48% dos motociclistas mortos no trânsito de Porto Alegre não tinham 30 anos de idade

Segundo os dados obtidos com a EPTC, via Lei de Acesso à Informação, 92% das vítimas eram homens. O levantamento vai de 2019 a julho de 2024
No período analisado, 182 óbitos foram registrados entre condutores e ocupantes de motos - (Foto: Alana Schneider)

*Matéria produzida por Alana Schneider, Denilson Flores e Valentina Lopardo

No dia em que você estiver lendo essa reportagem, 11 motociclistas terão se envolvido – ou ainda se envolverão – em um acidente de trânsito em Porto Alegre. Três perderão a vida ao longo do mês. E no ano, cerca de três times de futebol serão enterrados em função de sinistros de trânsito, 48% das vítimas será muito jovem.  Os dados são da Empresa Pública de Transporte e Circulação de Porto Alegre (EPTC) e estão disponíveis no site da Prefeitura Municipal.  

Em 2019, Porto Alegre fechou o ano com 3.347 acidentes de trânsito envolvendo alguma motocicleta. Com o início da pandemia e a consequente redução do tráfego, foram registrados 2.895 sinistros, queda de 15,5%. Um ano depois, com a gradual retomada das atividades e dos carros, as ocorrências chegaram a 3.768 e, em 2023, alcançaram a maior marca do período, 4.876 acidentes, um aumento de 68% em relação ao ano de pandemia.

A elevação dessas ocorrências acompanha o crescimento da frota de veículos da Capital, isto é, há mais motos em circulação e um número maior de acidentes. De acordo com os dados enviados pelo Detran/RS via Lei de Acesso à Informação, em 2019, Porto Alegre tinha 86.876 motocicletas e fechou 2023 com 92.047, aumento de 6% na frota.

Os dados foram obtidos com a EPTC e o Detran/RS e compreendem o período de 2019 a julho de 2024 – (Arte: Alana Schneider)

Apesar do crescimento de ambas as variáveis, o número de óbitos de motociclistas se manteve com uma média de 33 por ano. Mas até quando? 

Os dados parciais de 2024 não apontam para uma melhora, pelo contrário. Em sete meses, Porto Alegre já registrou 68% dos óbitos de motociclistas de 2023 tendo pouco mais da metade dos acidentes e um acréscimo de 2.401 motocicletas.

Motociclistas são as principais vítimas do trânsito na Capital

A constatação vem do cruzamento de dados de acidentes, disponíveis no site da prefeitura, com o número de óbitos de motociclistas enviado pela EPTC, via Lei de Acesso à Informação (LAI). No período analisado, entre 2019 e julho de 2024, foram registrados 421 óbitos. Destes, 182 eram condutores ou ocupantes de uma moto. Eles representam sozinhos 43% das mortes do trânsito. Os outros 57% englobam pedestres, ciclistas, motoristas e ocupantes de veículos de quatro rodas.    

Uma das mães que chora a perda do filho é Carolina da Costa, 44 anos. Em 06 de junho deste ano, a funcionária pública atendeu ao telefonema que nenhuma mãe deveria receber.

“Quando eu vi que era o amigo dele me ligando, eu imaginei que não era boa coisa. Pois eles estavam juntos naquela noite, eram como irmãos. Ele me deu a notícia e eu já saí de carro até o local, pois foi a 200 metros de casa.”  

Carolina conta que um dos locais favoritos do filho era o galpão (da foto) construído ao lado da sua casa – (Foto: Alana Schneider)

Aos 23 anos, Khrystofer da Costa Pacheco voltava de uma confraternização com amigos quando perdeu o controle da moto e colidiu contra um poste na Avenida Bento Gonçalves, logo após a rua Professor Cristiano Fischer. Foi fatal.

“Estava tudo bem com ele. Tenho para mim que foi aquele segundo de distração, aquele momento que tu pensas em algum problema e se descuida. Principalmente porque está chegando em casa, né?”, relatou a mãe.  

Khrystofer era formado em Segurança Pública e ativo em trabalhos voluntários. Durante as enchentes de maio, foi incansável na distribuição de donativos e nos resgates às vítimas. Entusiasta da tradição gaúcha, tinha como vestimenta favorita bombacha, alpargata, guaiaca e chapéu. Chico – como era conhecido desde a infância – faleceu em um dos tipos de acidente mais frequentes entre motociclistas: o choque de trânsito (contra objetos físicos), que é responsável por cerca de 31% das mortes de condutores e ocupantes de motos, atrás apenas do abalroamento – colisão entre dois veículos – que representa 38% dos sinistros com óbito.

