*Matéria produzida por Alana Schneider, Denilson Flores e Valentina Lopardo
A cada cinco dias, uma pessoa morre no trânsito de Porto Alegre. Os dados da Empresa Pública de Transporte e Circulação da Capital (EPTC), disponíveis no site da Prefeitura Municipal, apontam que os motociclistas são as principais vítimas do trânsito e representam, sozinhos, 43% das mortes. As ocorrências compreendem o período de 2019 a julho de 2024.
Mas o cruzamento de dados da EPTC com os do Detran/RS, enviados via Lei de Acesso à Informação (LAI), acendem outro alerta: enquanto a frota de motocicletas cresceu 6% (2019-2023) em Porto Alegre, o número de acidentes envolvendo motos expandiu 45%.
Em 2019, a cidade fechou o ano com 3.347 acidentes com motos e, após uma queda durante a pandemia, voltou a registrar aumento. Em 2023, alcançou a maior marca do período, 4.876 acidentes. E a projeção de 2024 não dá sinais de melhora. Nos primeiros sete meses já são 2.525 ocorrências com motocicletas. Se mantida a média mensal de 360 acidentes até o final do ano, 2024 deve registrar a segunda pior marca do quinquênio, com aumento de quase 32% em relação à 2019.
Apesar do crescimento de ambas as variáveis, o número de óbitos de motociclistas se manteve com uma média de 33 por ano. O diretor de Operações da EPTC, Carlos Pires, explica que a entidade trabalha para entender os motivos dessa anormalidade.
“Imaginamos que possa ter algo de psicológico, considerando os eventos traumáticos vividos no estado. É o mesmo reflexo que houve pós-pandemia, a gente nota pessoas com mais pressa, menos cuidado e menos segurança.”
No período analisado, entre 2019 e julho de 2024, foram registrados 421 óbitos no trânsito. Destes, 182 eram condutores ou ocupantes de uma moto, conforme dados da EPTC (LAI). Esse público representa 43% das mortes, enquanto os outros 57% englobam pedestres, ciclistas, motoristas e passageiros de veículos de quatro rodas.
Para a presidente da Associação Brasileira de Psicologia de Tráfego do Rio Grande do Sul (ABRAPSIT/RS), Patricia Sandri, tanto a pandemia como a enchente de maio contribuíram para um adoecimento mental da população e, consequentemente, se refletem em comportamentos inseguros e infracionais no trânsito.
“As pessoas não se transformam no trânsito. Não é subindo na moto que eu vou me transformar e ter um comportamento agressivo. Isso já é algo que está dentro da pessoa e no desenvolvimento daquela personalidade.”
Maioria das vítimas não usa veículo profissionalmente
Quando se trata de acidentes envolvendo motocicletas, facilmente vem à cabeça a imagem de um motoboy. Há uma certa crendice de que eles são os que mais morrem no trânsito. Ledo engano. Nos últimos dois anos, a EPTC vem registrando a atividade profissional dos motociclistas envolvidos em sinistros com morte. A reportagem não teve acesso aos dados abertos desse levantamento, mas recebeu da assessoria de imprensa, por Whatsapp, os tópicos do biênio.
No período de 2023 a agosto de 2024, 64 óbitos foram registrados em sinistros de trânsito envolvendo motos. Destes, 28% eram motoboys e 66% deles faziam uma entrega no momento do acidente. O processo de identificação das vítimas considera detalhes como a placa vermelha, o registro profissional na CNH, o baú personalizado, além de informações fornecidas pelos familiares e colegas.
Conforme o diretor de Operações da EPTC, Carlos Pires, os dados são um reflexo de que motoristas que utilizam a moto profissionalmente se acidentam menos do que aqueles que dirigem esporadicamente. “Essa categoria [motoboys] tem mais perícia e sabe enfrentar o trânsito com mais habilidade e segurança.”
