Resíduo reciclável não é lixo, tem valor

Segundo a Associação Nacional de Órgãos Municipais do Meio Ambiente, existem mais de 1 milhão de catadores no Brasil. (Imagem: Flickr/Pimp My Carroça)

Catadores e catadoras lutam diariamente por direitos, reconhecimento e valorização de seus trabalhos

Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), os catadores de resíduos são responsáveis por quase 90% do material reciclado no Brasil. Ao mesmo tempo, a categoria sofre muito preconceito e não recebe o reconhecimento necessário, tanto da população brasileira quanto dos veículos de comunicação.

A profissão de catador é hoje uma peça chave para o cuidado com o meio ambiente no Brasil, sendo essenciais para a limpeza das ruas, para a separação de resíduos e organização destes materiais para a reciclagem — por isso o trabalho é reconhecido pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). Além disso, a profissão e o seu ofício tem uma data dedicada no calendário nacional: 22 de novembro, dia do reciclador e da reciclagem. Mundialmente, o trabalho e a vida dos catadores e catadoras é celebrado em 1o de março, chamando atenção para a necessidade de políticas públicas voltadas à categoria.

Carlos Thadeu C. de Oliveira, do projeto Pimp My Carroça, endossa o dado do IPEA. Para o consultor do movimento que atua desde 2012 para tirar os catadores de materiais recicláveis da invisibilidade e aumentar sua renda por meio da arte, sensibilização, tecnologia e participação coletiva, nosso país seria diferente sem estes profissionais. “As nossas cidades e ruas seriam muito mais sujas e poluídas sem os catadores. Teríamos um volume nos aterros sanitários imensamente maior”, afirma.

O Pimp My Carroça tem 2.022 catadores e catadoras parceiros (as). (Imagem: Flickr/Pimp My Carroça)

Catador ou reciclador… de lixo?

De acordo com a categoria, a primeira informação a ser esclarecida é como utilizar o termo correto para descrever sua profissão e o material com que trabalham. A própria nomenclatura denominada “catadores e catadoras de lixo” é incorreta e não digna do serviço que prestam à sociedade.

A coordenadora da Cooperativa Renascer de São Leopoldo, Michele Ferreira, explica:

“Nós somos catadores e catadoras, o trabalho que a gente exerce com os recicláveis, é de catador. É como a gente se reconhece e é como gostaríamos de ser chamados. Não somos lixeiros, como a maioria nos coloca, somos catadores de materiais recicláveis. A gente gosta e quer ser reconhecido como catador, temos até registro na CBO. Não tem problema nenhum tu chamar a pessoa de catador, não é uma ofensa ser chamado assim, pois é a nossa profissão”, esclarece Michele.

A experiência de Marcos Geovane Pereira dos Santos, catador da Cooperativa de Catadores e Recicladores de Santa Cruz do Sul, iniciada em 2010, e autogerida por 54 catadores e catadoras, profissionais da catação e agentes ambientais que executam o Programa Municipal de Coleta Seletiva Solidária da cidade, é similar a de Michele. Estando presente desde o início de sua cooperativa, ele conta que o começo foi ainda pior, pois o reconhecimento que hoje já conquistaram, naquele momento era inexistente.

“Os dois primeiros anos foram complicados, não tínhamos o reconhecimento da população. O catador passava e era esnobado e criticado e muitas vezes marginalizado. Diziam ‘aposto que está catando e vendendo lixo para usar droga’. As pessoas achavam que o catador que estava ali trabalhando e ajudando a limpar a cidade, e até o meio ambiente, estava fazendo aquilo para usar drogas, que todos os catadores não passavam de usuários, mas não sabiam nem o começo da história”, relata Marcos.

Saiba mais sobre a batalha das mulheres catadoras — e muito mais – no Instagram da COOMCAT (Foto: Reprodução/COOMCAT)

Daiana Schwengber, cofundadora da Apoena Socioambiental, que oferece consultoria e treinamento em estratégias para sustentabilidade e inovação na área socioambiental, explica porque chamar os resíduos de lixo é uma declaração errônea. De acordo com ela, além de desvalorizar o profissional, faz o mesmo com seu material de trabalho e diminui o propósito dos catadores e catadoras.

