Como os povos indígenas se adaptam às novas tecnologias de um mundo cada vez mais digital e globalizado  

Segundo o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Tecnologias de 2022, o Brasil tem em torno de 1,7 milhão de indígenas, o que representa 0,83% da população total brasileira. Atualmente, essas pessoas vivem em uma era de crescimento digital, que inevitavelmente chega às aldeias. 

Indígenas são historicamente criadores de tecnologias, os povos originários inventaram formas de caça, sobrevivência, transporte e alimentação. Por outro lado, o mundo está cada vez mais desenvolvido digitalmente. Equipamentos celulares e computadores, assim como redes de informação por internet ou sistemas de comunicação online de todos os tipos chegam cotidianamente até os brasileiros, e com os povos nativos não é diferente. Por conta disso, precisam se adaptar a essa nova realidade, e utilizá-la em seu benefício próprio.  

Memória e Resistência 

É isso que se encontra na mostra permanente “Memória e Resistência”, em exposição no Museu Júlio de Castilhos. A mostra em questão, apresenta ao público o protagonismo indígena na história, estabelecendo parcerias entre os povos originários e suas comunidades.  

FOTO: Gabriel Muniz / Exposição “Memória e Resistência”, Museu Júlio de Castilhos, abril de 2024.

O prédio do museu foi inaugurado em 1903, configurando já 121 anos de existência. Porém, dentro de suas dependências entramos em contato com milhares de anos de histórias expostas em cada uma das salas que compõem o espaço. A mostra “Memória e Resistência”, por exemplo, apresenta mais de duas mil peças indígenas que ilustram a linha do tempo que vai desde os primeiros caçadores-coletores que habitam há pelo menos 12 mil anos o território do estado, até os povos indígenas atuais do Rio Grande do Sul e do Brasil. 

Ainda que com entrada franca, o Museu Júlio de Castilhos não costuma ficar cheio. Uma lástima. Claro, e talvez o sábado de manhã, dia em que a Beta Redação esteve no Museu, não seja o melhor parâmetro. Enfim, é de se pensar. Por um momento o silêncio se fez ensurdecedor na rua Duque de Caxias, 1205, até que foi interrompido pela chegada de Leonardo Fagundes.  

O nome lembra o de um músico tradicionalista gaúcho, mas não se confunda; a área de especialização era sobre cultura indígena. O estagiário do museu e estudante de história, atua como mediador, e, nos guiou em uma viagem pelo tempo.  

A exposição é dividida em três módulos: o primeiro exibe peças arqueológicas das culturas mais antigas do estado, o segundo apresenta artefatos do período das Missões Guaraníticas, e a sala principal conta com uma exposição fotográfica.  

FOTO: Gabriel Muniz / Leonardo Fagundes, estagiário do museu e estudante de história, durante visita ao Museu Júlio de Castilhos, abril de 2024.

Tais peças arqueológicas exemplificam o que foi citado antes: indígenas como criadores de tecnologias. Nada digital, mas tudo extremamente elaborado. Era útil para a rotina, mas também mostrava seus rituais, como por exemplo, a admiração pela natureza e pelos animais. “Quando recebemos grupos, principalmente escolas, gostamos de questionar se os estudantes acreditam que os indígenas possuem tecnologias, e a resposta normalmente é a mesma. Afirmam que não”, aponta Fagundes.  

Isso, muito provavelmente é fruto da digitalização vivenciada pelos jovens, que acontece cada vez mais cedo, e uma crença de que tecnologia é apenas um celular, um carro ou uma televisão. “Buscamos fazer esse resgate da cultura indígena, junto as crianças, para que a história não caia no esquecimento, e para que entendam que muito antes do “touch” da tela já existiam invenções tecnológicas que eles não imaginavam”, declara o guia do Museu Júlio de Castilhos.  

O digital importa  

Embora muitos indígenas não morem em aldeias, o distanciamento do lugar a que pertencem faz falta. É o caso de Goj Téj Kaingang, que teve de sair para buscar melhorias para sua comunidade. “No território todo mundo se ajuda, estamos sempre juntos, é difícil ficar só. Fora da aldeia, posso estar em um lugar cheio de gente, que ao mesmo tempo vou estar muito sozinho e deslocado”, pontua o estudante da Escola de Música da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA).  

As tecnologias digitais têm aumentado cada vez mais com a globalização. Inevitavelmente chegam nas aldeias e adentram a cultura indígena, sendo utilizadas da mesma forma com que o restante da população as usa: para entretenimento, comunicação, conhecimento, localização. Além disso, os indígenas também utilizam telefones e redes para fortalecer suas lutas e demandas. ” Usamos o celular no dia a dia como ferramenta para facilitar a comunicação, mas também para espalhar nossa cultura e buscar mais espaço. Por exemplo, em abril estamos vivendo o mês indígena e utilizamos as redes sociais para nos articular politicamente e reivindicar nossos direitos”, exemplifica o músico, que usa essa sua paixão para arrecadar verba para se manter morando em Porto Alegre.  

O dia dos povos indígenas, é comemorado em 19 de abril. A data é utilizada para ressaltar várias pautas importantes que precisam de divulgação. “Nós temos páginas de diversos coletivos indígenas nas redes sociais, principalmente no Instagram. Lá, compartilhamos atos, movimentos ou eventos. Utilizamos esses espaços para debater as demandas, não só entre nós, mas também para mostrar nossa realidade com os problemas relativos à demarcação de terra, à saúde e à educação”, descreve Kaingang. 

FOTO: Gabriel Muniz / Tecnologias criadas pelos povos originários expostas no Museu Júlio De Castilhos, em abril de 2024.

Hoje, quando se fala em tecnologia, o senso comum entende e associa o termo com dispositivos digitais, quando na verdade pode ser muito mais coisas; os povos indígenas, por exemplo, criaram muitas formas de viver que fogem dessa ideia e que estão ligados à caça, ao transporte, à produção de seus rituais e que a sociedade na maioria das vezes desconhece. “As pessoas não procuram saber quais são as nossas tecnologias, nossos objetos, artefatos ou vestimentas. Conhecem muito pouco do nosso repertório, que é vasto. Geralmente, conhecem só o arco e flecha ou objetos estereotipados”, afirma.  


Falando em estereótipos, Goj Téj Kaingang também conta que nunca se sentiu livre dos preconceitos ao longo de sua trajetória. “O preconceito é uma coisa que sempre esteve presente. Desde muito novo eu já percebia que existia e acontecia comigo. Tem uma cobrança muito forte, na qual, para os outros, eu preciso atender os estereótipos da cabeça deles: cabelo liso, pele escura e olho puxado. Olhavam para mim e perguntavam: Se tu és índio por que tu estás de tênis? Parece que quando utilizamos algo do mundo moderno, estamos indo contra nossas raízes”.  

Ele ainda afirma que seu maior desejo é conseguir captar recursos e ampliar ainda mais o movimento indígena pelo país. Assim que sentir que o seu papel foi cumprido, quer voltar à sua aldeia, porque como ele mesmo diz, nada do mundo externo pode preencher o senso de coletivo que encontra dentro de casa.