Dizem que nossa casa é a extensão daquilo que nós somos. Uma representação do que temos como prioridade, como valores. Talvez esse dizer popular não caiba para todos, mas cabe para Salomão Furer Júnior. No altíssimo 10º andar de um prédio do Centro de São Leopoldo, ele divide a vida com a esposa. O imóvel aconchegante, com uma distribuição harmoniosa da mobília e um cheiro suave de recém-limpo, tem, à esquerda da porta de entrada, o cômodo mais valioso – e claramente o predileto de Salomão.
Ao entrar no espaço, o que de cara chama a atenção é uma camiseta antiga da Seleção Brasileira autografada por Pelé. À direita da porta, um toca-disco, que junto de alguns bonecos, um rádio e outras coisas antigas, ocupa a superfície de uma estante de meia altura. Em frente, um pequeno armário de portas e divisórias de vidro guarda copos de shot de vários clubes de futebol, principalmente dos portugueses Benfica, Porto e Sporting. Mas o tesouro do cômodo está ao outro lado, junto da camiseta que passou pela caneta de Pelé. Um armário grande, que ocupa toda a parede de uma das laterais e com duas portas de vidro grosso, que só permitem enxergar as cores do que há dentro do roupeiro, armazena os principais itens do acervo do colecionador de camisetas.
A paixão por futebol e especialmente por camisetas vem desde a infância nos anos 70 e 80, época em que a Seleção Brasileira era tricampeã mundial e que teve o melhor time não campeão da história, na Copa do Mundo de 1982. Comandada por Telê Santana, aquela equipe é mais lembrada do que muitas outras que venceram. É dessa recordação afetiva que Salomão exibe sua camiseta mais valiosa. “Essa não é a mais antiga que eu tenho, mas é a mais rara, porque ela é de jogo da Copa de 82, autografada pelos jogadores daquele elenco. Ó: Falcão, Leandro, Waldir Peres, Zico, Juninho, Telê Santana, tem o do Sócrates aqui…”, aponta. A amarelinha, com o número 7 às costas, foi usada pelo então jogador do Grêmio Paulo Isidoro.
Apesar de ter um acervo com mais de 3 mil peças, Salomão tem suas predileções. É dele a maior coleção de seu time de coração, o Aimoré. Mesmo não sendo de São Leopoldo e tendo se mudado para a cidade apenas em 2000, já com 26 anos, quando se casou com a esposa Keli, passou a amar o clube do município e hoje é um dos torcedores mais notáveis do Índio Capilé. Uma parcela considerável de sua coleção guardada em casa é do clube. “Do Aimoré eu tenho mais umas 300”, comenta.
A influência de Salomão mexe até com o mercado das coleções. “A maioria das camisetas do Aimoré eu paguei barato. Há uns anos, essas camisetas valiam pouco, mas justamente porque eu comecei a colecionar, agora elas valem mais”, afirma.
A relação com o clube também é institucional. Além de ter participado do processo de criação do uniforme especial em homenagem ao bicentenário de São Leopoldo, Salomão já patrocinou – com a marca de colecionador – o Índio Capilé numa competição nacional. “Quando o Aimoré jogou a Copa São Paulo de Futebol Júnior, me ofereceram para patrocinar uma camiseta. Mas o patrocínio só iria aparecer na camiseta de um jogador mesmo. Eu tinha pensado em colocar na do centroavante, por ter mais chances de fazer gol e tal. Mas aí o Aimoré caiu num grupo com o Flamengo, então eu decidi colocar no goleiro, porque ele ia aparecer muito mais na TV’, brinca. “E naquele ano [2018], o Flamengo saiu campeão. O único jogo que eles não venceram foi contra o Aimoré, que foi um empate em um a um”, conclui.
