Matéria produzida por Arthur Reckziegel, Gabriel Muniz, Gustavo Bays e Marcel Vogt
O palco desta reportagem investigativa é todo de chão batido esburacado e fica localizado a quilômetros de distância dos serviços municipais. Mas no mês do maior desastre climático que o Rio Grande do Sul já vivenciou, uma qualidade tornou o Morro do Paula um local privilegiado: estar longe dos rios. Desafio difícil de vencer para quem mora do Vale dos Sinos, que está inserido em uma das principais bacias hidrográficas do Estado. Apenas São Leopoldo teve mais de 100 mil pessoas desalojadas. Milhares foram para abrigos e quem pôde, se refugiou na casa de parentes em localidades em que a água não oferecia risco, como aqui.
O Morro do Paula é um lugar cercado pela mata a 300m acima do nível do mar e em uma área equivalente a mais de 110 campos de futebol. O problema que envolve seus moradores está descrito em algumas notícias de jornais regionais e, mesmo assim, datam de bastante tempo. Nem digitalmente é possível ter acesso à informação oficial. Para compreender a dimensão do impasse foi necessário fazer pedidos de informação aos três poderes, Judiciário, Executivo e Legislativo, no âmbito estadual e municipal.
Outro desafio foi conversar com os moradores e compreender como esta história começou, há mais de 40 anos.
Hilário Jordão, de 59 anos, contatado pela reportagem através de um anúncio de venda de casa no Facebook chegou a comemorar a nossa chegada. “Nós agradecemos esta tentativa de fazer a gente ser visto. É de nosso interesse que olhem para cá também e pensem em melhorias”, comenta.

Está longe de ser um paraíso
Apesar de seguro na proteção contra as enchentes, o Morro do Paula não oferece uma boa qualidade de vida. Pelo contrário, para começar a conversa, chegar lá não é tarefa simples.
A reportagem acessou a localidade de carro, por São Leopoldo, através da Estrada Morro do Paula, única forma de acesso ao local e que inclui a estrada de chão por mais de cinco quilômetros. No trecho inicial é possível ver as primeiras casas de moradores. Mais alguns quilômetros à frente, as redondezas viram praticamente só mato e a estrada se transforma em uma total buraqueira. Foram quase 30 minutos do centro de São Leopoldo até o Morro do Paula em um sábado de sol e pouco trânsito.

Os moradores já estão acostumados a colocar os endereços de parentes e amigos que moram em outras regiões quando precisam de uma entrega. “Entregas do Mercado Livre e da Shopee até vem, mas o correio não sobe aqui”, conta Nataniel Jordão Machado, 35 anos, que veio ainda criança morar no Morro.
Embora a chegada sinalize para um lugar abandonado ou esquecido, atualmente o local é movimentado. Naquele segundo sábado de junho, era possível ver crianças jogando futebol com os pés descalços e sem camisa. Pessoas na rua conversando com vizinhos e mexendo em carros com o capô aberto. O comércio é ativo, tem borracharia, lancheria, minimercados e uma loja de bebidas.

O Morro do Paula é localizado entre os limites territoriais de São Leopoldo, Novo Hamburgo, Sapucaia do Sul e Gravataí.

“Melhoria não existe, melhoria nem pensar”, exalta Carlos Roberto de Mello, morador do Morro. Na tarde que passamos lá, ele investiu um tempo esperando a chegada de um técnico da operadora de internet que presta serviço para a casa dele.
“Estou sem internet há três dias. Eles me disseram que iriam vir hoje, já faz 4 horas que estou esperando”, lamenta o morador.
Água de poço
O acesso à água é um capítulo à parte na história dos moradores do Morro do Paula. Apesar de ocupar uma área nas quatro cidades citadas acima, nenhuma delas fornece água tratada para o local, dividido entre Vila Velha e Vila Nova. De acordo com os moradores, há um poço artesiano de 165 metros de profundidade para abastecer em torno de 300 casas na Vila Velha. Na Vila Nova encontram-se dois poços que abastecem as famílias.
“O registro fica ligado três horas por dia para fazer a distribuição de água para a vila. Não tem motor, ela chega de acordo com a pressão que corre pelas mangueiras”, explica Darci de Carli, responsável pelo poço artesiano da Vila Velha.
Caminhando pelas ruas é fácil enxergar as mangueiras, que, em alguns casos, estão furadas.

Mesmo que a grande maioria das casas tenha caixa d’água, virou rotina economizá-la para o restante do dia. Os próprios moradores se organizam para ter água, sendo assim, de modo informal, cada família precisa pagar R$50 por mês pela prestação do serviço. “Um novo poço artesiano viria muito bem na Vila Velha, seria bem importante”, pede o responsável pelo poço.
Serviço público está longe
A falta de água encanada é apenas um dos problemas enfrentados. A Unidade Básica de Saúde mais próxima é a de São Leopoldo, a UBS Santo André, que está a 7 Km do Morro do Paula.
O acesso à rede básica escolar se dá pela EMEF Bento Gonçalves, que está a 1Km do Morro do Paula. Porém, ela só tem turmas do 1° ao 5° ano do Ensino Fundamental. Depois disso, as crianças precisam ir para a EMEF Zaira Hauschild, localizada a 6Km de distância. Já o Centro de Assistência Social mais acessível está no Centro de São Leopoldo, o CRAS Centro fica a 9Km do Morro do Paula.

