“A minha vida é a luta. Eu vivi todos esses anos em prol da causa LGBT.” Com essa frase, Suelci Fontana, mais conhecido como Lolita Boom Boom, sintetiza uma trajetória de mais de 30 anos dedicada à arte drag e à militância LGBTQIAPN+ no Rio Grande do Sul. Aos 54 anos, Su construiu, sob maquiagem, brilho e coragem, um legado que atravessa décadas, transformou espaços culturais e impactou políticas públicas em São Leopoldo e na região do Vale do Sinos.
Lolita nasceu nos anos 2000, quando Su era dono da boate Eclipse, em São Leopoldo. Na época, os tempos eram outros, mais violentos e mais fechados. Onde pessoas como Lolita, muitas vezes, se vestiam na Praça da Biblioteca porque não podiam sair montadas de casa. “Eles vinham de ônibus e não poderiam vir vestidos de mulher porque apanhavam na rua”, lembra.
Foi nesse cenário de refúgio e resistência que a personagem surgiu, quase por provocação do público. “Eu apresentava os shows e as pessoas começaram a me cobrar: ‘Por que tu não te monta?’. Então fiz um cartaz: Tal dia, estreia da Lolita Bumbum. Ninguém sabia quem era. E, no dia, apareci montada”, conta, entre risos.
A primeira versão da Lolita era uma caricatura: peitos e bundas enormes, roupa colada em segunda pele, um corpo exagerado. “Era a Lolita Bumbum, de bumbum mesmo. Depois virou Boom Boom, de explosão. Pois, com o tempo, passei a usar mais o meu próprio corpo e parei com os enchimentos. A arte foi evoluindo comigo.”
Com o sucesso das apresentações, Lolita foi além da cidade: fez shows em diversos Estados do Brasil e em países como Uruguai e Paraguai. “Começou como uma brincadeira, e acabou se profissionalizando”, comenta ao relembrar o início de sua trajetória.
Apesar da longa história como Lolita Boom Boom, hoje Su prefere ser chamado de Loly Drag. A decisão veio por causa da conotação que o termo “Lolita” ganhou nos mecanismos de busca, frequentemente associado ao livro e filme homônimos que envolvem abuso infantil. “Se tu procura no Google, aparece mensagem perguntando se tu precisa de ajuda psicológica. Muitos vídeos meus foram banidos por causa disso. Então mudei para Loly Drag, uma abreviação que mantém o espírito do nome, sem os problemas.”
Mas o nome pode ter mudado. O impacto, não. Lolita se tornou sinônimo de drag queen em São Leopoldo. “Tinha criança que via um show com carro de som e dizia ‘uma Lolita’, porque não sabiam o que era uma drag. Para elas, drag era eu.”

A arte como política viva
A arte de Lolita nunca esteve separada da militância. Antes mesmo de estrear nos palcos, Su já atuava em causas LGBTQIAPN+. “Há quase 30 anos a gente já tinha feito uma revolução na Rua Independência. Uma parada ‘enorme’ de 15 pessoas, com faixas e cartazes, gritando. Fazer isso naquela época era um abuso. E eu nunca fui de baixar a cabeça pra ninguém”, conta, com orgulho.
Essa disposição para o enfrentamento o levou a idealizar a Parada da Diversidade Sexual de São Leopoldo, em 2004, um dos maiores eventos do município, que chegou a reunir 50 mil pessoas. Su é categórico ao defender o nome do evento: “Parada da Diversidade Sexual” e não “Parada Gay” ou “Parada Livre”. Para ele, é uma questão de inclusão política: “Nunca deixei mudarem o nome pra Parada Gay ou Parada Livre. A diversidade sexual contempla mais. A gente luta pela nossa diversidade de podermos ser o que somos, termos o corpo que temos, vivermos como somos”.
Durante duas décadas, a parada foi organizada pelo Fórum LGBT de São Leopoldo, que Su preside. Ainda assim, ele revela que muitas vezes ficou sozinho na linha de frente: “Quando a gente lança a reunião da primeira parada, dá 20, 30 pessoas. Chega na semana da parada, tá eu e mais duas, três fazendo tudo. Quando não sou só eu”.
Mesmo sendo protagonista da cena cultural da cidade, Lolita já enfrentou muitos atos de descaso das políticas públicas. Recentemente, foi excluída da Lei Aldir Blanc sob a justificativa de que “não era artista reconhecida da cidade”. A resposta foi direta: “Quem não conhece a Lolita Boom Boom em São Leopoldo? Se não conhecem, então não têm cultura e não têm por que trabalhar com cultura. Um livro lançado ano passado conta a história da cidade e tem quatro páginas só com fotos minhas representando a nossa luta”, exclama com confiança.
Além das boates e da parada, Lolita também é conhecida por sua atuação em concursos de beleza LGBTQIAPN+. Durante 19 anos, coordenou o Miss Diversidade, com candidatas de oito cidades do Vale do Sinos. Depois, concentrou os esforços no Miss Rio Grande do Sul Trans e no Miss T World, concursos que levaram candidatas a disputar o Miss Brasil Trans e o Miss Universo Trans, título conquistado por sua candidata em 2022.
“No primeiro ano que fiz o Miss Brasil Trans, a nossa candidata ganhou e foi pra Índia. Lá, se tornou a primeira Miss Universo Trans brasileira. Foi histórico.”