Da relação com o Aimoré surgiram várias amizades. Uma delas é o jornalista Eduardo Oster, com quem Salomão já dividiu muitas histórias. A principal delas foi uma viagem épica ao Rio de Janeiro, num dos jogos mais importantes da história do clube capilé. Em 2022, o Índio jogou a Série D do Campeonato Brasileiro e fez uma campanha muito acima do esperado para um time que disputava a competição apenas pela segunda vez. Ficou em 2º lugar no grupo e se classificou para a fase de mata-mata. Às vésperas da última rodada, o Aimoré ainda não conhecia seu adversário e, portanto, não sabia o destino da viagem que teria de fazer. Após o último jogo, ficou definido: o Aimoré iria à Ilha do Governador enfrentar a Portuguesa do Rio de Janeiro.
Por acaso, Salomão tinha uma viagem marcada para a capital carioca no mesmo período do jogo. Eduardo não. Mas deu um jeito. “Aproveitei que tinha entrado uma grana, peguei as passagens mais baratas possíveis e fui. Peguei um voo cinco da manhã e consegui uma folga no fim de semana. Fiquei na casa de uma amiga lá e fui encontrar o Salomão numa loja de colecionador, de um amigo dele. Levei umas cevas que eu tinha comprado e o aquece foi lá mesmo. A única pessoa que eu tinha certeza que ia pro jogo comigo era ele”, conta Eduardo.
Por ser uma figura respeitada no meio das coleções, Salomão conhecia até alguns funcionários do clube carioca. “Os caras da Portuguesa levaram a gente até num tour pelo estádio antes do jogo. Conhecemos tudo, fomos muito bem recebidos. E o melhor de tudo foi que a gente ainda ganhou”, brinca.
Edu também fala sobre como o clube os uniu. “Como a fase do Aimoré estava boa e o time começou a ter bons resultados mesmo fora de São Léo, a gente fez uma homenagem, que eu acho que todos os times que têm seu passado atrelado aos povos indígenas deveriam fazer. Fizemos uma faixa escrita ‘Brasil: Território Indígena’. E o Rio de Janeiro é o lugar mais longe que a gente foi, então nós fizemos a foto que eu acho que é a mais afudê que nós temos juntos. Depois até viralizou uma foto dessa faixa em várias páginas”, relembra.
De volta às predileções do colecionador, é flagrante o seu fascínio por itens da Seleção Brasileira. A camiseta de Paulo Isidoro é apenas uma entre as dezenas que tem guardadas em seu cantinho favorito da casa. “Todas essas foram usadas em jogo”, garante ele sobre as camisetas da Seleção.
Algumas de suas camisetas do Brasil são únicas e ajudam a explicar por que Salomão é referência no assunto. “Essa aqui foi usada pelo Everaldo. Peguei com um familiar dele que me disse ‘Cara, a gente jogava bola com ela’, pode ver que tem uns furinhos nela. É de 71, foi usada na Copa Roca, no Monumental de Nuñez, contra a Argentina”, conta. Everaldo é um dos maiores jogadores da história do Grêmio, homenageado com uma estrela no escudo do clube. O lateral também foi tricampeão mundial com a maior Seleção Brasileira de todos os tempos.
O fato de ser referência em coleção faz com que Salomão esteja sempre atento aos detalhes que diferenciam uma camiseta original de uma falsificada. Para exemplificar, mostra uma que foi utilizado pelo Brasil na vitória de 2 a 1 sobre o Chile, em uma amistoso de 1987, em Uberlândia. “Essa é histórica também porque foi a única vez que o Brasil jogou com uma camiseta com um patrocínio [da Coca-Cola]. Essa camiseta é tão foda que os caras pegam camisetas originais dos clubes, recortam o patrocínio e colam na da Seleção, então tem várias falsificadas no mercado.”