Mas apesar da iniciativa da EPTC, a escassez de dados sobre a categoria ainda é muito grande, um nevoeiro que dificulta a compreensão sobre a representatividade dos motofretistas em Porto Alegre. Afinal, como proteger os profissionais que tem no trânsito seu ganha pão quando não se sabe quantos eles são?
A reportagem entrou em contato, via e-mail e redes sociais, com as três principais plataformas de delivery da Capital – Ifood, Uber e Zé Delivery –, mas não teve retorno quanto ao número regional de associados. Além disso, não foi possível fazer um levantamento do total de motofretistas que integram cooperativas. O Sindicato dos Motociclistas Profissionais (Sindimoto) estima que cerca de 50 mil motoboys atuem na Capital.
“É uma previsão, porque ninguém tem esse número. Se estivéssemos com todos os motofretistas regularizados, aí teríamos os dados corretos”, afirma Valter Ferreira.
Profissionalização como estratégia preventiva
A redução no número de motociclistas que perdem a vida no trânsito ou que precisam lidar com sequelas permanentes, passa por diferentes frentes de atuação dos órgãos responsáveis, com destaque para o investimento na profissionalização dos motoristas. Uma estratégia que além de preventiva, agrega valor ao serviço oferecido e possibilita obter dados sobre esses profissionais.
Com mais de 23 anos de experiência em tele-entrega, a motofretista Ana Paula Provensi de Moraes conta que a expansão das plataformas de delivery, após a pandemia, impactou diretamente no poder de compra da categoria.
“A gente meio que quebrou, porque nossa ‘banda’ tá com o valor defasado. É uma concorrência muito desleal”, relatou por telefone.
Ana Paula é também uma das gestoras da Buscar Express, cooperativa de entregadores de Porto Alegre com mais de 500 motofretistas ativos. Segundo ela, para se manter competitiva, a Cooperativa precisou reduzir o preço da corrida – de R$ 20 para R$ 12 – e flexibilizar, inclusive, exigências para ingresso na cooperadora.
“Antes tinha que se barbear, agora pode ter barba. Não precisa ter o curso profissionalizante de motofrete. E com o déficit de motoboys, pois muitos migraram para os aplicativos, passamos a aceitar menores de 21 anos”, relatou.
Em média, a cooperativa registra um óbito anual, além de afastamentos temporários em função de lesões graves, como fraturas. Provensi, acredita que investir na capacitação dos motociclistas contribui diretamente no comportamento dos profissionais do trânsito. Ela mesma diz sentir a diferença.
“Eu tenho curso de motofrete e vejo como ajudou na minha relação com o trânsito.” Por isso, diz ser urgente regulamentar as plataformas de delivery, a fim de que mais motociclistas sejam profissionalizados.
“Ou elas dão um jeito de o motoboy conseguir se bancar, pagar o INSS e o seguro de vida, ou elas mesmas se responsabilizam por esses direitos […] O motoboy ganha bem, vivo. Depois de morto, o valor que a gente recebe do INSS é insuficiente, especialmente para quem fica com sequelas permanentes e subsidia a família”, diz.
O diretor de Operações da EPTC admite que há pontas soltas que precisam ser resolvidas pelos órgãos de trânsito no que tange à profissionalização e regulamentação da categoria. Entre elas, dar maior celeridade à emissão do alvará de motofrete e ampliar a oferta do curso de motofretista – itens obrigatórios para todos que exercem serviço remunerado de transporte de mercadorias. Além de garantir a fiscalização desses itens.
A reportagem solicitou, por e-mail, à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Turismo (SMDET) o número de alvarás de motofrete emitidos em Porto Alegre desde 2019, mas até o fechamento desta reportagem não havia obtido resposta. Em relação ao curso de motofrete, previsto pela Lei 12.009/2009, a reportagem entrou em contato com todas as instituições habilitadas pelo Detran/RS na Capital. Da lista disponibilizada no site do órgão, somente o SEST/SENAT abriu uma turma em 2024, que teve três inscritos. A instituição teve sua estrutura atingida pela enchente de maio e por isso não disponibilizou o curso no segundo semestre. A principal queixa das instituições é a baixa procura dos motociclistas. Mas se é obrigatório, por que essa falta de demanda?
