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Zaffari – tradição, poder e contradições de um símbolo gaúcho

Por trás da narrativa de “empresa de valores como integridade, comprometimento e relacionamento”, surgem denúncias de abusos e desrespeito às leis trabalhistas
Tobias Araújo
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Lorenzo Mascia
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João Pedro Mendoza de Menezes
Zaffari Bourbon Teresópolis, uma das 41 lojas do conglomerado. Foto: Tobias Araújo/ Beta Redação

Na tarde do dia 13 de setembro de 2025, um grupo com cerca de 40 manifestantes se reuniu em frente à Administração Central da Companhia Zaffari Comércio e Indústria, na avenida Plínio Brasil Milano, no bairro Higienópolis, em Porto Alegre. O grupo contava com faixas escritas “contra a perseguição sindical” feitas à mão com tinta spray, e instrumentos de percussão como bumbos e tambores. Pontualmente às 16h, os manifestantes começaram sua caminhada em direção ao prédio da administração para pedir a readmissão de um ex-funcionário, Flávio Melo.

Contratado no dia 14 de novembro de 2023, Flávio entrou para a estatística da maior rede de supermercados do Rio Grande do Sul, que faturou, em 2024, R$ 8,4 bilhões, segundo a Associação Gaúcha de Supermercados (AGAS). A empresa que começou como familiar, hoje conta com 41 lojas espalhadas pelo Rio Grande do Sul e São Paulo e emprega 12,5 mil funcionários. Um destes colaboradores era Flávio, que começou como segurança na unidade da Rua dos Andradas, antiga Rua da Praia, no Centro Histórico da Capital.

No dia 13 de dezembro de 2024, ele conheceu o movimento da União dos Trabalhadores do Zaffari (UTZ), em uma manifestação realizada em frente à unidade em que ele trabalhava que exigia melhores condições e o fim de uma polêmica escala: a chamada “10 x 1”. Sem se envolver no primeiro momento, Flávio apenas observou o ato e passou a acompanhar o perfil da UTZ, que tem como intuito revelar denúncias de funcionários e ex-funcionários contra a empresa de supermercados e organizar manifestações em prol dos trabalhadores. De acordo com o Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região – TRT4 -, atualmente tramitam 1.625 processos contra a Cia Zaffari Comércio e Indústria. Ela figura como “reclamada” pelo tribunal. 

Escala 10 x 1

A polêmica escala foi “descoberta” pelo estudante de Jornalismo, Theo Dalla, em dezembro de 2024, após obter acesso a documentos de um acordo coletivo entre o Grupo Zaffari e o Sindicato dos Empregados no Comércio de Porto Alegre (Sindec-POA), atestando que o sindicato tinha conhecimento da situação da escala denunciada por funcionários e havia assinado um acordo que permitia a negociação de folgas.

“Eu consegui identificar a origem disso, um acordo entre o Sindec e o Zaffari. Entendemos que, na verdade, estavam negociando nas costas dos funcionários essa escala, enquanto estavam faturando cerca de R$ 200 mil por mês, dinheiro da contribuição sindical que os próprios funcionários estavam pagando. Este documento estabelecia a escala 10 x 1, além da contribuição sindical obrigatória. Eles não tinham nenhum conhecimento”, lembra Dalla. 

De acordo com o professor dos cursos de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Guilherme Wunsch, a escala de trabalho é negociável, contudo, ela não pode afetar a saúde dos trabalhadores. “Se nós formos olhar estritamente na norma, a CLT autoriza uma negociação coletiva que trate sobre questões de jornada de trabalho. Isso está no Artigo 611-A, inciso primeiro. A empresa em questão se respaldou neste artigo”, analisa Wunsch. 

Por outro lado, ele ressalta que o artigo 611-B, inciso nono, determina que: o repouso semanal remunerado é um direito que não pode ser suprimido ou reduzido por convenção ou acordo coletivo. “Eu tenho um conflito de normas, pois eu tenho o 611-A inciso primeiro dizendo que a empresa e o sindicato podem negociar o que quiserem sobre jornada. Já o 611-B inciso nono diz que o descanso semanal remunerado não pode ser negociado. O ponto é que a saúde do trabalhador é um direito indisponível. O que é um direito indisponível? É aquele que está na minha esfera íntima, eu não posso negociar a minha vida nem a minha saúde”, ressalta o professor.

