Na prateleira de uma farmácia em São Leopoldo, dois desodorantes antitranspirantes dividem espaço. A embalagem de um é preta, a do outro é rosa. O segundo é R$ 4 mais caro. A diferença não está na fórmula ou na quantidade, apenas no bolso da consumidora. Essa realidade aparece em diferentes itens, sejam desodorantes, hidratantes, suplementos nutricionais ou simples utensílios infantis. Produtos com a mesma função, quantidades iguais e vendidos pela mesma marca aparecem nas lojas com valores diferentes por conta de apenas um detalhe: se são destinados ao público masculino ou feminino. Essa diferença é conhecida como “taxa rosa”, um fenômeno que aparece em uma pluralidade de itens e que afetam, principalmente, o orçamento das mulheres.
Uma análise realizada por estudantes de Jornalismo da Unisinos em quatro cidades da região metropolitana de Porto Alegre mostra que essa diferença aparece em diversos estabelecimentos comerciais. Alguns produtos, como cremes e loções hidratantes, chegaram a apresentar 24% de custo a mais para mulheres do que para homens. As variações mais significativas foram verificadas em perfumes e suplementos alimentares, custando até 30% a mais nas versões femininas. Em comparação, o produto masculino mais caro em relação ao feminino, o aparelho de barbear ou depilar, alcançou apenas 2,32% de diferença no preço.
Para chegar aos valores que aparecem nesta reportagem, os estudantes fizeram uma coleta de preços em diferentes pontos de venda nas cidades de Cachoeirinha, Canoas, Novo Hamburgo e São Leopoldo. Durante o mês de outubro, foram analisados produtos classificados como “masculinos” ou “femininos” em quatro grandes redes de farmácia e supermercados, tanto em lojas físicas quanto nos aplicativos e sites das lojas. A comparação considerou marcas iguais, embalagens de mesmo volume e categorias idênticas de alguns dos produtos mais utilizados pelos consumidores. Quando havia variação de tamanho ou composição foi calculado o preço proporcional por mililitro ou grama para evitar distorções. Os preços foram anotados nos mesmos dias e horários, para impedir oscilação por conta de promoções. Posteriormente, foram tabulados e calculados os preços médios para uso na reportagem.
Essa diferença não é isolada. Estudos da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) demonstram que produtos rosas possuem um aumento de 12,3% em relação aos equivalentes masculinos ou neutros.
Demanda socialmente construída
A professora de Publicidade e Propaganda da Unisinos e mestre em Antropologia, Sônia Zardenunes, explica que esses números são naturais para o mercado, devido à lei da oferta e da procura: “Ao analisarmos as pesquisas vamos, por exemplo, identificar que o segmento fashion é, majoritariamente, alimentado pelo público feminino”, explica. Sônia complementa que, consequentemente, as marcas se utilizam dessa característica para incorporar mais valor aos vestuários femininos.
Entretanto, como aponta a publicitária, a demanda feminina é, antes de tudo, socialmente construída: “O consumo é uma cultura e ela é construída por pessoas e por todos os signos que constituem o mundo. Às mulheres estão, culturalmente, associadas à estética, à vaidade, ao autocuidado”. Na visão da professora, o público feminino se sente mais vulnerável ao que é aceito, ou não, dentro da sociedade do consumo e da estética. “A mulher acaba trazendo para si a necessidade de performar bela, jovem e inserida no que o mercado dita como ‘referência’”, destaca.
“A ausência da sensibilidade da sociedade em valores, sentimentos e o espírito humano é um reflexo de tudo isso”, reflete o lado antropólogo de Sônia. “Portanto, acabamos por explorar aquilo que nos traz mais conforto, o que podemos controlar: o consumo”.
Atualmente, uma nova vitrine do consumo se intensifica, e ela cabe em uma tela de celular. As redes sociais tornaram-se um dos maiores propulsores do consumo e do comportamento estético. Um estudo do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) e da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) estima que 64,8% das brasileiras já mudaram seus hábitos de compra por causa das redes sociais. Se antes a publicidade ocupava o papel central de ditar tendências, agora, cada perfil online torna-se também uma vitrine. “Todos têm voz, e nem tudo o que é dito nos fará bem — mas estamos ainda aprendendo a lidar com esse poder”, explica Sônia.
Para ela, os ambientes digitais fortalecem as comparações constantes e os ideais em torno das mulheres. “O comparativo entre as pessoas talvez seja a pior dor que as redes evocam”, observa a professora. Ainda assim, Sônia defende que este espaço tem possibilitado transformações importantes: “A internalização e aceitação das diferenças também acontecem nas redes. Em meio a tantas culturas e valores, as redes vêm para nos desafiar como valorizar o ‘eu’ de cada um”.
