Quinta-feira, calor de trinta e todos os graus. Chego ao Match clube de sinuca, em Canoas, depois de sofrer no trânsito da BR-116 em um fim de tarde. Junto com minha colega Amanda Ferrari, espero pela abertura do salão. O entregador de pizzas congeladas nos faz companhia. Peço uma das suas caixas térmicas para usar como banco e nem vejo o tempo passar. a porta se abre e surge um apressado Luiz Gomes, proprietário do local. Entramos: eu, Amanda e o senhor das pizzas. Está aberto o salão.
Eu e minha colega pedimos para usar o espaço da mesa 4 para realizar a entrevista (a mesa está com o pano novinho), montamos as bolas para uma partida de Six Reds e aguardamos nosso perfilado. O clube mal abre as portas e surgem os primeiros clientes. São jogadores de sinuca e abrem horário na mesa ao lado. Curiosos pela nossa presença, discutindo posições de foto e filmagem com câmeras em punho – claramente não jogamos sinuca -, eles perguntam ao velho Gomes quem somos. “Estudam Jornalismo”, explica. “Vieram fazer uma entrevista com o Tuzinho”, completa. Os semblantes mudam, surgem sorrisos e brincadeiras. Alguém toca a campainha, a porta se abre. Carregando um taco e um sorriso largo, entra o senhor Jovani Silveira Alves.
Não, seu nome não é Artur. O que muitos acreditam ser um diminutivo de Artur é, na verdade, um diminutivo do pronome tu. O apelido surgiu no início da década de 1990, e foi dado por outro jogador: o Chinês – que na verdade era um brasileiro da Ilha da Pintada. O “tu, pequeno” era uma brincadeira porque ele era o mais jovem jogando no salão, e foi durante muitos anos um nome reconhecido apenas no círculo dos jogos.
Enquanto bebia chá gelado, Tuzinho discorria sobre a própria vida, visitando o passado e revelando lembranças com espantosa e admirável leveza. O que para muitos pode ser motivo de angústia e tristeza, para ele era motivo de alegria e satisfação. Foi assim que soube que esse esteiense da gema (da menor cidade do Brasil em área) teve o primeiro contato com uma mesa de bilhar ainda criança. Depois das partidas de futebol de várzea – seu pai era um entusiasta -, a copa mais perto do campo era o destino. E lá estava a mesa. Foi através da televisão, contudo, que a paixão se transformou em amor: assistindo ao programa Show de Esportes, na TV Bandeirantes, o já adolescente Jovani queria emular o que faziam Rui Chapéu, Roberto Carlos, Jesus e outros craques da sinuca na época. Narradas por Luciano do Vale e Juarez Soarez, as partidas de sinuca foram transmitidas em TV aberta de 1984 até 1992, o que ajudou a popularizar o jogo e a desmistificar o estereótipo de “coisa de malandro e vagabundo”.
Embora jogasse há muito, foi só em 1995 que disputou o primeiro torneio oficial. Anos antes, em 1988, o Comitê Nacional de Desportos reconheceu a sinuca como esporte e, seguindo os exemplos de São Paulo (1979) e do Paraná (1989), em 1995 foi fundada a Federação Gaúcha de Bilhar e Sinuca (FGBS). No mesmo ano organizaram o primeiro campeonato estadual. Tuzinho era um dos favoritos e admitiu estar voando tecnicamente naquele ano. Mas amargou um modesto oitavo lugar. Nesse ponto da conversa, o sorriso largo e carismático deu lugar para um rosto sério e fechado. Deu as caras um obstinado pela evolução. “Até então eu pensava que o sucesso no jogo dependia 70% da técnica e 30% da parte mental”, disse. “A partir daquele dia eu comecei a pensar o contrário”, completou.
No ano seguinte veio o primeiro título. Em 1997 e 1998, dois vice-campeonatos para o Boneco, então uma das primeiras forças do Estado. Nos 13 anos seguintes vieram 10 títulos e 3 vices. Sem saber precisar os anos exatos em que foi campeão, em decorrência da maioria dos campeonatos serem de uma era pré-digital, Tuzinho só se mostrou triste, durante toda a entrevista, nesse momento. Quando decidiu fechar seu salão de sinuca – Pot Black, em Esteio -, ele emprestou seus troféus para decorarem um pub na cidade de São Leopoldo. “As enchentes de maio?“, questionei. “Os donos do pub brigaram, fecharam o local e nunca me entregaram os troféus”, explicou. “Mau-caráter”, pensei em voz alta.
Já eram quase sete da noite e o salão começou a lotar. O sol lá fora se punha, o gelo nos três copos sob a mesa derretera e o nosso entrevistado já passara pelo seu auge no esporte. Aos 53 anos, “ainda é um dos três mais fortes do Estado”, me segredaram. Já fora o primeiro, com folga para o segundo. Mas o tempo passa e a vida tem ciclos: se a melhor forma como atleta já passou, Tuzinho agora atua voluntariamente como presidente da FGBS. Ele garante que “não é sua praia”, mas é uma forma de ajudar o esporte no Rio Grande do Sul.
Antes de deixarmos o salão, Amanda e eu pedimos para filmar e fotografar algumas tacadas. Quem estava na mesa ao lado interrompeu o jogo para assistir à apresentação. Tuzinho nos fez um convite como atleta e cartola: “Durante os dias 15, 16 e 17 de novembro, ocorrerá a última etapa do Campeonato Gaúcho de Sinuca 2024”. Em Porto Alegre?”, perguntou Amanda. “Aqui no Match. É a etapa final e estou liderando, empatado em pontos com o Goiano (Volney Ferraz)”, respondeu.
Já no carro, a caminho da Unisinos, Amanda e eu nos perguntávamos sobre o que estaremos fazendo no final de semana do feriado da Proclamação da República. Lembrei sobre o que o Tuzinho nos falou acerca do seu reconhecimento Brasil afora, de sair do completo anonimato para um lugar de destaque e respeito: “Talvez seja menos pelo meu jogo e mais pela minha idoneidade. Não tenho pretensão de ser o jogador mais conhecido, nem o mais forte, mas sei que meu nome tem o espaço dele”. Um jogador 12 vezes campeão estadual ser mais lembrado pelo seu caráter do que pelo seu jogo diz mais sobre o Jovani Silveira Alves do que sobre o Tuzinho. Me despedi da Amanda, na universidade, e decidi: assistindo à final do estadual. No feriadão, eu vou estar assistindo à final do Campeonato Gaúcho.