A cultura hip-hop é jovem. Nascida no gueto da efervescente Nova York dos anos 70, representou milhões de pretos e pretas em todos os cantos do planeta, inclusive na pacata Gravataí, no Rio Grande do Sul. Foi lá que, contemporaneamente ao movimento, cresceu Marcos Cruz. Com uma infância típica da época, brincava correndo, subindo em árvores, jogando futebol e sonhando em um dia poder viver da arte do movimento – no fim das contas, o plano funcionou.
Nos anos 80 o hip-hop já dava mostras de que não era uma mera onda. Grandmaster Flash ditava o ritmo das noites do Bronx, na periferia nova-iorquina. O DJ, até então, era o elemento mais destacado da cultura, e festas pelo mundo todo começavam a dançar naquele ritmo. Em Gravataí, as televisões acompanhavam a complicada relação entre Isadora e Sérgio na novela Partido Alto. O adolescente Marcos Cruz estava menos interessado na trama e mais na abertura da obra de Glória Perez. Os nomes dos atores e atrizes apareciam no rodapé de uma cena que prendia a atenção do garoto: homens negros dançando e tocando instrumentos característicos do samba, em trajes chamativos e movimentos acrobáticos. Era o break dance, outro elemento da cultura hip-hop.
A adolescência amadureceu as ideias e as brincadeiras. Influenciados pela dança na televisão e por artistas como Michael Jackson, além da black music, Marcos e seus amigos começaram a arriscar alguns passos. Parceiros mais velhos já frequentavam as festas do Studio 59, saudosa casa noturna de Cachoeirinha, cidade vizinha. Coube aos amigos convencerem o Seu Sebastião, pai de Marcos, a permitir que o guri os acompanhasse.
A paixão pelos bailes foi instantânea. Os DJs e dançarinos agora estavam juntos e coordenados, numa harmonia que sempre fez sentido para Marcos, mas que ele só viu se materializar de fato naquele momento. A ida às festas começou a custar caro ao Seu Sebastião, que impôs algumas regras. “Quando eu completei 15 anos meu pai disse que eu ia ter que arrumar minhas passagens para ir e voltar, que agora eu era homem. Aí eu e um amigo começamos a vender taquara, porque tinha várias perto de casa. A gente fazia os cálculos de quanto ia precisar e vendíamos a quantidade certa, só para pagar as passagens”, conta Marck B, a versão de Marcos Cruz que começou a nascer naquela época.
No começo dos anos 90, o hip-hop extrapolou de vez as barreiras dos Estados Unidos. Foi nessa época que Marcos, através de um colega de escola que tinha um toca-discos, ouviu a coletânea Hip Hop Cultura de Rua. Foi a primeira vez que teve contato com o rap cantado em português, com nomes importantes como Thaíde. “Eu percebi que ele cantava a mesma coisa que a gente vivia aqui e comecei a pensar que a gente tinha que fazer alguma coisa aqui também” diz Marck B, acrescentando que outras influências, como o filme Break Dance, fizeram seus amigos pensarem a mesma coisa.
O grupo de danças formado por Marcos e seus amigos começou a se apresentar em festas, disputar e vencer competições e aflorar, por acaso, o lado MC do jovem. “Fomos nos apresentando em algumas festas, até que um dia nos convidaram para um concurso de dança em Porto Alegre. Sair de Gravataí e Cachoeirinha pra capital já era um salto pra nós”. O concurso exigia que alguém cantasse, mas todos do grupo só dançavam. “A gente não conseguia decidir. Nossa conclusão foi fazer um teste: quem não dançar tão bem, vai cantar. E foi aí que eu comecei a cantar e nós ganhamos. Eu tenho o troféu até hoje”, conta, orgulhoso.
As aparições em eventos e o destaque nas rimas chamaram a atenção de um funcionário da prefeitura de Porto Alegre, responsável por um projeto comunitário. “Eram oficinas culturais dentro das comunidades. Fui contratado e trabalhei 10 anos assim, em várias comunidades. Trabalhava direto com pessoas em situação de rua, ia na FEBEM. Foram anos importantíssimos”, destaca Marck B.