O imbróglio ambiental de décadas que está longe de acabar
Como explicado no início da reportagem, investigar a história do Morro exigiu tempo. A equipe precisou ir até o Foro de São Leopoldo para ter acesso a única cópia física da Ação Civil Pública (Processo n° 033/1.05.0092410-7) que contém detalhes da origem do Morro do Paula. Aguardamos alguns minutos até que uma funcionária encontrou o documento, com mais de mil páginas, armazenado em outro andar.
A partir da Ação foi possível entender que, em 1973, a Prefeitura de São Leopoldo adquiriu uma área de terra localizada no Morro do Paula de 60 hectares, local formado por plantas nativas da Mata Atlântica e com várias nascentes formadoras do Arroio Kruse, que corta o município de São Leopoldo.
Com o passar do tempo, diante da expansão das cidades e a necessidade por moradia, pessoas começaram a habitar a região. Em 1989, a União Protetora do Ambiente Natural (UPAN) fez um levantamento fotográfico que mostra os primeiros conjuntos de casas construídas no Morro do Paula. Dentre os habitantes está Lisete Leal, de 60 anos. “Bem no começo nem se pagava pelos terrenos. Havia apenas seis casas quando cheguei. Trabalhava de doméstica em São Leopoldo”, conta a senhora, que veio de Julio de Castilhos (RS), a 320 km de Porto Alegre, em um trem de carga.

Extração ilegal motivou ocupação
Além de toda sua beleza natural, a região é rica em pedra grês (arenito), mineral utilizado na construção de casas. A extração irregular deste material no local já tem mais de um século e é considerada uma das responsáveis por fazer a população do Morro crescer.
Apesar de ser ilegal e prevista como crime pelo Art. 55 da Lei N° 9.605/98, passível de detenção de até seis anos e multa, a atividade segue acontecendo até hoje. No dia em que a reportagem esteve no local foi possível presenciar atividade de mineração em pleno sábado à tarde.
“Pessoal consegue ganhar, em média, de 150 a 300 reais por dia, dependendo de como vai estar o banco de pedras para cortar”, detalha Machado.

O dano ambiental choca, é visível e chama a atenção. Quando se olha para baixo está uma grande cratera, que é resultado da mineração. “O Morro do Paula tem um valor como patrimônio geológico, aquele é um fundo de deserto recoberto com lava. Além disso, na encosta do morro tem espécies de cactus endêmicos dessa região, que remontam há um paleoclima existente há milhares de anos atrás”, explica o biólogo e assessor de Gestão Organizacional da Secretaria Municipal de Meio Ambiente de São Leopoldo (Semmam), Joel Garcia Dias.
O Morro também conta com sua beleza única por ser o ponto mais alto de São Leopoldo e um dos mais altos da região. Segundo o Plano Diretor Municipal de São Leopoldo, o local é uma Macrozona de Proteção Ambiental. Porém, sua recuperação está ameaçada. “A volta para a situação como era antes da exploração não é mais possível. Já ultrapassamos o tempo que deveria ser recuperado o Morro do Paula”, problematiza Joel.
Toda a situação vai muito além dos exploradores das cavas de mineração. É um trabalho que envolve “os transportadores, vendedores, construtores e o comércio varejista de materiais de construção. Na maioria das vezes estão à margem de normas legais ambientais, trabalhistas, tributárias e de segurança, contribuindo com a degradação ambiental e sonegando os impostos devidos”, como detalha relatório técnico realizado pela Semmam, em 2022, que foi obtido após a entrevista com o biólogo.
“O poder público municipal não consegue fazer esse enfrentamento pois envolve crimes fora da esfera de resolução municipal. Envolve Polícia Civil, Polícia Federal e Governo do Estado, que nunca participaram efetivamente da solução deste problema”, destaca Joel.
Ação contra crime ambiental
Em 1997, o Ministério Público, através da Promotora de Justiça Vilneci Pereira Nunes, entrou com uma Ação Civil contra o Município de São Leopoldo para fazer cessar a lavra de arenito no Morro do Paula, recuperar o local após o dano causado ao meio ambiente e relocalizar os moradores que estavam na área de preservação. Conforme consta na Ação, cerca de 600 pessoas moravam no Morro na década de 1990. Dentre elas está a dona Rosa Marina, de 70 anos. “O Ibama passava aqui. Era um ‘lenga-lenga’ para tirar o povo. Como vamos sair se já estamos colocados aqui? Não ofereciam nenhum outro lugar para morar”, salienta.
Em 2015, Ministério Público e Prefeitura de São Leopoldo chegaram a um acordo da Ação Civil em que a “desocupação total da massa populacional residente no Morro do Paula e a interdição completa da extração de pedras no local são obrigações que se tornaram inexequíveis”. Dando fim ao processo iniciado 18 anos antes, por acreditar que não teria mais como tirar as pessoas dali. A área populacional cresceu tanto que se espalhou pelas divisas dos municípios de Novo Hamburgo, Sapucaia do Sul e Gravataí.

