Em 2023, pelo segundo ano consecutivo, as cooperativas de crédito foram o segmento que mais cresceu dentro do cooperativismo gaúcho. O estudo do Sistema Ocergs-Sescoop/RS apontou um faturamento de R$ 24,2 bilhões – quase 30% a mais que em 2022 – e um aumento de 26% nas “sobras”, como é chamado o lucro nas cooperativas. O desempenho positivo também teve reflexo no número de associados, que já representam 27% da população gaúcha.
Na contramão da tendência de digitalização e automação do sistema bancário, as cooperativas de crédito apostam na expansão física e na proximidade com o associado. Em entrevista à Beta Redação, o presidente do Sistema Ocergs, Darci Hartmann, explica que o segmento, que concentra 77% dos cooperados no estado, vive uma etapa de capilarização e a expectativa é de crescimento exponencial pelos próximos anos. “Estamos numa etapa de franca expansão do cooperativismo de crédito no Rio Grande do Sul e no Brasil, e ainda tem muito espaço, porque o modelo de cooperativismo financeiro é atraente para o associado”, destaca. O Sistema Ocergs é formado pela Organização das Cooperativas do Rio Grande do Sul (Ocergs), o Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo do Estado do Rio Grande do Sul (Sescoop/RS) e a Escola Superior do Cooperativismo (Escoop). Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
Quais fatores contribuíram para esse resultado tão positivo das cooperativas de crédito?
O cooperativismo de crédito apostou no relacionamento. A digitalização bancária vai acontecer, mas a aposta foi na abertura de agências, na presencialidade, no gerente ser conhecido pelo associado. As cooperativas precisam ser agentes financeiros que buscam os melhores resultados, os melhores profissionais e buscam ser competitivos no mercado. Ao mesmo tempo, devem trabalhar muito a visão do pertencimento e do associado ser o dono. E acredito que as dificuldades que enfrentamos com as secas, a pandemia e a grande enchente fortaleceram a visão do cooperar. Isso é fundamental para possibilitar um crescimento de forma tão exponencial.
A expansão física, com abertura de novas agências, é então estratégica para as cooperativas de crédito?
Sim, e acho que tem sido o grande diferencial. Evidentemente que será necessário repensar aquilo que foi importante 10 ou 20 anos atrás, mas vejo as cooperativas muito preparadas. Teremos um banco mais digitalizado, mas sem abdicar da presencialidade. Sendo jovem, adulto ou idoso, a cooperativa pertence ao associado e é ele quem define as grandes estratégias de futuro e a distribuição dos resultados. Considero parte fundamental desse DNA, onde você coopera num grande grupo com múltiplos interesses, mas a junção desses interesses gera um resultado econômico, dividido democraticamente na proporção de cada atividade. E se você investe em uma empresa bancária privada, o resultado é do banco. Isso é normal, faz parte do processo e não poderia ser diferente.
“O modelo de cooperação é o melhor modelo de desenvolvimento que tem”
Em se tratando do público jovem, conectado ao digital, como trabalhar essa retenção?
Hoje tudo é digital, mas precisamos entender como gerar valor para esse negócio. Acredito que o atendimento pode mudar e se adaptar, mas o que não muda é o DNA do pertencimento. E isto vai ser o mote do futuro. Nós precisamos saber comunicar essa visão. E não vale só para o crédito, também para os demais ramos. A distribuição de sobras [lucros] é um valor do próprio cooperativismo, mas temos que gerar outras soluções, ágeis e simplificadas. Eu não vejo um horizonte nebuloso para o sistema cooperativo. Eu vejo um processo de transição e adaptação, mas sempre acreditando que o modelo de cooperação é o melhor modelo de desenvolvimento que tem.
Qual a importância do setor agropecuário para o cooperativismo de crédito?
O cooperativismo de crédito nasceu do agro e tem sido a base da sustentabilidade do agricultor. Mas, hoje, tem se voltado para micro e pequenas indústrias. Até os empreendedores de médias e grandes cidades migram para o cooperativismo, muito por essa visão de construir uma relação, onde você pode explicar para o gerente o que pretende fazer, como vai pagar o investimento e quais as alternativas. Diria que o cooperativismo de crédito entende melhor o sonho do empreendedor. Pela proximidade é possível gerar um crédito mais bem liberado e distribuído, com mais segurança de rentabilidade e menor inadimplência.
De que forma o perfil cultural do estado influencia a expansão do segmento?
