Usamos cookies para melhorar sua experiência, personalizar conteúdo e exibir anúncios. Também utilizamos cookies de terceiros, como Google Adsense, Google Analytics e YouTube. Ao continuar navegando, você concorda com o uso de cookies. Veja nossa Política de Privacidade.

Racismo no Futebol: protocolo avança, mas registros oficiais seguem aquém da realidade

Avatar photo
Lia Kirch da Silva
Luís Henrique Guarnieri
Avatar photo
Annelize Mattos

Na noite de 19 de novembro de 2024, a seleção brasileira entrou em campo na Arena Fonte Nova, na Bahia, para enfrentar o Uruguai, em duelo válido pelas Eliminatórias da Copa do Mundo de 2026. Muito além das questões desportivas, aquela partida, que terminou empatada pelo placar de 1×1, representava também um marco significativo na luta por mais igualdade no esporte: pela primeira vez na história, o Brasil testemunhava um jogo oficial sendo disputado sob implementação do Protocolo Antirracismo da FIFA, instituído efetivamente em maio daquele ano. Ainda naquele dia, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), entidade reguladora da modalidade no país, anunciou em seu site que lançaria a medida em todas as suas competições. 

A iniciativa, que é simples de ser entendida, é dividida em três etapas: a partir do momento em que identificar um comportamento racista no estádio, seja dentro de campo ou nas arquibancadas, o árbitro deve sinalizar o ocorrido cruzando os braços em frente ao peito, em formato de “X” — cabe ao mesmo decidir se o jogo deve ou não ser interrompido; caso o incidente permaneça mesmo após o primeiro anúncio, a instrução é para que o juiz suspenda a partida, fazendo com que ambas as equipes retornem aos vestiários; se, mesmo assim, a discriminação não cessar, o confronto deverá ser encerrado. Em artigo oficial, a FIFA, responsável pelo protocolo, cita ainda que vai tipificar o racismo como crime específico de inclusão obrigatória nos códigos disciplinares de todas as suas 211 associações-membros.  

Com apoio da ferramenta NotebookLM, desenvolvida pelo Google Labs para analisar documentos com apoio de inteligência artificial, foram verificadas 1797 súmulas de jogos realizados entre 1° de janeiro e 20 de outubro de 2025 no Brasil. No total, foram contabilizados 284 jogos do Campeonato Brasileiro Série A, 329 da Série B, 215 da Série C e 510 da Série D. Dentre as divisões femininas, foram 134 da Série A1, 70 da Série A2 e 78 da Série A3. Ainda foram examinados 116 duelos da Copa do Brasil masculina e 61 da Copa do Brasil feminina. 

Entre todos esses registros, 9 casos de racismo foram encontrados nas súmulas, descritos de diferentes formas — alguns sem aplicação do “Protocolo Antirracista”. 

1 – Internacional (RS) x Sport (PE) / Série A1 Feminina – 31/03/2025
Foi arremessada uma banana em direção ao banco de reservas da equipe do Sport por parte da torcida do Internacional, conforme relato de atleta do Sport à equipe de arbitragem registrado na súmula.

2 – Parnahyba (PI) x Imperatriz (MA) / Série D Masculina – 20/04/2025
Torcedor do Parnahyba ofendeu assistente de arbitragem com falas racistas, foi solicitado apoio policial, o infrator foi identificado e retirado do estádio, e houve registro em boletim de ocorrência anexado à súmula.

3 – Operário (PR) x América (MG) / Série B Masculina – 04/05/2025
Atleta da equipe mandante informou ao árbitro que teria sofrido ofensas racistas por parte de atleta da equipe visitante, segundo registrado em súmula.

4 –Pinda (SP) x São Raimundo (RR)/ Copa do Brasil Feminina – 28/05/2025
Foi aplicado cartão vermelho a atleta do Pinda por ter proferido ofensas racistas, conforme registrado na súmula.

5 – Goianésia (GO) x Mixto (MT) / Série D Masculina – 08/06/2025
Houve interrupção da partida por conduta de injúria racial vinda de torcedor da equipe do Goianésia, como descrito na súmula.

