Pesquisadores e professores de História desfazem mitos da Ditadura Militar
A Ditadura Militar no Brasil teve início em 1964 e terminou no ano de 1985. Nesse período, o regime censurou a imprensa, restringiu os direitos políticos e perseguiu as pessoas que não compactuavam com os posicionamentos do governo, realizando torturas físicas e psicológicas nesses indivíduos. Assim, os anos do regime militar ficaram marcados por repressão, tortura e terrorismo. Mas, em meio a tantas marcas negativas que a Ditadura Militar deixou, ainda existem pessoas que desejam a volta do regime.
Para o professor de História da Unisinos Hermán Ramírez, os erros cometidos pela Ditadura Militar foram todos intencionais. “Extinguiram a democracia existente para montar uma nova ordem, com maior estabilidade para os interesses burgueses, por isso [o regime] foi Civil Militar. O principal problema foi que ele durou mais tempo do que foi inicialmente previsto, o que terminou por apodrecer o regime, inclusive do ponto de vista econômico. Lembremos que o final da ditadura trouxe um endividamento e uma inflação exorbitante para o país”, explica Ramírez, doutor em História pela UFRGS.
“Intervenção Militar”
No dia 1º de novembro de 2022, manifestantes realizaram uma vigília em frente a um quartel em Porto Alegre. Conforme matéria publicada por GZH, essas pessoas estavam insatisfeitas com o resultado da eleição, que elegeu Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para a presidência da República. Nesse contexto, por meio de trocas de mensagens por aplicativos de comunicação (WhatsApp e Telegram), os manifestantes, apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), sugeriram uma intervenção das Forças Armadas, com o objetivo de impedir a posse do presidente eleito.
Para o professor de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Ricardo Cavalcanti-Schiel, o pensamento conservador de parte dos brasileiros corresponde a uma visão de mundo, uma lógica simbólica que constrói significados de como eles acreditam que o mundo deveria ser.
“Essa visão de mundo de forma alguma desapareceu. Esteve amortecida, envergonhada, deslegitimada durante décadas, mas há alguns anos voltou a emergir com todo vigor. Não se desconstrói uma visão de mundo da noite para o dia, sobretudo quando suas condições de reprodução perseveram e nada as contesta”, afirma Cavalcanti-Schiel.
Nesse cenário, o professor de História Davi Ruschel reflete sobre a motivação dessas manifestações nos quartéis. Para ele, um dos motivos são as políticas de doutrinação feitas pelas redes sociais, entre o público mais velho, que cultiva um certo “saudosismo” da época da Ditadura Militar, somado ao descrédito em relação à democracia que algumas pessoas cultivam.
“O Rio Grande do Sul tem, historicamente, essa tradição da bipolarização. Uma direita forte, uma esquerda forte. E uma direita bem radical, até com alguns setores com um viés mais autoritário. Então, acho que isso explica essa parte da população não ter aceitado o resultado das urnas em 2022. Dessa forma, surgem esses apelos aos militares, o que já foi feito lá em 64, no sentido que eles poderiam salvar a democracia de uma ameaça comunista que alguns acreditam que exista ainda no Brasil”, aponta Ruschel.
Nesse mesmo ângulo, a CNN Brasil, no dia 19 de abril, de 2020, veiculou uma matéria sobre o fato de apoiadores do ex-presidente da República Jair Bolsonaro solicitarem intervenção militar no Brasil. Na ocasião, os seus seguidores fizeram referência ao “Al-51”, ato institucional que ampliou os poderes da Ditadura Militar em 1968, no instante em que apoiavam as falas do Bolsonaro.
Segundo o livro Brasil: Nunca Mais – Um Relato para a História, organizado pelo cardeal dom Paulo Evaristo Arns, o AI-5 foi marcado por um período de injustiças que se agravaram ainda mais em relação aos anos anteriores do regime militar. Por exemplo, as pessoas detidas eram obrigadas a permanecer na cadeia sem haver nenhum prazo para a conclusão do inquérito.
“A partir de 1968, era vedada a impetração de Habeas-corpus, pois o AI-5 proibia a apreciação judicial desta garantia ‘nos casos de crimes políticos contra a Segurança Nacional, a ordem econômica e social e a economia popular (art.10)”, escreve o autor na página 174 do livro.
