvez muita gente não tenha entendido a piada, mas hoje a criatividade trouxe frutos e criou uma marca indelével.

Recentemente, no dia 31 de outubro, o projeto completou 24 anos. Nessas mais de duas décadas de atuação, o que não faltou foram dificuldades. Algumas vezes quase fechou, mas o entusiasta sempre dava um jeito de fazer as coisas acontecerem. Devido à sua larga trajetória, conhecia muita gente no esporte, e estes faziam o que podiam para divulgar o WimBelemDon aos quatro cantos do mundo. “Em 2015, nos vimos obrigados a comprar o terreno que alugávamos. O preço era de R$ 400 mil. Conseguimos doações, leiloamos objetos autografados pelos maiores, como Rafael Nadal, Andy Murray e Novak Djokovic, e arrecadamos o valor necessário. Só para efeito de comparação, naquele período, o Greenpeace e o Médicos Sem Fronteiras arrecadaram, juntos, R$ 290 mil reais”, descreve o idealizador de tudo aquilo.

Ruschel explica que não foi fácil manter a estrutura de pé esses anos todos – JOÃO PEDRO CHAGAS/BETA REDAÇÃO


Sendo abraçado pela comunidade, o projeto seguiu mais forte do que nunca. Importante mencionar que o tênis nunca foi o ator principal, era apenas um coadjuvante que abria espaço para verdadeira estrela: a transformação social. “Nossa ideia nunca foi formar grandes atletas, e sim grandes cidadãos”, frase que Marcelo gostava de enfatizar.

Por ser uma região de poucas oportunidades, a ideia trouxe curiosos logo de cara. “Quando o WimBelemDon começou a receber crianças, queria participar, porque nunca tinha ouvido falar em tênis. Tive que esperar praticamente um ano para que novas vagas se abrissem e pudesse ingressar”, descreve Jaleska Mendes, que entrou em 2004 como aluna e segue lá até hoje trabalhando como educadora social.

Formada em Educação Física, ela teve o rumo de sua vida completamente alterado graças àquela quadra de tênis que um dia fora abandonada. Entrou com 9 e saiu com 18 anos, para depois retornar como estagiária e, posteriormente, funcionária. “É incrível pensar que toda minha vida está naquele espaço . Por mais que eu possua uma formação acadêmica, minha formação como pessoa foi ali dentro.”

Ao falar de quem fez tudo acontecer, é possível notar um sentimento que transparece nas palavras que saem de sua boca: gratidão. Mais que um professor, Marcelo era da família. “Ele faz parte da minha história, do meu dia a dia, convive com minha filha, não canso de dizer que é meu segundo pai”, diz a moça, que foi uma das muitas transformadas por aquele trabalho social.

Jaleska não guarda elogios para falar daquele que fez tudo se tornar possível. “Marcelo é uma pessoa fora de série. Muitas vezes falamos que é louco, mas de uma forma boa. Nunca vi ele pra baixo, sempre tira uma força de dentro para manter o WimBelemDon. Sempre nos ensina a pensar fora da caixa. Queria que ele fosse eterno.”

Entretanto, nada na vida se faz sozinho, não é mesmo? Jaleska faz questão de explicar que o ditado é seguido ao pé da letra naquele modesto lugar na zona sul de Porto Alegre. “Não tem como eu falar do Marcelo sem falar da Lu. Eles são almas gêmeas e a essência do projeto”, aponta.

Seu testemunho é sobre Luciane Barcelos, que divide não só a vida, mas as responsabilidades de trabalho com o marido. “Quando idealizou o projeto na cabeça dele, eu só fiquei sabendo no momento de assinar o documento para alugar o terro da quadra. Eu fiquei apavorada com a ideia, mas, como estava desempregada, embarquei nessa maluquice”, relembra a esposa do fotógrafo.

A ideia surgiu muito do nada e caiu no colo dos dois. Naquele momento, Ruschel estava na estrada acompanhando Guga, então quem segurava as pontas e dava os primeiros passos da sua ideia era Luciane. “Em diversos momentos achamos que não teria outra solução que não fosse fechar as portas, mas meu marido sempre achava uma resposta aos 45 do segundo tempo. É uma pessoa muito visionária, tem facilidade para enxergar as coisas lá na frente.”
Trabalhar junto é um desafio para qualquer casal, e para ambos não foi diferente. “Muitas vezes há altos e baixos, mas sempre lidamos com qualquer situação que possa aparecer. Ele acaba me inspirando na maior parte do tempo, isso é algo muito bonito de ver. Nunca gostou de se acomodar. Por que não? É a pergunta que mais escuto ele fazer. Muito do resultado que atingimos vem da mentalidade empreendedora que o Marcelo possui”, explica a gerente técnica do WimBelemDon.

Hoje, o projeto atende 82 crianças e adolescentes de 6 a 18 anos em situação de vulnerabilidade social na região do extremo sul de Porto Alegre, oferecendo diversas atividades que vão além do esporte. São realizadas oficinas de tênis, yoga, psicologia, artes, cinema, programação, leitura e até mesmo preparatória para o mercado de trabalho, entre outras. “Aqui, de segunda a sexta, o jovem chega depois da escola, pode almoçar no refeitório e passa o dia inteiro conosco. O esporte é apenas um meio para atrair os curiosos e não a finalidade inteira”, avisa Ruschel.

Ele nunca quis formar superatletas, apenas ensinou aquelas crianças a sonhar. “Logo no início perguntei a eles qual era seu maior sonho, ninguém soube me dizer. Aquilo me assustou um pouco e passou a ser motivação, mostrá-los sobre a importância de sonhar”, verbaliza.

Para o futuro, Marcelo ainda visualiza uma expansão. “Queremos aumentar o espaço da nossa sede e fazer uma reforma na praça aqui da frente. Trazer mais esporte e cultura para os moradores das redondezas. Futuramente, quem sabe não abrimos sedes em outros bairros, cidades ou estados? Afinal, o WimBelemDon nunca teve medo de sonhar, não é mesmo?”

Arthur Reckziegel

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