As compras e trocas também possibilitam que Salomão conheça ídolos do esporte. “Esta aqui é do mesmo modelo da usada pelo Taffarel na Copa do Mundo. Foi usada pelo Danrlei”, explica ele, mostrando uma das mais icônicas da história da Seleção Brasileira. “Eu consegui com o Jamelli, que jogava no São Paulo. Ele tem um escritório lá na Mooca, em São Paulo, e me falou esses dias ‘Cara, quando tiver jogo da Champions, pinta aí para a gente ver o jogo junto com o pessoal’. Ele tem um bar do caralho lá. Daí vai o Amaral, vai a galera toda. Só de encontrar os caras já vale a pena”, diz.
As camisetas antigas são as que fazem brilhar os olhos do colecionador. “Para mim, essas camisas atuais têm muito pouco valor, porque hoje o material usado é muito mais fácil de replicar. Então daqui um tempo tu não vai saber mais o que é real ou não. E os materiais são frágeis, não vão durar tanto tempo. Elas são pensadas no conforto do jogador, no rendimento. Mas, para colecionar, têm pouco valor”, opina.
As negociações
Muito além das peças em si, o valor de várias camisetas de um colecionador está, na verdade, na forma como elas foram obtidas. “[Essa foi] a única vez que eu fiquei nervoso para comprar uma camiseta. É do jogo que classificou a Chapecoense para a final da Sul-Americana de 2016. Eu comprei com a família do Chinho, um funcionário do clube e que estava naquele voo que caiu”, conta ele sobre a trágica queda do avião da delegação do clube catarinense que vitimou 71 pessoas. Um amigo de Salomão alertou que já havia negociado com a irmã de Chinho e que havia sido complicado, já que era muito difícil para ele rever as camisetas. Para evitar constrangê-la, o colecionador decidiu conversar com o marido da irmã. Os dois combinaram de se encontrar em julho numa casa em Balneário Camboriú mas, um dia antes da data marcada, veio a surpresa. “Chegou um dia antes e ele me disse que teria que viajar, ‘tu vai ter que pegar aqui com a minha esposa’”. Salomão lamentou e pediu para que o cunhado deixasse as camisetas separadas “Para ela não precisar revirar aquilo, para não machucar ela”, explica. “Aí chegamos lá, era a casa da mãe do cara que faleceu. Como eram férias de julho, a família inteira estava lá na casa, até os dois filhinhos do cara”, conta, emocionado. A camiseta mostrada foi uma do San Lorenzo, usada na última partida contra o clube de Chapecó na Sul-Americana.
Algumas das camisetas mais fascinantes do colecionador são as da Copa do Mundo de 1998. Devido à fragilidade do material utilizado na numeração, as peças são armazenadas em um local diferente. Embrulhadas, são tão valiosas quanto faz parecer a embalagem de presente dourada em que estão guardadas. A número 17 e com a frente completamente rabiscada de autógrafos foi usada pelo ex-volante Doriva. A 9, certamente a mais rara, foi usada e suada por um dos maiores protagonistas daquele torneio. O então melhor jogador do mundo, Ronaldo, o Fenômeno. Mas a peça com a história mais instigante é a 20, do já campeão mundial e membro da mais gloriosa dupla de ataque da Seleção Brasileira, Bebeto. Salomão descreve a origem inusitada do item. “Essa aqui estava com um morador de rua. Um amigo lá do Rio me chamou e perguntou se eu queria. Às vezes o jogador nem sabe que aquilo tem valor, ou então deu de presente para alguém que não está nem aí, entendeu? Aí esse meu amigo comprou a camiseta do cara e me disse ‘Eu não tenho coragem de vender essa camiseta, mas para ti eu vendo. Tu quer?’ E aí peguei. E elas estão intactas”, mostra ele, orgulhoso.
Outra história extraordinária veio de uma camiseta de um italiano que jogou nos Estados Unidos com Pelé. “Esta aqui, do Cosmos, eu peguei com um jogador que foi ídolo do Vila Nova e que jogou no Santos. Fernandinho é o nome dele. Tinha um italiano que jogava lá no Cosmos, e ele quebrou a perna do Fernandinho num jogo. Daí ele foi no hospital visitar o Fernandinho e deu a camiseta de presente para ele.” O italiano em questão era Giorgio Chinaglia, centroavante, camisa 9 e maior artilheiro da história do clube estadunidense. Ídolo também da Lazio, chegou a ser presidente do clube biancocelesti.