O MC Marck B
Foi neste momento que, enquanto planejava seu futuro como artista, que Marck B recebeu uma ligação que mudou sua vida para sempre. “Era um DJ, amigo meu, que tinha uma loja de discos em Porto Alegre. Ele pediu pra eu pegar um disco de instrumental e levar pra lá o mais rápido possível. Cheguei lá e ele estava com um baixinho, pretinho, que ficava analisando o que eu fazia. E meu amigo ficava mandando eu cantar, improvisar. Eu tava achando estranho, e ele ficava me elogiando pro cara. Aí ele me explicou que aquele mano era do grupo Athaliba e a Firma, que eu inclusive ouvia, e que eles estavam atrás de um novo vocalista porque o deles tinha saído”, contextualiza.
“O cara disse que gostou do meu som e pegou meu contato. Passou uma semana e me ligaram. ‘Você que é o Marcos Brown?’, que era meu apelido. ‘Nosso mano que tava aí disse que gostou de você, e a gente queria fazer uma parada contigo. Vamos entrar em contato contigo de novo’. E aí passou uma, duas, três semanas, e me ligaram. ‘Seguinte, você tem condição de passar uma semana em São Paulo?’ Pô, amigão! Pra quem saiu de Gravataí e ficava feliz da vida de estar em Porto Alegre…”, enfatiza Marck B, que prontamente aceitou o desafio
“Naquele momento, São Paulo já era o centro nervoso do rap, tinha toda uma cena. Então eu sabia que pelo menos eu ia ter essa vivência. Uma semana? Pra mim ia valer um ano, ninguém aqui tinha essa oportunidade. Cheguei na gravadora e dei de cara com os caras do Racionais trocando ideia. Eu era tímido, ficava só olhando os caras que eu ouvia em casa passando ali. Gravei uma música, o baixinho disse que ia entrar em contato comigo, mas pra mim já tinha valido a experiência de ter passado aqueles dias lá”, confessa.
Vinte dias depois Marck B recebeu mais uma ligação de São Paulo. “Agora tu vai ter que vir com disponibilidade de ficar pelo menos 40 dias aqui”, disseram. Eu pensei. ‘Nossa… Vou!’ Já conhecia alguns caras de lá, tipo o Xis, primo do KL Jay, o Ndee Naldinho, que já tinham feito shows em Porto Alegre. Quando eu cheguei em São Paulo, o Xis me trombou na gravadora, me olhou e falou: ‘Irmão, cê não é aquele mano lá do Rio Grande do Sul?’ E eu: ‘Sim, sou eu mesmo’. ‘Porra, como é que cê tá? O que cê tá fazendo aqui?’ Falei que ia gravar, e ele disse. ‘Pô, que daora!’ Dali pra frente, todo lugar em que ele ia tocar me levava junto. Assim eu descobri muita coisa que até hoje eu só conheço por causa disso”, relembra, agradecido.
Tudo ia aparentemente bem para Marck B, que via sua carreira começando a deslanchar. Mas havia algo incomodando. “Cheguei a participar de um CD, e as coisas estavam andando, mas aí tem uma parada que é muito minha, que é a questão social. Pra mim a música tem uma missão. O hip-hop como uma cultura tem uma missão ainda maior. Então eu pensei: ‘Aqui em São Paulo eu tô bem, tá legal, mas e lá? Eu tô sendo abastecido de informação, conhecimento toda hora, mas e lá? Então resolvi voltar. Uma decisão maluca, mas decidi voltar”, conta, descontraído.
Um encontro com as telas
Foi na volta ao Rio Grande do Sul que sua carreira teve outra virada. Com dificuldades em se encontrar, passou a intermediar a participação de rappers de fora do estado no programa Hip Hop Sul, da TVE, pelo fato de conhecer a maioria deles. O programa foi encerrado e substituído por outro, o Cultura de Rua, que era dirigido por um amigo de Marck B. O diretor o convidou para participar do quadro “Apresentador por um dia”, e o desempenho foi tão bom que o MC foi convidado a participar outras vezes.