É uma característica que vem dos imigrantes. Eles tiveram que buscar o associativismo para sobreviver e toda essa tradição de trocas e escambos entre as famílias incentivou a cooperação. E quando o modelo cooperativo entrou no processo de profissionalização, indiferente do ramo, encontrou campo fértil de crescimento. [No caso do segmento de crédito], as Caixas Rurais União Popular surgiram porque o agricultor tinha que conseguir guardar o dinheiro da colheita em algum lugar para, mais tarde, comprar alimento. O que é um banco hoje, se não um espaço para depositar uma renda e sacar quando preciso. O modelo é muito parecido com o de 150 anos atrás, mas ele foi se aperfeiçoando e se profissionalizando.
O estudo do Sistema Ocergs-Sescoop/RS apontou que 88,4% dos valores alocados nas cooperativas são de risco de crédito baixo, conforme classificação do Banco Central. O que isso sinaliza?
Sinaliza que o cooperativismo de crédito conhece o seu cliente. A aprovação de qualquer investimento é feita na agência e muitas vezes o gerente conhece a família, conhece o histórico, então essa presencialidade e proximidade das cooperativas dão melhores condições para mitigar riscos de crédito. Diferente de agências bancárias comerciais, onde por vezes é um simples cadastro, e só o cadastro não fala quem é a pessoa.
“O que vamos ser daqui a 20 anos, precisamos decidir agora”
O que a Ocergs enxerga como ameaças e oportunidades no desenvolvimento do ramo de crédito?
Temos trabalhado muito forte na questão da legislação, a exemplo do ato cooperativo na reforma tributária, aprovado pela Câmara dos Deputados e que agora vai para o Senado. Nada mais é do que um trabalho que nos permita competir de igual para igual com outras entidades financeiras. A médio e a longo prazo, diria que uma ameaça é a consolidação. Pois, hoje, as instituições financeiras são nacionais/internacionais e o cooperativismo vai ter de olhar para isso, sentar e discutir o futuro, a fim de ter escala para competir. Sem esquecer, contudo, a relação com o produtor e a visão do desenvolvimento regional. Estamos numa etapa de franca expansão do cooperativismo de crédito no Rio Grande do Sul e no Brasil, e ainda tem muito espaço, porque o modelo de cooperativismo financeiro é atraente para o associado. Porém, essa horizontalização termina e aí tem que ir para verticalização, agregando valor ao segmento.
Outra questão é que as cooperativas já têm acesso ao crédito rural, mas não às folhas de pagamento das instituições estaduais e federais, reservadas aos bancos estatais. É um trabalho gradual, lento e de convencimento, pois os bancos não querem abrir para evitar a migração de usuários. Até alguns anos atrás, as instituições financeiras não tinham grande preocupação com as cooperativas de crédito. Hoje, elas estão de olho, pois teve um impacto forte no que diz respeito a movimentação econômica.
Como foi o papel das cooperativas durante as enchentes do Rio Grande do Sul?
Primeiro que tivemos uma mobilização nacional para que as cooperativas tivessem acesso ao Pronamp e Pronampe [o primeiro é exclusivo para empreendedores do setor agropecuário e o segundo pode ser utilizado por empresários de diferentes nichos], pois as agências do Banco do Brasil e da Caixa não queriam liberar. Nós conseguimos a liberação com o governo, até porque o sistema cooperativo atinge todos os municípios gaúchos, e essa capilaridade foi fundamental. O segmento também atuou, fortemente, em movimentos sociais, de assistência, mandando alimentos, medicamentos, produtos de higiene e roupas para as famílias desabrigadas.
Em se tratando do sistema cooperativista em geral, qual a expectativa da Ocergs a médio e a longo prazo?
Tem muita coisa para olharmos e trabalharmos, especialmente como Rio Grande do Sul. Nós temos um estado que está envelhecendo e perdendo os melhores talentos. Muitas pessoas querem deixar o estado depois das enchentes. Como vamos trabalhar isso? Como vamos trazer esses talentos de volta? Precisamos ampliar o número de cooperativas formais, mas principalmente criar uma visão de cooperação entre as organizações. Uma cooperação entre Fiergs, Farsul, Federasul, entidades públicas, privadas, a fim de construirmos grandes projetos de convergência. Agora, se você me perguntar, “estamos nesse caminho?”. Não. O que nós vemos é uma polarização, abrindo um fosso cada vez maior, onde vale a narrativa, a desconstrução, vale tudo, menos a cooperação. E é neste meio que o cooperativismo tem andado. O tempo dirá, mas é aquela história, o que vamos ser daqui a 20 anos, precisamos decidir agora. Não é se sentar na zona de conforto, mas criar estruturas e condições para que os jovens permaneçam aqui. Essa é a nossa função, usando da experiência e da vontade de trabalho.