A escala foi derrubada em um novo acordo coletivo no dia 4 de abril de 2025, entre o Grupo Zaffari e o Sindec-POA, após a divulgação de Theo Dalla em uma reportagem publicada pelo portal Brasil de Fato ainda em dezembro de 2024. 

Cartão ponto mostrando a escala de 15 dias trabalhados praticada pelo Grupo Zaffari em um acordo com o Sindec-POA. Foto: Divulgação

Carta de demissão

Desta vez envolvido, no dia 1º de maio de 2025, Flávio fez parte da organização de uma greve geral que lutava por melhores condições de trabalho e exigia ampliar o fim das escalas exaustivas. Com a queda da escala 10 x 1 no mês anterior, permeava a prática da escala 6 x 1. Contudo, a greve buscava reduzi-la para um regime de cinco dias trabalhados para dois dias de folga. 

Segundo o relato do ex-segurança, ele não participou da greve do dia 1º de maio por medo de ter a sua imagem nas redes sociais, mas estava organizando a ação que tinha respaldo da Justiça do Trabalho. Em uma publicação na página da UTZ no dia 30 de abril, a Juíza Augusta Polking Wortmann definiu que “a reclamada Companhia Zaffari Comércio e Indúsria abstenha-se de demitir trabalhadores sem justa causa durante a paralisação do dia 01/05/2025, assim como abstenha-se de proceder a descontos dos trabalhadores antes de realizar uma reunião para negociação com o movimento paredista”.

Publicação no perfil das redes sociais da UTZ, no dia 30 de abril de 2025, sobre a definição a respeito da abstenção de demissão de trabalhadores, por parte do Zaffari, sem justa causa durante a paralisação do dia 01/05/2025. Foto: Divulgação

Flávio era tido como um colaborador exemplar, mas por conta desse posicionamento foi desligado da empresa. “Eu havia recebido uma promoção de posto semanas antes. Duas semanas após essa manifestação, recebi uma carta de demissão por ordem direta da administração central do Zaffari, sem qualquer justificativa”, argumenta o ex-funcionário, que hoje busca a reintegração do seu antigo posto de trabalho e luta por melhores condições laborais de seus colegas. A história de Flávio não só mobilizou a classe nas redes sociais, como também levantou questionamentos sobre a austeridade da maior rede de mercados do estado, em meio às diversas denúncias que apareceram após o desligamento do funcionário. 

Manifestação para reintegração de Flávio Melo, no dia 13 de setembro de 2025. Foto: Theo Dalla/Arquivo pessoal

Laiza já não pode amamentar

A ex-funcionária do Zaffari e esposa de Flávio, relata ter vivido um período de adoecimento físico e emocional dentro da rede. “Eu era atendente da padaria. Lembro que, quando trabalhava na empresa, tive uma infecção urinária porque tinha que pedir permissão para ir ao banheiro, assim como outras funcionárias. Depois de tudo que eu passei lá, chegou uma hora em que eu não aguentava mais e pedi demissão”, relembra Laiza Fontoura. Segundo ela, a decisão foi tomada por exaustão. “Era uma humilhação com os encarregados, pois eles colocavam o dedo na tua cara e mandavam você fazer coisas que não eram do setor correspondente”. 

Laiza descreve ainda as condições precárias de segurança e higiene, relatando que chegava a ter a mão em carne viva por causa da gordura e do sal das peças, além de não ser fornecido o equipamento de trabalho necessário. “A única proteção que eu tinha eram luvas cirúrgicas. Aquelas mais simplesinhas que têm. Era o que eu usava para conseguir fazer a fatiação na hora. Se eu não tivesse aquelas luvas, eu tinha que fazer com a mão sem nada, correndo risco de me cortar ou de ter um acidente de trabalho”. Além de alimentos, também manuseava produtos químicos. “Usávamos produtos de limpeza muito fortes, que corroem a mão. Ela estava toda descascada, podia ver minha mão com carne viva”, conta Laiza.