“Diante do acordo, ficou definido que São Leopoldo faria um estudo socioambiental da área para verificar como é a população, qual atividade econômica é desenvolvida, qual o nível de degradação do local e o que é passível de recomposição ambiental”, explica o promotor Ricardo Schinestsck Rodrigues, responsável pela Ação neste momento.
Segundo o biólogo da Secretaria de Meio Ambiente de São Leopoldo, em 2017 foi feito um Termo de Referência que culminou com a contratação do serviço da empresa Gaia Sul Ambiental para a realização do estudo. De início foram realizadas algumas reuniões, visitas ao Morro e proposta de plano de trabalho. “Mas aí veio a pandemia e a empresa disse que não teria condições de continuar o serviço pois foi duramente impactada, até com óbito de funcionários. Então fizemos uma rescisão de contrato multilateral”, relembra o assessor de Gestão Organizacional da Semmam.
Governo do Estado não reconhece a demarcação de terras
Outra dúvida dos moradores é com relação à que cidade pertencem.
“Gravataí tem uma pequena parte com uma pequena população. Sapucaia do Sul tem um trecho mais de mata ainda intacta. Novo Hamburgo tem uma área com pessoas habitando. Já São Leopoldo tem habitantes e extração de minério em seu território”, detalha o promotor de Justiça Especializada de São Leopoldo, Ricardo Schinestsck Rodrigues.
Em meio a tudo isso, com a crescente expansão, o Morro do Paula acabou ultrapassando as fronteiras de São Leopoldo, criando novas discussões. A partir de 2011, a Prefeitura de São Leopoldo custeou estudos para o processo de divisão territorial do Morro do Paula, que teria sido entregue em 2017.

Foto: Hilário Jordão / Arquivo pessoal
A partir disso, a reportagem entrou em contato com a assessoria de imprensa da Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão, do Governo do Estado. Segundo a resposta, a Divisão de Geografia e Cartografia (que pertence a Secretaria) prestou auxílio técnico no estudo para demarcação de terras do Morro do Paula. Na última atualização recebida pela Divisão, em 2016, as prefeituras estavam construindo os tótens. Ou seja, o próprio governo estadual gaúcho não tem a confirmação dessa demarcação de território já finalizada. A Secretária de Habitação de São Leopoldo explica que ainda faltam Leis Municipais para realmente reconhecer as demarcações já finalizadas.
O MP concorda que a resolução do problema passa pelo comprometimento de todos, e está criando um grupo de trabalho entre os municípios envolvidos e os órgãos estaduais.
“Precisamos trabalhar com as pessoas independentemente dos limites territoriais”, destaca o promotor. Segundo Schinestsck, o grupo de trabalho está em uma fase de nominata de cada município para, em seguida, começar a desenvolver reuniões no MP sobre o assunto.
“Os municípios só podem agir dentro das suas fronteiras, a não ser que tenha uma ação coordenada. Cooperação será fundamental para tomar decisões que atingem a totalidade”, completa.
De acordo com o assessor da Semmam, Joel Garcia Dias, o trabalho com representantes de cada uma das prefeituras envolvidas chegou a ser formado. “Mas todas as ações foram antes das enchentes, agora ficou tudo para depois”, enfatiza. Para ele, uma possível resolução passaria, primeiro, pelo encerramento da atividade de mineração.
Os serviços oferecidos por São Leopoldo
Apesar de não haver Posto de Saúde, o local conta um serviço de saúde itinerante (Ônibus da Saúde), da Prefeitura de São Leopoldo, uma vez por mês.
“Se tem problema precisa descer para a cidade”, detalha Nataniel. Além do serviço do Ônibus da Saúde, a rua é patrolada “às vezes”, há serviço de ônibus municipal e escolar, recolhimento de lixo e manutenção dos poços artesianos pela Prefeitura de São Leopoldo, além do acesso à energia elétrica pela RGE (Rio Grande Energia). Porém, tudo isso depende sempre de muita pressão. Conforme informações disponibilizadas no site da Câmara Municipal de Vereadores de São Leopoldo, de 2015 a 2024 foram 20 pedidos de ações no Morro do Paula já foram feitos na Câmara de Vereadores de São Leopoldo.

Foto: Gabriel Muniz
“A gente acaba fazendo porque tem que atender a população. Acabamos assumindo por uma questão de direito das pessoas”, explica o secretário municipal de Habitação de São Leopoldo, Álvaro Pedrotti. Para ele, o que falta é a participação dos outros municípios e órgãos públicos. “O que São Leopoldo sempre reivindica é estabelecer as responsabilidades e compromisso de cada ente dessa situação”, completa.