Neste momento, o amigo e apresentador da RBS TV, Manoel Soares, entrou em contato com Marck B para um auxílio. “Ele me chamou pra tomar um café. Estava querendo levar as batalhas de rima pra TV, mas o que ele conhecia não dava pra pôr, porque era muito palavrão, ofensa. Aí eu apresentei pra ele a Batalha do Conhecimento, que tu traz um tema específico e a galera rima em cima. Não pode palavrão, é outra pegada. E aí ele curtiu a ideia porque queria levar nas escolas. ‘Tu me ajuda?’ ‘Ajudo!’, eu disse pra ele. Era tudo de graça, porque eu acredito, é a missão. Quando chegou no final, me convidaram pra ser jurado e tudo. A Batalha deu muita audiência, ganhou vários prêmios, e fizeram a segunda temporada.
Foi em meio à segunda temporada que Marck precisou assumir uma responsabilidade enorme. “O Manoel Soares me chamou pra tomar um café, e eu pensei. ‘Bah, café de novo’. Ele falou pra mim que recebeu uma proposta da Globo. ‘Já recusei duas propostas, essa eu não posso recusar. Então tu vai ter que tocar o resto da Batalha do Conhecimento sozinho’. E aí ficou cada vez mais difícil conciliar com o trabalho. O Manoel disse que deixou meu nome lá como indicação pra continuar o trabalho”, explica.
Pouco tempo depois da final, a RBS chamou Marck B para uma entrevista. “Essa conversa foi muito importante porque eu fiz tudo ‘errado’. O Cezar Freitas, que era o diretor, perguntou o que eu curtia de TV, e eu disse: ‘Nada’. Ele perguntou por que, e eu respondi: ‘Como o senhor pode perceber, eu sou um homem negro. As imagens que eu tenho de negritude na TV são o mordomo, a cozinheira, o marginal, o traficante. A TV nunca me mostrou outra perspectiva. A gente tem muitas coisas boas nas comunidades, mas isso não aparece’. E aí eles me ofereceram a oportunidade de tentar implementar isso”, recorda.
Há oito anos trabalhando como repórter na maior emissora do Rio Grande do Sul, Marck B mostra cada canto da empresa como quem apresenta a própria casa. Amigo dos jornalistas, dos operadores de câmera, dos funcionários da montagem e das edições, é sempre recebido com um sorriso por todos os colegas quando bate na porta dos seus respectivos setores.
A simpatia e a educação são fatores fundamentais para explicar a boa relação com todos os colegas, mas Marck delimita claramente suas diferenças com alguns códigos da empresa. Ao entrar na sala dos figurinos, explica onde não se encaixa. “Aqui ficam as roupas que seguem mais o padrão da RBS. Eu não sou 100% desse padrão. Em algumas pautas a gente precisa usar algumas roupas mais formais, mas este terno, por exemplo – ele segura -, não dá pra usar na comunidade. Os caras vão dizer: ‘Ih, que que aconteceu com esse negrão? Foi pra RBS e mudou’”, brinca.

O colega com quem Marck B pode dizer que se sente 100% à vontade é seu parceiro de editoria, o Seguidor F. Os dois entraram juntos na empresa com o objetivo de construir um projeto de visibilidade às comunidades, trazendo mais diversidade aos noticiários e com informações que mostrassem iniciativas positivas nos bairros periféricos. “Nós somos bem parecidos. Como moradores de comunidade, a gente sente na pele o que é nascer e crescer nessa condição, com a falta de oportunidades. Então trabalhar com ele é ter um espelho aqui”, reconhece Seguidor F.
Sobre a importância de ter figuras como ele e Marck B num espaço de visibilidade tão grande, o Seguidor F ressalta a fidelidade do parceiro às origens. “A cultura hip-hop é uma cultura de resgate, e o Marck B faz isso com maestria, reforçando sempre a questão da negritude, sendo uma referência desde os anos 90. É um braço forte que transformou uma geração”, enaltece.
“Vocês têm o Marck B, eu tenho o Marcos”
Marck é casado com Michele Cruz. Os dois não têm filhos juntos, mas Marck tem uma filha de outro casamento, enquanto Michele tem um casal de filhos, também de um relacionamento anterior. “Já tive dois relacionamentos antes. Teve várias coisas legais e não legais, de ambas as partes”, confessa o repórter e marido.