O impacto na saúde foi grande, e ela desenvolveu uma alergia generalizada. As consequências ultrapassaram o ambiente de trabalho e impactam Laiza e seu filho recém nascido. “Com o estresse e a exposição, desenvolvi uma alergia que começou pequena e foi se espalhando por todo o meu corpo. Em meio a essa situação, eu engravidei. Durante a minha gestação ela (alergia) ficou estagnada, mas, depois que meu filho nasceu, só piorou. Eu não consigo mais amamentar, não consigo produzir mais leite porque a alergia atingiu meu corpo, atingiu minhas mamas.” Mesmo com tratamento contínuo, a ex-funcionária afirma que o quadro segue evoluindo. “Eu faço tratamento há mais de dois anos e isso está evoluindo e piorando, não existe uma cura. Ela vai, mas ela volta”, lamenta. 

Laudo de Laiza Fontoura, que foi diagnosticada com psoríase, uma doença cutânea autoimune sem cura. Foto: Laiza Fontoura/Arquivo pessoal

Ao comunicar sua saída ao setor de recursos humanos, ela diz não ter recebido qualquer tipo de suporte da empresa. “Eu fui até o RH pedir demissão porque eu não aguentava mais. Eles olharam pra mim e falaram: ‘Mas você é tão boa, por que está indo embora?’. Eu falei que precisava buscar tratamento para essa doença”. A ex-funcionária conta que chegava em casa chorando e, muitas vezes, passando mal. “Em nenhum momento, eles se preocuparam com a minha saúde”, reitera. 

Segundo o professor Wunsch, a CLT determina que o empregador deve fornecer Equipamentos de Proteção Individual (EPI) sempre que a atividade apresentar riscos à saúde. “O artigo 189 estabelece que, mesmo com o fornecimento dos EPIs, o empregador continua responsável pelo pagamento de adicional de insalubridade se houver exposição a agentes nocivos.” Wunsch ainda reforça que “é absolutamente vedado por interpretação jurisprudencial o controle de uso de banheiro. Isso é um ato típico caracterizador de assédio moral. Então não se controla o tempo de banheiro, não se controla quantas vezes se vai, nem se põe câmeras vigiando os sanitários”.

De acordo com a Controladoria Geral da União (CGU), o assédio moral pode ser configurado como condutas abusivas registradas por meio de palavras, comportamentos, atos, gestos, escritos que podem trazer danos à personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo o seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho, e tem pena prevista de um a dois anos de detenção, além de multa. “Se qualquer uma dessas coisas acontecer, o primeiro ato que o empregado pode fazer é uma denúncia, de forma anônima ou não, ao Ministério do Trabalho e ao Ministério Público do Trabalho, que são as entidades que fiscalizam essas condições”, sinaliza o professor.

Outras denúncias

Um ex-funcionário terceirizado do Zaffari que não quis se identificar relata um cotidiano marcado por abusos, descaso e condições insalubres. Embora tenha deixado o emprego por decisão própria, ele afirma que a experiência deixou marcas físicas e emocionais permanentes. Sua escala era 6 x 1, das 7h às 16h, com uma hora de intervalo. No entanto, segundo conta, “muitas vezes quando os superiores ou representantes das marcas visitavam a loja, era necessário abrir mão do horário de almoço para atendê-los”.

As situações que presenciou iam além do desgaste físico pessoal. “Vi colegas de outras empresas fazendo 20 horas de trabalho, vi jovens aprendizes dormirem no chão, no piso gelado da ‘sala de descanso’, que não comportava a quantidade de funcionários. Nos depósitos, baratas, ratos e outros bichos eram comuns”. Ele ainda cita problemas recorrentes no setor de RH: “Ouvia muitas pessoas discutindo em alto tom por não terem recebido a rescisão ou terem recebido menos do que deveriam”. O ex-funcionário relata ter sofrido assédio moral dentro do supermercado, de um dos seus superiores: “Ele veio de maneira extremamente grosseira me questionar sobre o meu trabalho. Me senti humilhado”.