Um bom – e famoso – amigo
“Já negociamos muitas coisas. Ele não vende nada, não precisa de dinheiro”, brinca Salomão sobre sua amizade com o influenciador Casimiro.
“Ele me conhece desde que era moleque. Uma vez o pessoal do Cartoon Network fez um programa comigo e uma outra gurizada. Aí uma menina disse ‘Porra, o Casimiro segue o cara, só isso’. Eu ainda disse ‘Ah, deve ser o Casemiro da Seleção’, porque eu não conhecia ele. Foi ali que eu comecei a seguir. Aí um dia eu comentei em um story dele e ele me respondeu ‘Pô, é uma honra. Tu é uma lenda! Quando eu era estagiário lá no Esporte Interativo eu não tinha nem coragem de te chamar’. Acho que eu sou o único colecionador que já entrou lá no acervo dele”, revela.
Pelo fato de ter tanto conhecimento sobre coleção e ter se tornado uma referência no tema, Salomão dá dicas para quem o pergunta sobre a originalidade das peças. “O dia inteiro eu passo respondendo os caras perguntando, ‘Essa camiseta, eu posso comprar?’, e aí eu passo o tempo todo dando dica para a galera. Por isso que eu tenho esse respeito, inclusive do Cazé. Já aconteceu de ele mandar mensagem perguntando pra mim se era confiável”, comenta.
O colecionador já tentou vincular o influenciador ao seu clube do coração. “Eu até tentei colocar o patrocínio dele na camiseta do Aimoré, mas empresas que transmitem jogos não podem patrocinar clubes. A Amazon, por exemplo, teve que deixar de patrocinar todos os times para poder transmitir”, esclarece.
Além do futebol
A sala particular revela outras paixões do colecionador. “Os meus vinis não são de grande valor. Esses eu compro mais para o meu gosto mesmo. O som no toca-disco é outra coisa. CD e tal eu não tenho esse tesão, porque eu gosto mais das coisas mais antigas mesmo.”
Hoje Salomão vive com a renda de imóveis que aluga, mas já foi, até 2009, sócio da rede de parques de diversões Parque Tupy. Em seu quarto, salta aos olhos uma placa enorme de fibra com o nome do parque. “Esse letreiro aí tava pra vender na internet. Aí eu perguntei pro cara quanto era e tal, e ele começou a me contar toda uma história. Eu disse que eu ia comprar, mas falei ‘Brother, isso tudo que tu tá falando é mentira. Eu trabalhava no parque, eu sei quem pintou, foi meu irmão quem fez a forma das letras, o Seu Raimundo que pintou, então o que tu tá falando não tem sentido nenhum’”, comenta.
Ainda sobre a compra do letreiro, Salomão conta sobre outra invenção do vendedor. “Isso aqui era um brinquedo que era uns carrinhos que giravam em círculo, e o nome do brinquedo era carreata. E aí ele me contou que quando o parque chegava na cidade eles faziam uma carreata no Centro, aí eu expliquei que isso não fazia nenhum sentido, porque a gente inclusive evitava as ruas centrais, para não derrubar os fios dos postes”, explica, descontraindo.
O carinho pelo Parque Tupy segue vivo. “O parque era tão movimentado que toda vez que eu vou numa feira eu acho umas quinquilharias que o parque dava de brinde na época. E sempre que eu vejo, eu compro. Chaveiros como este aqui, por exemplo”, mostra ele. A vocação de colecionador tem consequências em seus hábitos de consumo. “Eu gosto de coisas antigas no geral assim, então quando eu vejo coisas que eu acho bonitas e que são baratas eu pego”, declara.