“Para mim, enquanto órgão gestor de trânsito, é muito fácil cobrar e multar o motociclista. Mas isso não resolve. Eu tenho que criar fórmulas e dar condições facilitadas para que essas pessoas se profissionalizem, façam o curso e consigam comprar um bom equipamento. Muitas coisas vão melhorar a partir daí, principalmente para quem está na ponta, que são os próprios trabalhadores”, destaca Pires.
“Aprendi pela dor”
Felizmente, Lincoln Silveira, 51 anos, não entrou para as estatísticas de óbitos, mas foi um dos motociclistas que teve de aprender a viver com as sequelas do acidente.
A entrega por aplicativo surgiu na vida do Lincoln como uma complementação de renda. Então metalúrgico, saía do trabalho e ligava o aplicativo para “fazer umas entreguinhas ali, e acolá”. Com a demissão em 2014 e a dificuldade de se recolocar no mercado de trabalho, a rotina de entregador passou a ser integral.
“Na pandemia todo motoboy estava ganhando muito bem porque só dava nós na rua trabalhando, o resto tudo fechado”, conta.
E foi em serviço, durante uma dessas entregas, que o Lincoln colidiu com o destino. Em março de 2020, acompanhado da esposa, o motoboy se chocou contra a traseira de um carro parado em meio a Freeway. “Bati com a minha perna na quina do para-choque, e com a minha esposa fui projetado por sobre o carro”.
No caso do Voyage envolvido no acidente, Silveira conta que houve uma pane no veículo, mas o motorista não colocou sinalização na via.
“Eu fui para o hospital, cheguei tranquilo, sem muita dor, por incrível que pareça. O osso para fora, a perna em formato de Z. Fui direto para o box cirúrgico e botaram aquele ferro na minha perna. Quando eu acordei, aí começou o inferno na minha vida, aí eu fui conhecer o que é sentir dor. Entre apagar e acordar de dor eu fiquei no hospital durante quase 20 dias”, relata.
Nos oitos meses que sucederam o acidente, Lincoln teve três osteomielites – infecções no osso – e precisou amputar parte do membro inferior direito.
“Foi um soco no estômago, né? Chorei, mas levantei a cabeça, olhei para o médico e disse ‘vamos cortar, pelo menos vai acabar essa dor e eu vou dar um jeito de comprar uma prótese’”.
O entregador conseguiu adquirir o aparelho ortopédico com a ajuda de uma vaquinha online, dando início a um desafiador período de adaptação.
“Vou te dizer que o mais difícil foi reaprender a caminhar. Esse processo levou de dois a três meses.” Com insistência ou “pela força do ódio” como descrito por Lincoln, ele voltou, também, a pilotar uma moto.
De volta a rotina de entregador, o motociclista diz ter mais prudência e compreendeu que nenhuma corrida vale a vida.
“Hoje com certeza sou muito mais prudente. Não ando mais com o ‘cabo enrolado’ [gíria para quem corre no trânsito]. Se eu saio para fazer uma entrega e estou atrasado, ligo para o cliente e digo que vai atrasar. Eu não vou morrer para chegar no horário. E como qualquer ser humano não aprendi isso pelo amor, aprendi pela dor.”
Mas diferentemente de Lincoln, que hoje dedica parte do tempo para conscientizar e ajudar colegas que também carregam cicatrizes do trânsito, quantos outros motociclistas não tiveram uma segunda chance?
[…] E nesse cenário em que o motociclista é a vítima mais frágil do trânsito, como proteger quem tem na moto o ganha pão? A reportagem amplia a discussão em torno do tema e joga luz à situação dos motofretistas, os pop…. […]