Assim, de acordo com o pensamento dos manifestantes de hoje, a Ditadura Militar iria devolver o poder para eles, ou seja, para o movimento conservador que eles apoiam. Entretanto, Hermán Ramírez argumenta sobre esse pensamento: “Deriva de um problema de capacidades. Quando não se acredita muito na democracia e não se constroem meios eficientes para alcançar o poder nela, apela-se a uma saída de facto, como se tentou recentemente”.
Os “acampamentos bolsonaristas”, que aconteceram não só em Porto Alegre, mas em diversos estados do Brasil e reuniram centenas de pessoas em frente aos quartéis do Exército Brasileiro, culminaram no fatídico 8 de janeiro de 2023, data que ficou marcada por uma tentativa de golpe após a invasão de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro às sedes dos Três Poderes, em Brasília.
A Ditadura Militar foi um golpe
Uma das inverdades que parte da população segue afirmando, ainda em 2024, é que a Ditadura Militar não foi um golpe. Segundo Ricardo Cavalcanti-Schiel, essa afirmação é mais “confortável”, visto que as pessoas tendem a ver o mundo de acordo com seus próprios critérios.
“Com o regime de sociabilidade digital, é possível viver confortavelmente dentro de uma bolha sem jamais ser necessário ter contato com o mundo exterior. Assim, não é preciso nem tentar conhecer outros mundos, hoje, em plena pós-modernidade, onde qualquer ‘narrativa’ está validada de antemão”, comenta Cavalcanti-Schiel.
Nesse mesmo sentido, o professor Ramírez aponta o motivo de algumas pessoas afirmarem que a Ditadura não foi um golpe: “Porque teve um viso de legalidade, o presidente teve que sair do país, o poder ficou vago e foi ocupado mediante o rito constitucional. Mas a questão inicial é que foi golpe, o que obrigou Jango a deixar o poder”.
Nessa circunstância, para Davi Ruschel, a Ditadura foi um golpe sim, e esse é um dos mitos dessa época. “João Goulart foi derrubado no golpe de 64, para salvar o Brasil de uma ‘ditadura comunista’, que não existia. Foi o famoso espantalho do comunismo que levantaram para justificar o golpe e a Ditadura”, esclarece Ruschel.
A Ditadura Militar jamais deve ser exaltada
A época da Ditadura Militar deve ser estudada, lembrada, mas jamais exaltada. De acordo com o professor Hermán Ramírez, falar sobre a Ditadura Militar “se torna necessário para valorizar a democracia e fazer uma correção”.
Sobre o legado deixado pela Ditadura Militar ele faz a seguinte análise: “Tem legados para todos os gostos, um deles é o de perdas humanas, em que os culpados não foram punidos. Outro menos conhecido é a grande corrupção que imperou [durante o regime], escondida pela impossibilidade das denúncias”.
Portanto, segundo o professor, a Ditadura Militar iniciou com o apoio de agrupamentos empresariais, os quais tinham ajuda de tecnocratas, políticos conservadores, militares e, inicialmente, membros da hierarquia católica. Contudo, para ele, um dos mitos criados por essas pessoas para assustar as classes médias, igual ao que acontece atualmente, é a ideia de que o Brasil está à beira do comunismo. “É para poder legitimar o golpe, criar um espantalho que servisse de justificativa”, ressalta.
Corrupção na Ditadura
Segundo Davi Ruschel, um dos mitos muito recorrentes da Ditadura Militar é que não havia corrupção naquela época. “Vivíamos uma Ditadura, onde não havia liberdade de imprensa. Como é que tu vai denunciar a corrupção? Quando a gente pesquisa o assunto, a gente descobre que teve jornalistas que descobriram casos de corrupção na Ditadura e, ao tentar denunciar, foram perseguidos, mortos, desaparecidos”, descreve Ruschel.
Em vista disso, o professor de História considera de suma importância falar da Ditadura Militar sempre, principalmente para os jovens, porque eles nascem e crescem numa democracia com uma visão “errônea”, de que isso sempre foi a realidade no Brasil. “Infelizmente, ao estudar História a gente percebe que não. Percebe que democracia é algo muito difícil de se alcançar e o Brasil viveu poucos e pequenos períodos de democracia, essa democracia que a gente está vivendo agora está batendo recordes. Então, é muito importante revisar e falar sobre o horror que foi a Ditadura, para justamente que não se esqueça e nunca mais aconteça”, finaliza Ruschel.