Por outro lado, garante que o relacionamento com Michele tem uma característica primordial. “Meu relacionamento atual tem uma história. Nós já nos conhecíamos há 15 anos. A gente se encontrou depois e desde então nunca mais nos largamos. A gente faz oito anos juntos em agosto. É uma relação de ensinar e aprender o tempo todo. Ela tem uma frase que eu gosto muito: “Vocês têm o Marck B, eu tenho o Marcos, que fica até as 2h da manhã escrevendo uma coisa que de repente ele nem vai fazer, que não tem hora pra comer”, revela.
Marck não tem mais os pais vivos, mas relembra da primeira vez que conseguiu o reconhecimento deles enquanto ativista. “Quando eu comecei a fazer rap, ninguém conhecia. Muita gente achava que era coisa de vagabundo, ladrão. Mesmo eu sendo um cara que nunca fumou nem bebeu. Uma vez eu fiz um trabalho com uma ONG e nós conseguimos visitar o Diário Gaúcho, e eles publicaram isso. Foi a primeira vez que a família se deu conta de que era uma coisa séria”, conta com orgulho.
“Minha mãe sempre segurou a bronca. Ela não sabia bem o que eu estava fazendo, mas escolheu confiar em mim. Quando aparecemos no Diário Gaúcho, ela recortou a matéria e colocou num quadrinho. Queria que eles pudessem ver onde estou agora”, revela Marck, emotivo.
Com a família estabelecida e a vontade de ter mais conforto, Marck decidiu voltar a morar em Esteio, cidade onde nasceu e viveu até cerca de 10 anos de idade. “Desde que saí de Esteio eu pensei: ‘Um dia eu volto’. Quando fui comprar um lugar pra nós, decidi ir pra lá, mais próximo da família da minha mulher, que é de Sapucaia”, explica.
Morador do bairro Vila Nova, em Porto Alegre, por muitos anos, revela que cansou da vida corrida da capital. “Tu morando num lugar que é movimentado, mesmo que não queira, tu vai se movimentar, não adianta. Tá pertinho de tudo. Eu e minha esposa estamos na fase de que qualquer convite que a gente receba, a gente já pensa: ‘Mas tem um lugarzinho pra sentar?’”, brinca.
O Marck B que virá

As dificuldades em ampliar o espaço conquistado existem, mas Marck B faz questão de ressaltar seu papel como trampolim para outros colegas. “Se estou aqui é porque tem toda uma galera comigo, então eu não posso fechar portas, se não vou fechar pra todo mundo. Muitas pessoas começam a fazer sucesso e se mudam pro centro do país. Chega uma hora que tu pensa: ‘Eu estou fazendo tudo certo, por que as coisas não vão pra frente?’ Daqui tu não consegue atingir um público nacional. Em São Paulo tu vai pro país todo”, reflete.
Seguidor F também comenta sobre o papel que os dois exercem sobre o contexto em que vivem. “O desafio é constante. O hip-hop vem da rua, então ao conquistar esses espaços é fundamental sempre ter em mente que nós não crescemos aqui, nossa origem é outra e a gente vem conquistando um lugar que é para os próximos que virão, não só para nós”, reflete.
Para o futuro, Marck B diz que ainda não se enxerga fora da RBS. “Eu tenho muitos planos pra realizar utilizando essa ferramenta que é a TV. Quero trazer mais pessoas pra cá, dar essa oportunidade para mais gente, ter uma comunicação mais diversa. No momento eu penso que é mais importante fazer outras pessoas ascenderem, mas tendo uma base aqui. Se eu não fizer esse trabalho, quem é que vai? É a mesma lógica de quando eu voltei de São Paulo”, relembra o repórter, citando o momento em que deixou a capital paulista para fortalecer o cenário gaúcho. “Às vezes é muito mais gratificante tu ver que alguém está indo e tu fica para poder puxar outro”, complementa.
Marck B seguirá defendendo seu legado da maneira que sempre fez: sendo leal à sua missão. “O que me motiva agora é a Batalha do Conhecimento, são os projetos que temos em andamento aqui. Eu não penso em outras oportunidades, eu estou vivendo a oportunidade que eu tive”.