“Resíduo não é lixo, vai ser transformado em outra coisa, então tem valor. É uma questão de entendimento. Sustentabilidade é a compreensão que fazemos parte deste caos ambiental, social e econômico, e temos a responsabilidade de nos colocarmos disponíveis para transformá-lo. A profissão está invisibilizada e a sociedade não reconhece esse trabalho. Historicamente foi feito para pessoas que não eram valorizadas, desde o tempo da escravidão até os dias atuais”, conta Daiana.

O papel da imprensa

A maneira que a mídia retrata a categoria contribui para a visão da população, de acordo com os especialistas e profissionais. Além de muitas vezes não utilizarem os termos corretos, as abordagens costumam vangloriar o sofrimento dos catadores e catadoras, os pondo em um pedestal, parabenizando as ações que realizam, assim como, a miséria que passam, criando um apelo humanitário que serve para atrair o leitor.

Carlos, que além de estar ativo no projeto Pimp My Carroça, trabalhou na Editora Abril, no Jornal Folha de S. Paulo, e foi redator-chefe e supervisor de comunicação da Revista do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, tem propriedade para descrever a narrativa jornalística mais comum no nosso país em relação a categoria.

“Muitas vezes a história retratada é de um herói, uma pessoa que batalhou muito, tudo isso é verdadeiro. O que muitas vezes não percebemos na matéria é que é preciso que as pessoas tenham mais conhecimento sobre a importância do trabalho, não apenas daquele catador, mas do conjunto dos catadores e catadoras do Brasil. Então eu diria que seria importante que as matérias destacassem não apenas aquelas pessoas, mas as milhares de outras que também realizam esse trabalho, que na maior parte das vezes, não é reconhecido como esse importante agente de interesse público, limpeza, zeladoria, saneamento e serviços ambientais urbanos”, explica Carlos.

Michele conta que percebe muito essa valorização apenas quando é destacada a miséria e a “superação”, desejando que essa atenção fosse direcionada ao trabalho e ao impacto benéfico que causam no nosso país.

“A cabeça das pessoas é distorcida. É o meu trabalho, o meu serviço, como qualquer outro. Alguém vem me chamar de guerreira, guerreira de que? É um trabalho como qualquer outro, o que a gente luta é pra ser valorizado e reconhecido e tirar essa visão que somos menos, para que as pessoas não se espantem quando tem alguém mais jovem na profissão. Na minha cooperativa tem uma pessoa que cursou ensino superior e tem outra que não sabe ler, e elas trabalham ali juntas, ganhando a mesma coisa. As pessoas deveriam ver desta forma, somos apenas pessoas que trabalham com resíduos”, desabafa Michele.

Michele trabalha na Cooperativa Renascer há 11 anos. (Foto: Michele Ferreira/Arquivo Pessoal)

Marcos apoia a declaração, trazendo seu próprio relato. “A mídia só divulga o que dá ibope, os catadores muitas vezes são excluídos e deixados de lado. Estamos tentando ter o reconhecimento que deveríamos ter. Somos os principais agentes, estamos fazendo o melhor para o planeta terra e não temos esse reconhecimento e valorização”, conta o catador.

A matéria publicada pela revista Veja, intitulada “Catador de lixo é aplaudido no JN”, reflete o que Carlos, Michele e Marcos relatam. Tendo como linha de apoio que a história do profissional foi reconhecida por jornalistas da TV Globo, o texto conta como o catador de pernambuco, Sebastião Pereira Duque, que puxa uma carroça em busca de material reciclável há 24 anos e, mesmo ganhando pouco, ajudou a construir uma escola que mantém 75 crianças entre 2 e 6 anos de idade.

Apesar de ser uma história de muita batalha, que não deve ser desvalorizada, ela foi escrita a partir do apelo humanitário, reafirmando o que um catador deve fazer para ter a atenção da mídia. O que deveria ser visto na matéria em questão, é a falta de direitos de Sebastião, que trabalha muito e ganha pouco — como refere o manifesto escrito pelo Pimp my Carroça. Nele, os profissionais chamam a atenção para ações que poderiam auxiliar no seu cotidiano de trabalho — como a “liberação imediata do uso das ciclovias pelos catadores” — e chamam a atenção por serem “a parte mais exaustiva e importante da cadeia da reciclagem, com pouco reconhecimento e baixa remuneração”. Ao mesmo tempo, não pensam apenas na categoria, e sim em toda a sociedade, ao demandarem por investimento em programas de educação ambiental e a integração de estratégias que sejam focadas em políticas de desenvolvimento humano e social.

Beta Redação

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