6 – Cuiabá (MT) x Botafogo (SP) / Série B Masculina – 30/06/2025
Após o término do primeiro tempo, atleta do Botafogo-SP relatou ao árbitro da partida que sofreu ofensas racistas de atleta da equipe adversária, segundo registro na súmula.

7 – Sport (PE) x Manaus (AM) / Copa do Brasil Feminina – 05/08/2025
A capitã da equipe do Manaus informou à arbitragem que uma atleta do Sport teria ofendido a goleira da equipe com falas racistas, conforme registrado em súmula.

8 – Goiatuba (GO) x Inter de Limeira (SP) / Série D Masculina – 30/08/2025
O preparador físico do Inter de Limeira relatou que uma pessoa na arquibancada destinada à torcida da equipe mandante proferiu palavras racistas, segundo registro na súmula.

9 – Amazonas (AM) x Chapecoense (SC) / Série B Masculina – 29/09/2025
O assistente técnico da Chapecoense relatou ao quarto árbitro da partida que um torcedor do Amazonas proferiu ofensas racistas contra jogador da equipe visitante, conforme registrado na súmula.

Dos nove jogos em que constam incidentes racistas nas súmulas, três são femininos e seis são masculinos — representando o dobro. Observa-se ainda que 0,41% dos jogos masculinos analisados tiveram algum caso de racismo, enquanto no feminino esse percentual é de 0,87%.

  

Dos nove jogos que constam algum incidente racista na súmula, em três deles, o protocolo não foi aplicado. Isso significa que, mesmo havendo relato ou indício de discriminação racial, a partida continuou normalmente, sem que o árbitro acionasse as etapas previstas pelo mecanismo. Na prática, esses episódios acabam ficando sub-representados nos dados oficiais, criando uma discrepância entre o que ocorreu em campo e o que foi formalmente documentado.

Pinda  (SP) x São Raimundo (RR)A jogadora que proferiu a ofensa recebeu um cartão vermelho.

Sport (PE) x Manaus (AM) –  Na súmula consta que “o fato não foi presenciado pela equipe de arbitragem”.

Internacional (RS) x Sport (PE)A árbitra principal só foi comunicada do incidente após o término da partida. 

Curiosamente, os três jogos em que a normativa não foi utilizada são justamente os três jogos femininos. Por outro lado, em todas as partidas masculinas nas quais foi sinalizado algum incidente de racismo na súmula, houve a aplicação do mecanismo. 

Dos seis jogos em que houve a aplicação do protocolo antirracismo, quatro deles não implicaram em nenhuma providência punitiva imediata:

Operário (PR) x América (MG) Na súmula consta que o protocolo foi acionado, mas não fornece maiores detalhes sobre desdobramentos. 

Cuiabá (MT) x Botafogo (SP)O protocolo foi aberto, porém a súmula cita somente que a “arbitragem não presenciou”. 

Amazonas (AM) x Chapecoense (SC) A súmula registra que o protocolo foi acionado e houve paralisação da partida por três minutos, porém diante da não identificação do agressor o jogo foi retomado. 

Goiatuba (GO) x Inter de Limeira (SP)Na súmula, o juiz alega que o jogador referido afirmou não ter se sentido ofendido com as palavras proferidas e, inclusive, disse que não haveria necessidade do protocolo. Entretanto, mesmo assim, o árbitro solicitou o anúncio público de forma preventiva. 

É importante ressaltar que, em alguns desses casos, houve registro de punições legais após a partida, não necessariamente ligadas à aplicação do protocolo. 

Falta de padrão nos registros indica fragilidades no protocolo

O fato de poucas súmulas registrarem casos de racismo pode não representar evidentemente uma ausência do problema. O Observatório da Discriminação Racial no Futebol, que monitora o racismo no esporte há mais de 10 anos, indica um volume muito maior de episódios discriminatórios em épocas anteriores, identificando que a subnotificação é um traço estrutural do sistema de registro oficial.

