É o terceiro final de semana de junho de 2025. Os noticiários gaúchos – e também os de alcance nacional – dão conta das fortes e constantes chuvas que assolam o Rio Grande do Sul. Hidrólogos do Instituto de Pesquisas Hidrográficas (IPH) da UFRGS afirmam que as chances de uma enchente na proporção daquela de maio de 2024 são remotas. Mas o Guaíba já atingiu sua cota de alerta na régua da Usina do Gasômetro, famílias já deixaram suas casas na região das Ilhas e o sistema de prevenção contra enchentes da capital já foi acionado: bags com areia já foram colocadas em ao menos uma comporta da Avenida Castelo Branco e sobre bueiros que insistem em regurgitar água sobre o asfalto na região do Quarto Distrito.
Em Lajeado, há dias as águas do Taquari voltaram a ocupar as ruas do centro da cidade. Cachoeira do Sul, no centro do Estado, registra sua maior enchente desde 1941. Na região metropolitana, alguns bairros já foram tomados pelo Rio dos Sinos: Mathias Velho, Harmonia, Mato Grande, Rio Branco e Fátima, em Canoas; Carioca e Fortuna, em Sapucaia do Sul; Campina e Vicentina, em São Leopoldo. Esse cenário, que põe a população gaúcha em vigília, é semelhante ao que encontrei nos primeiros dias de maio do ano passado. Treze meses após a pior catástrofe natural do sul do Brasil, a chuva volta a assombrar o Rio Grande do Sul.

No dia 30 de abril de 2024, os bairros Liberdade, Vila Navegantes e São José, em Esteio, anoiteceram inundados. A chuva constante fez com que os córregos que dão vazão às águas na região extrapolassem sua capacidade pluviométrica e as ruas, calçadas, casas e comércios foram invadidos pela água marrom, que subindo nos dias seguintes chegou a altura dos telhados, em alguns pontos. Eu estava pessoalmente no local – trabalhando como vendedor – e fui testemunha de pequenos comerciantes que viram seus negócios e suas casas serem invadidos pela força da natureza, na véspera do Dia do Trabalhador. Segui trabalhando normalmente nos três dias seguintes, ainda havia clientes para serem atendidos em outras cidades. Mas só até sexta-feira à noite. Naquele 3 de maio, o centro de São Leopoldo foi completamente incorporado pelo Rio dos Sinos. Bairros inteiros foram invadidos pela força das águas, como jamais acontecera.
Enquanto houve passagem até a região central da cidade, pude exercer meu ofício. Mais tarde, me juntei a um dos muitos grupos de voluntários que buscaram amparar os atingidos pela enchente. Uma das voluntárias que conheci nessa mesma sexta-feira, foi Joice Coelho, uma leopoldense de 43 anos, que hoje, relembrando esse período, afirma que “foi um momento de muito desespero, de insegurança, de não saber o que fazer”. Em entrevista, Joice relembrou com tristeza sobre como chegou à linha de frente do voluntariado:
“Saí sem rumo de casa e fui em direção ao centro (de São Leopoldo) disposta a parar em qualquer abrigo que eu encontrasse no caminho. Encontrei pessoas atingidas que já precisavam de todo tipo de ajuda antes da enchente.”
Outra moradora de São Leopoldo que recorda com lágrimas esse episódio de 13 meses atrás, foi Otília Spanavello, 59 anos. A moradora do loteamento Chácara dos Leões, no bairro Santos Dummont, era minha cliente, possuía uma padaria. Sua casa ficava em uma construção nos fundos, no mesmo terreno do seu comércio. No fim da tarde de sexta-feira, 3 de maio de 2025, a água represada pelo dique, a três quadras da padaria de Otília, não era uma ameaça. Nas ruas, não havia mais do que uma lâmina de água da chuva que se acumulava sobre o asfalto e refletia a luz dos postes. Na madrugada, Otília deixou a casa com o marido e alguns poucos pertences, a água já cobria metade dos pneus dos carros. Nas duas semanas que se seguiram, sua vida foi completamente transformada: sua casa e sua padaria tiveram os telhados cobertos pelo Rio dos Sinos.

Seu filho, Edivaldo Spanavello, morador do mesmo bairro e também comerciante, sofreu a mesma tragédia. Ele conseguiu levar no carro sua esposa, seus quatro filhos – sendo a mais nova uma bebê de dois anos recém completos – e uma televisão. “Fiquei vários dias abrigada em um sítio com 17 pessoas dentro da mesma casa”, conta Otília. Segundo ela, foram dias de “angústia, tensão e nervosismo”. Quando retornou para casa, precisou descartar todo o maquinário da sua padaria e todos os móveis da sua casa: após mais de 10 dias submersos, os eletrônicos e eletrodomésticos foram completamente danificados e o mobiliário, de madeira, estava apodrecido. Freezers e balcões de vidro foram destruídos. “Perdi tudo, até meu chão, estou tentando me reconstruir novamente”, conta. Depois da enchente de maio de 2024, para Otília “qualquer chuva é angustiante, é nervosismo, é medo”.
Tento contato com Inês da Rosa, 61 anos. Vou até sua casa, no bairro Rio dos Sinos, em São Leopoldo. Vizinha distante apenas duas quadras da estação de trem que carrega o nome do rio que banha a cidade, descubro que ali agora vive sua filha, Luana da Rosa, com o esposo e o filho. Dona Inês agora mora em Arroio do Silva, litoral de Santa Catarina. Sua ferragem e agropecuária, que leva o nome de Santa Terezinha, santidade que ensina o divino pelas pequenas ações do dia a dia, hoje pertence à sua filha. Faço contato por telefone, e ela, solícita como nos tempos em que me recebia para negociar com uma cuia de chimarrão recém cevado e um sorriso no rosto, me conta que recorda “com muita dor” de tudo que passou há 13 meses. Precisou sair às pressas de casa, após muita insistência de seu filho. Ali naquela região, jamais o Sinos se atrevera a chegar. Levantou alguns itens da agropecuária e deixou água e comida para sua cachorra Bebê e para sua caturrita, ambas abrigadas em sua casa, mais alta em relação à rua do que seu comércio. Só conseguiu voltar 10 dias depois. Bebê e a caturrita estavam vivas. Quando viu a filha Luana, com água acima dos joelhos, resgatando os animais, suas primeiras palavras foram: “Obrigada, meu Deus, por cuidar delas por mim”.

Acompanhado pelo repórter fotográfico Pedro Curi, fui até o dique do Rio dos Sinos, no trecho que circunda a região dos bairros Rio dos Sinos e Santos Dummont, uma das mais carentes e populosas de São Leopoldo. Encontramos cicatrizes não apenas nos muros, nas paredes das casas, mas principalmente nos moradores, que hoje sofrem de ansiedade, como Otília Spanavello, e Inês da Rosa, que decidiu se mudar por medo de novas enchentes.
O trauma da maior tragédia da história do Rio Grande do Sul está presente, é uma ferida que ainda causa dor em quem foi diretamente atingido. E em quem não foi também. Hoje, 23 de junho, faz sol. E, seguindo a composição de Mauro Moraes, “o campo alagado nos obriga a reza”, faço prece para que o sol se faça presente por mais dias, forte e vívido em um céu sem nuvens, para que as águas possam seguir seu curso sem levar sonhos e vidas consigo e para que os desabrigados que passam frio possam se aquecer. O campo alagado, ele nos obriga a reza.