Hoje, fora da rede, carrega consigo sequelas de um tempo conturbado. Sente dores permanentes na lombar, braços, antebraços e nos ombros, além de insônia e uma constante ansiedade. Questionado sobre possíveis mudanças, ele é categórico: “Todos sabem o que se passa lá, já foi denunciado. Há protestos, mas é muito difícil lutar contra um gigante como o Zaffari. Essa é praticamente uma causa perdida”, lastima.

Outro ex-funcionário que não quis se identificar conta que decidiu pedir demissão após sofrer um rebaixamento de função sem qualquer diálogo prévio. “Queriam me rebaixar do cargo em que eu estava para o cargo em que eu estava antes”. Segundo ele, a empresa colocou outra pessoa em seu lugar sem sequer consultá-lo: “Cheguei um dia para trabalhar e isso havia acontecido, sem nenhuma conversa comigo.”

Sobre a rotina de trabalho, descreve como “exaustiva, física e mentalmente”, em jornadas que muitas vezes chegavam a 10 dias seguidos sem folga. “Trabalhávamos 10 dias e folgávamos um. Tínhamos que escutar perguntas do tipo: ‘Você está cansado?’ em tom de deboche”. Ele também aponta abusos como o desvio constante de função: “Você era contratado para fazer uma função, por exemplo, ser operador de caixa, e acabava tendo que ir para os carrinhos abastecer a loja, ou fazer entregas, porque eles ‘precisavam’ de alguém para isso, mas não queriam contratar”.

A saída, afirma, foi um divisor de águas: “Uma das melhores decisões da minha vida foi ter pedido para sair de lá, pois estava física e mentalmente esgotado, não tinha ânimo para trabalhar, tinha fortes crises de ansiedade lá dentro, todo dia era dia pesado, só de acordar e pensar que tinha que ir de novo já vinha um sentimento ruim”. Quando questionado sobre as mudanças necessárias, o ex-funcionário não hesita: “A principal mudança seria começar a tratar seus funcionários como seres humanos, e não como máquinas de empurrar carrinho. Diminuir cargas horárias e escalas exaustivas”, enfatiza.

Embate judicial

Após a manifestação do dia 13 de setembro mencionada no início desta reportagem, Flávio Melo e a Cia Zaffari Comércio e Indústria levaram as denúncias para o Tribunal Regional do Trabalho da 4ª (TRT4) em uma audiência que ocorreu no dia 7 de outubro de 2025. Foi discutida não só a questão da demissão, denunciada como perseguição, mas também desvio de função e assédios sofridos dentro da empresa. Cada lado se respaldou em três testemunhas, que foram ouvidas durante a audiência pela juíza que presidia a sessão. No entanto, para a defesa de Flávio, a juíza não teve conduta imparcial, e, por isso, os advogados do ex-funcionário pediram a suspeição da juíza, isto é, integrantes do TRT4  irão avaliar se a magistrada realmente pode estar julgando o caso. De acordo com o Superior Tribunal de Justiça (STJ), o instituto da suspeição abrange as hipóteses em que o magistrado fica impossibilitado de exercer sua função no processo devido a vínculo subjetivo (relacionamento) com algumas das partes, fato que poderia comprometer seu dever de imparcialidade. As hipóteses de suspeição também estão previstas no artigo 254 do Código de Processo Penal.

Atualmente, a defesa está à espera do pedido de suspeição, que será julgado pelo tribunal, e até o momento da publicação desta reportagem, não foi divulgado. Se o pedido for negado, a defesa de Flávio irá protocolar um recurso e levará o processo para uma nova instância do tribunal.

O que diz o Sindec?

A Beta Redação entrou em contato com o Sindicato de Empregados do Comércio de Porto Alegre (Sindec-POA), via assessoria, solicitando uma nota oficial em relação ao acordo coletivo assinado que permitia a escala 10 x 1. Como resposta, obtivemos que o posicionamento estava posto através de uma publicação no Instagram do órgão. Não identificando a postagem, perguntamos qual seria o post mencionado, mas não obtivemos mais qualquer retorno.

O que diz o Zaffari?

A Beta Redação entrou em contato com a Cia Zaffari Comércio e Indústria via e-mail duas vezes solicitando um posicionamento sobre as denúncias apresentadas nesta reportagem. A empresa, nas duas vezes em que foi contatada, afirmou que não vai se posicionar sobre o assunto.

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