Ainda mais preocupante é o fato de que, apesar de gastarem mais, as mulheres ainda ganham menos. Dados do IBGE mostram que, atualmente, elas recebem cerca de 21% do rendimento médio dos homens, diferença que se mantém mesmo em cargos e níveis de escolaridade semelhantes. O rendimento médio real das trabalhadoras é de R$ 2.510 por mês, enquanto os homens recebem cerca de R$ 3.173. A desigualdade se torna ainda mais evidente quando se observa o recorte racial: mulheres brancas têm renda média de R$ 3.186, enquanto mulheres negras recebem R$ 1.905, uma disparidade de 40%. Mesmo em funções semelhantes e com o mesmo nível de escolaridade, a distância entre os rendimentos permanece, reforçando o quanto o gênero e a cor da pele ainda determinam o valor do trabalho no Brasil.
Outro dado importante vem de um levantamento da FGV IBRE, que mostra que, em 2024, as mulheres passaram a chefiar a maioria dos lares brasileiros, representando 51,7% das famílias. Isso significa que elas são, ao mesmo tempo, as principais responsáveis pelo sustento da casa e mais expostas a esse tipo de consumo direcionado.
Quando questionada sobre o impacto de tudo isso na vida das mulheres, Zardenunes é direta: “Se a sociedade não cultuasse a beleza do consumo ou a beleza oriunda dos vários procedimentos e objetos, se não objetificasse a mulher, o mercado simplesmente não encontraria quem sustentasse essa narrativa. A mudança não acontecerá pelo mercado. A mudança acontece, primeiro, nas pessoas. O mercado é um reflexo do nosso transtorno”.
Para a professora, essa é uma questão que também passa pela comunicação: “A mesma publicidade que exalta a ditadura da beleza é a que trabalha, em muitas frentes, para destituí-la. O mesmo jornalismo que noticia e exalta o empoderamento masculino é o que dá voz às mulheres que conseguem furar o bloqueio”.
Efeitos do consumo estético
O corpo também paga o preço da beleza. De acordo com dados obtidos pela reportagem via Lei de Acesso à Informação (LAI), o número de notificações e denúncias a respeito de reações alérgicas a cosméticos é significativamente maior entre as mulheres. Nos 1113 casos registrados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de Janeiro de 2020 até Outubro de 2025, em 80% os denunciantes eram do sexo feminino. A constante busca pela beleza fomentada pelo mercado, que gera um uso excessivo de cosméticos por parte das mulheres, pode ser uma das explicações para a diferença.
Na família de Alana Cizeski, lidar com esses problemas advindos de produtos embelezadores tornou-se comum no último ano: “Meu irmão, minha sobrinha, meu marido e eu própria tivemos que consultar um médico por conta de reações alérgicas”. A moradora de Novo Hamburgo relata que, mesmo sem terem diagnóstico de nenhuma alergia, seus familiares apresentaram, respectivamente: manchas embaixo do braço por uso de desodorantes; inchaço no olho por conta de rímel; tumefação em várias partes do corpo após aplicação de esfoliante e coceira generalizada no corpo por utilização de hidratante corporal.
Segundo os dados da Anvisa, as reclamações de efeitos adversos a cosméticos vêm crescendo nos últimos anos, principalmente no público feminino, embora nem sempre apresentem riscos graves.
Muitos dos produtos de beleza contêm presença de substâncias tóxicas, sendo as mais comuns os parabenos, ftalatos, sulfatos e metais pesados. Alguns desses ingredientes nocivos são permitidos em concentração limitada por órgãos reguladores, como a Anvisa. Entretanto, essa limitação não anula os efeitos a longo prazo do uso contínuo e combinado desses agentes tóxicos.
Beatris Gevehr sabe muito bem dos perigos da exposição a essas substâncias. Em 2012, a contadora apresentou uma séria reação alérgica a produtos comuns como xampu, cremes e maquiagens. “Passei um ano sofrendo com feridas no couro cabeludo, nuca, colo, e nos braços, nenhum dermatologista descobriu o que era”. Posteriormente, Beatris foi informada que estava com intoxicação por metais pesados, oriundos dos produtos rotineiros que usava. “Tive que cortar praticamente todos os produtos que usava, ainda hoje, se volto a usá-los, a alergia volta junto”, relata.
Atualmente, Beatris, ao lado da filha Amanda, possui uma empresa de cosméticos veganos, para a criação e venda de produtos livres dos materiais prejudiciais.
A pesquisadora Sônia Zardenunes orienta que a transformação real parte do conhecimento e da educação: “A única forma que acredito ser possível uma verdadeira mudança é a partir da educação, do entendimento de que o consumo é a ponta do iceberg de um mundo de valores e interesses que, para a maioria, ainda está adormecido”. Para ela, um mercado de beleza mais apropriado começa quando cada mulher passa a se reconhecer como suficiente. “Acredito que teremos um mercado mais justo quando nós formos mais justas com nós mesmas”, conclui.