Resistência como forma de existir
A vida de Lolita também foi marcada por perdas, recomeços e reinvenções. Ela fala abertamente sobre os momentos em que pensou em desistir. “Muitas vezes anunciei que ia parar. Mas voltar tá no sangue. Não adianta.”
Ela relembra quando, por questões políticas, teve a boate fechada e caiu em depressão. “Me tiraram da disputa eleitoral, fecharam minha boate. Eu fui candidata a vereadora e sabiam que era uma forte candidata. Mesmo sem fazer campanha nenhuma, fiz quase 500 votos.”
Com isso, se afastou da organização da parada por dois anos, mas logo voltou. “Disse que reassumiria com a condição de a parada voltar para o ginásio. Fui na Câmara fazer o pedido e, mesmo os vereadores da direita disseram: ‘Se a Lolita vai voltar, a gente permite fazer na praça e vamos te ajudar financeiramente’. Porque sabiam que meu trabalho não é putaria, não é frescura, não é bagaceirismo.”
Apesar de ser uma figura política, Lolita não tem cargo público, mas isso nunca a impediu de mudar a cidade. Seu trabalho ajudou a aprovar uma lei municipal contra a LGBTfobia e colocou a Parada da Diversidade no calendário oficial de São Leopoldo. “Eu nunca ganhei nada do governo. E faço muito mais que muita gente com cargo.”
Entre suas contribuições mais significativas para a cidade de São Leopoldo está a atuação direta na articulação da Lei Municipal nº 6010, sancionada em 2006. A norma determina a aplicação de multa a estabelecimentos públicos e privados que discriminarem pessoas LGBTQIAPN+, uma conquista histórica em um contexto de escassa proteção legal para essa população.
A proposta, inicialmente rejeitada na cidade de Novo Hamburgo, foi apresentada por Lolita a partir de um convite da então deputada Ana Affonso. Quando o projeto foi barrado por resistência política na cidade vizinha, ela levou o texto para São Leopoldo, onde conseguiu mobilizar apoio político e social para que fosse aprovado. “Eles pediram para eu apresentar a lei. Lá não passou. Daí nós trouxemos ela pra São Leopoldo e aqui a gente conseguiu fazer a passada”, conta. Aprovada, a lei virou um marco local no combate à LGBTfobia e um exemplo da força política que Lolita construiu fora dos palcos. Mais do que símbolo, ela se tornou também articuladora de políticas públicas e garantidora de direitos, sempre na linha de frente, com voz firme e postura inegociável.

Entre o pessoal e o político
A vida pessoal de Lolita Boom Boom é tão intensa quanto sua trajetória artística e militante. Su viveu relacionamentos marcantes e uma vida afetiva que desafiou padrões e tabus. Foi casado por 18 anos e, posteriormente, viveu um relacionamento a três durante mais de uma década. “Fomos os três pra Bahia na época. Depois me separei da relação, mas continuamos morando juntos. Hoje eu e meu ex moramos juntos há 37 anos, como amigos”, conta, com naturalidade.
Essa rede de afeto, que mistura sua arte e suas relações, também se expressa nos espaços físicos que ajudou a criar. Su foi responsável pela abertura e gestão de diversas boates ao longo das últimas décadas. Começou com a Eclipse, em São Leopoldo, ainda nos anos 1990, depois mudou-se para a Bahia, onde gerenciou o New Look Romance – boate LGBTQIAPN+ mais antiga do Brasil – e abriu um bar. De volta ao Sul, fundou espaços emblemáticos como The Queens, My Way, além de uma série de empreendimentos em Novo Hamburgo.
Uma dessas boates chegou a pegar fogo, deixando-a com “a roupa do corpo e R$ 50 no bolso”, e, mesmo assim, em 15 dias, ele já estava recomeçando. Reformou espaços do zero, investiu mais de R$ 100 mil em melhorias e enfrentou burocracias e perseguições políticas para manter a cena viva. “Algumas épocas eu fazia só eventos, outras eu abria boate. A última que tive foi a Glow, no centro de São Leopoldo. Na pandemia, não conseguimos manter. Atualmente eu larguei as boates. Estou só fazendo eventos.” Entre perdas, recomeços e o calor das pistas, a vida de Lolita é marcada por uma força criativa que pulsa tanto na arte quanto nas relações.
Em meio a afetos e afetividades, nasceu outra parte importante da sua trajetória. Lolita construiu laços também no palco, onde é mãe de diversas drags que lançou para o mundo. Entre as principais, destaca Debbie, Caliandra e Natasha: “A Debbie é apresentadora da parada de Sapucaia, a Kalliandra ainda se apresenta, e a Natasha que fazia muito show comigo na My Way. Todas foram lançadas por mim”.
Lolita reconhece os avanços das últimas décadas para a comunidade LGBTQIAPN+. “Hoje em dia as drags estão muito bem na sociedade. Antes era deboche. Hoje temos Pabllo Vittar, Gloria Groove, RuPaul. Mas só quem viveu antes sabe o que é agora. A gente está nas nuvens comparado com o que era.”
Ao mesmo tempo, ela cobra mais união dentro do movimento. “Todo mundo cobra uma boa festa, uma boa parada. Mas quem vem ajudar? Quando vai, é pra falar mal. Em vez de ouvir só a história dos outros, construa a tua história. Daqui a 30 anos, tu vai querer contar a tua ou só ler a minha?”
No fim das contas, Lolita Boom Boom é um símbolo de como arte e ativismo podem caminhar juntos, iluminando espaços que antes estavam na sombra. “Eu nunca me permiti ser desrespeitada. Eu ia montada nos bailões. Todo mundo me respeitava. A gente tem que ver até que ponto o problema é da sociedade, e até que ponto é o que tu permite que a sociedade faça contigo.”
Se a vida é luta, Lolita continua na linha de frente. E segue, como sempre, fazendo história, com ou sem peruca.