Os dados, enviados pela EPTC via Lei de Acesso à Informação, compreendem o período de 2019 a julho de 2024 – (Arte: Alana Schneider)

Coincidência ou não, Carolina atua na coordenação de serviços da EPTC e acompanha, diariamente, os desafios do trânsito.

“Para além da imprudência e da desatenção, há os problemas das próprias ruas. É tampa de bueiro acima do nível do asfalto, é buraco, vias ruins. São várias as situações que contribuem com as ocorrências”, diz.

Avenida Bento Gonçalves é a mais letal de POA

Dados enviados pela EPTC via Lei de Acesso à Informação registram, desde 2019, a morte de motociclistas em 105 locais diferentes da cidade. Khrystofer foi vítima, justamente, dá mais perigosa: a Bento Gonçalves. Com quase 11 quilômetros de extensão, a avenida conecta a zona central às proximidades de Viamão e contabiliza 10 óbitos, seguida da Av. Juca Batista, na Zona Sul, com oito decessos.

Gráfico construído com base nos dados enviados pela EPTC, via Lei de Acesso à Informação, sobre óbitos de motociclistas entre 2019 e julho de 2024 – (Arte: Alana Schneider)

Ainda envolta em luto e ao lado da filha de 17 anos, Carolina tenta aprender a viver com a ausência do primogênito.

“Não vai cicatrizar, porque filho é para sempre. É uma dor eterna. Tem dias mais fáceis, tem dia que tudo é um buraco e tu quer sumir, não quer sair da cama, né? O acidente foi de uma quinta pra sexta. Então, quando chega quinta de noite já é ruim, sextas de manhã são horríveis para mim”, relata.

Além da moto, Khrystofer gostava de cultuar as tradições gaúchas; durante as enchentes, atuou nos resgates às vítimas – (Fotos: Carolina da Costa/Arquivo Pessoal)

Para quem utiliza as ruas e avenidas da Capital, a tragédia tem hora e data para acontecer. Às quintas-feiras, dia da morte de Khrystofer, somam 15% dos acidentes com vítimas fatais envolvendo motocicletas. Conforme dados da EPTC, extraídos do site da Prefeitura Municipal, os finais de semana são os mais violentos, com 35% das ocorrências, das quais, 44% acontecem entre às 21h da noite e às 05h da madrugada.  

Dados extraídos da planilha de Acidentes da EPTC, disponível no site da Prefeitura, com as ocorrências de 2019 a julho de 2024 – (Arte: Alana Schneider)

Considerando especificamente óbitos de motociclistas, não é possível identificar o número de vítimas por dia da semana, mas os dados enviados pela EPTC via (LAI) fornecem um panorama dos horários mais violentos do dia. Os picos, somando os dados de 2019 a julho de 2024, são registrados às 7h da manhã, às 17h da tarde e às 21h da noite, período que remete ao início e término da jornada de trabalho.

“É não te desligar do volante, não te desligar do trânsito em nenhum segundo, porque é quando os problemas acontecerão. A gente tem que cuidar os últimos quilômetros, as últimas quadras, os últimos minutos, porque são os mais perigosos”, detalha Carolina.

A moto é uma paixão compartilhada pela família. Carolina conta que ambos gostavam de pilotar – (Foto: Alana Schneider)

Até o mês de julho deste ano, 22 famílias já enterraram entes queridos vítimas do trânsito de Porto Alegre – entre condutores e ocupantes de moto. Até o final do ano, outras 11 devem fazer o mesmo, com base na média anual de óbitos. Das mortes já registradas, oito pais e mães como a Carolina, se despediram dos filhos antes de vê-los chegarem aos 30 anos de idade. Trata-se de uma cadeira vazia na Universidade, da perda intelectual e de trabalho das empresas, de uma residência desocupada, ou mesmo, de um filho órfão. A perda desses jovens no trânsito é uma derrota coletiva.

E nesse cenário em que o motociclista é a vítima mais frágil do trânsito, como proteger quem tem na moto o ganha pão? A reportagem amplia a discussão em torno do tema e joga luz à situação dos motofretistas, os populares motoboys.

Alana Schneider

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