No relatório mais recente, a organização contabilizou 136 casos de racismo no futebol brasileiro em 2023, número 38,7% maior do que o registrado no ano anterior (98). A apuração destaca que foram computados 10 incidentes raciais presenciados na Série A do Campeonato Brasileiro masculino em 2022 e 2023, competição em que o Protocolo Antirracismo nunca foi utilizado em 2025. Uma das razões para a diferença entre esses números pode ser a metodologia de registro, já que as súmulas dependem exclusivamente da decisão do árbitro de formalizar o episódio, enquanto o Observatório reúne informações provenientes de reportagens, vídeos, redes sociais, denúncias e comunicados de clubes e entidades em seu monitoramento.

Os dados do Observatório também mostram que o racismo não ocorre apenas durante as partidas. Em 2023, a maior parte dos casos ocorreu em estádios, mas houve registro significativo de episódios na internet e em outros ambientes, reforçando que o fenômeno extrapola o campo de jogo e ocupa diferentes espaços de interação ligados ao futebol.

Outro problema estrutural identificado na apuração sobre a aplicação do protocolo antirracismo em jogos realizados no Brasil este ano é a falta de uma padronização em relação ao registro na própria súmula. Atualmente, não existe um espaço destinado para esse tipo de caso no documento, deixando a descrição a critério do árbitro. No jogo entre Goianésia (GO) e Mixto (MT), por exemplo, o incidente é citado na aba de “Observações Eventuais”. Já na partida entre América (MG) e Operário (PR), o caso é relatado em “Ocorrências/Observações”, conforme imagens reproduzidas abaixo:

“Para inglês ver”, critica ex-árbitro

Consultado sobre o assunto, o ex-árbitro de futebol Márcio Chagas da Silva — voz ativa na luta contra o racismo no esporte — reconheceu que, na época em que apitava, os recursos de combate a esse tipo de discriminação eram escassos. Entretanto, ele não poupou críticas ao mecanismo atual. “A única orientação que nós tínhamos era encaminhar na súmula um relatório extra descrevendo o ocorrido. Mas nem mesmo no Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) havia qualquer tipo de punição para casos de ataques racistas”, relembra. “Eu penso que esse protocolo é uma lei para inglês ver. Não funciona em absolutamente nada. Ele é muito mais uma campanha de marketing do que realmente algo pedagógico e punitivo”, completa. 

Outro ponto questionado por Chagas é a maneira pela qual o protocolo é aplicado. “Começa com a sinalização, depois a suspensão e somente num terceiro momento é que o árbitro pode encerrar a partida. Imagina poder cometer um crime três vezes antes de ser punido? Acho que é só com o racismo que isso acontece”, aponta. Na opinião do ex-árbitro, dificilmente uma partida poderá vir a ser finalizada através desse procedimento: “Nunca vai acontecer. Falo por experiência própria. Nenhum juiz vai ter coragem de ir contra bilheteria, bets, patrocinadores, empresários e a televisão. Sempre vai se tentar dar um jeito para que aquele jogo seja jogado”. 

Márcio Chagas conclui dizendo que, para que haja um avanço efetivo no combate ao racismo no esporte, este precisa começar pelas esferas de poder. “Deve haver uma paridade de raças nos tribunais, onde pessoas negras também estejam compondo o julgamento. Sempre se leva muito para o lado da brincadeira, do caso isolado… uma multa resolve, paga tudo. Mas a gente sabe que essa não é uma questão de dinheiro”, alega. Ainda segundo ele, as ações de conscientização também necessitam de uma mudança estrutural. “É tudo muito pontual. Agora no mês de novembro os clubes fazem camisetas alusivas, alguma coisa relacionada à abolição da escravatura. Mas não se tem um trabalho contínuo, algo que seja permanente. Sempre se espera acontecer para que depois seja tomado algum tipo de providência”, reitera.     

*Nota metodológica: a análise realizada pela reportagem com apoio da ferramenta NotebookLM está limitada às palavras-chave utilizadas na apuração e eventuais limitações técnicas da própria plataforma. Os resultados da busca foram checados pelos repórteres para a publicação.

**Foto destacada: Brasil x Uruguai pela Eliminatória Sul-Americana 2026 no estádio da Fonte Nova, em Salvador, 19/11/2025 (Crédito: Rafael Ribeiro/CBF)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Leia também