Até agosto deste ano, a frota de veículos no Rio Grande do Sul já se aproxima de 8 milhões, e a gasolina é o combustível mais utilizado. Para garantir o bom desempenho dos automóveis, o produto precisa atender aos padrões técnicos estabelecidos pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Entre as formas de verificação da qualidade da gasolina está o teste da proveta, que mede o teor de etanol anidro no produto e pode ser feito no ato do abastecimento. Segundo o Art. 5º da Resolução ANP nº 898/2022, os postos de combustíveis são obrigados a realizá-lo perante solicitação do consumidor.
Na prática, porém, essa norma nem sempre é respeitada. Entre agosto e setembro deste ano, nossa equipe percorreu três das principais avenidas de Porto Alegre, Nilo Peçanha, Ipiranga e Assis Brasil, em diferentes dias e horários. Ao todo, 15 estabelecimentos foram visitados, mas apenas dois se propuseram a fazer o procedimento.
No final da tarde de 19 de agosto, percorremos cerca de três quilômetros pela Av. Dr. Nilo Peçanha, entre a Praça da Encol e o Shopping Iguatemi. Nessa ocasião, estivemos em postos de bandeiras Petrobras e Ipiranga. Nenhum dos cinco locais abordados realizaram o teste da proveta. Em três dos postos, a recusa foi atribuída ao fato de que apenas o gerente poderia efetuar o ensaio e que ele não estava presente no turno. Já em outro, a gerente afirmou que não poderia fazê-lo naquele momento. Segundo ela, havia um problema técnico em uma das bombas de abastecimento e o seu expediente já estava sendo encerrado. O local apresentava grande movimento, e nenhum outro funcionário foi indicado para conduzir o teste.
A justificativa foi diferente em uma rua próxima ao Iguatemi. Os frentistas nos encaminharam ao responsável, que estava em uma sala nos fundos do local. Questionado sobre a possibilidade de fazer o teste, demonstrou resistência e afirmou, de forma errônea, que o procedimento não era mais obrigatório. Mesmo após a equipe esclarecer que a norma da ANP garante ao consumidor o direito de acompanhar a análise, ele manteve a negativa inicial. Após alguns minutos de conversa, concordou em fazer apenas o teste da bomba, que afere o volume de combustível liberado, mas não confere a qualidade.
O levantamento foi repetido na Av. Ipiranga, na manhã do dia 9 de setembro. Em um trajeto aproximado de três quilômetros, entre o Bourbon Ipiranga e o Planetário, foram visitados postos das bandeiras: Ipiranga, Petrobras, Rodoil, SIM e Buffon. A ausência do gerente voltou a ser a principal justificativa para a recusa.
Em um dos locais, a equipe fez a primeira visita em um domingo à noite. Um funcionário informou que a pessoa responsável não estava e orientou o retorno pela manhã. Quando voltamos no turno indicado, tivemos a mesma resposta. Situações semelhantes foram registradas em outros postos. Em muitos casos, os frentistas demonstravam surpresa com a solicitação. Questionado se sabia como executar o ensaio, um dos funcionários afirmou que sim, mas disse que não poderia fazê-lo, pois os equipamentos necessários ficavam trancados na sala do gerente, cujo acesso era restrito.
Apenas em um posto foi possível acompanhar o procedimento completo. O gerente, Gustavo Weiprecht, preparou o equipamento e iniciou a análise, explicando que o processo leva em média 20 minutos. Segundo ele, nem todos os funcionários são treinados, embora alguns saibam realizá-lo. Weiprecht contou ainda que amostras são coletadas para serem analisadas pelo Laboratório de Combustíveis da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (LABCOM) e que os consumidores raramente fazem esse tipo de pedido.

Na manhã do dia 13 de setembro, a equipe esteve em um trecho de quatro quilômetros da Av. Assis Brasil, onde visitou postos das bandeiras Ipiranga, Shell, Piratini, Petronas e Rede Ely. Assim como observado nas outras avenidas, a realização do teste da proveta foi negada na maioria dos estabelecimentos com a mesma justificativa: apenas o gerente poderia para fazer o teste. Um dos frentistas explicou que os funcionários são orientados a não interromper o atendimento para acompanhar o ensaio, uma vez que poderia atrasar os trabalhos devido ao fluxo intenso de clientes no horário. Em três destes postos, entretanto, a pessoa responsável não encontrava-se disponível no momento.
A situação foi diferente no quarto posto visitado, onde o gerente estava presente e se propôs a fazer o teste na hora. Segundo ele, somente alguns funcionários selecionados são treinados para fazerem quando está ausente. O caso mais emblemático ocorreu no último posto visitado, onde a equipe foi informada de que o estabelecimento não fazia esse tipo de teste. O funcionário, visivelmente espantado, afirmou nunca ter ouvido falar do procedimento. Não houve menção à possibilidade de acionar o gerente, nem qualquer indicação de que alguém no local soubesse realizar o ensaio.
Ou seja, embora a ANP garanta ao consumidor o direito de acompanhar esse teste, na prática o acesso a ele é sistematicamente dificultado. Falta de autorização interna, desconhecimento da norma, ausência de responsáveis e equipamentos trancados em salas restritas formam um cenário em que o direito depende mais da boa vontade do posto do que da regulamentação.

Como o teste é realizado
O teste da proveta consiste em misturar a gasolina com uma solução de água salgada. Ao entrar em contato com essa solução, o etanol presente no produto passa para a camada de água, que aumenta de volume. É essa variação que permite identificar se o combustível está dentro do teor de etanol exigido pela resolução.
O procedimento começa com a adição de 50 ml de gasolina na proveta, seguida de 50 ml de solução de água e sal (cloreto de sódio). A mistura forma duas fases visíveis: uma orgânica, que reúne a gasolina e o etanol anidro, e outra aquosa, formada pela solução salina. A proveta é tampada e invertida 10 vezes, para permitir que o etanol migre da gasolina para a água. Depois, o material fica em repouso por cerca de 15 minutos, até que as camadas se separem totalmente.
No final, a camada superior passa a conter apenas gasolina, que é menos densa. Já a camada inferior reúne a solução salina com o etanol extraído da amostra. O teor de etanol é determinado observando o quanto essa camada inferior aumentou em relação ao volume inicial, que era de 50 ml. A conta usada é simples: [(A − 50) × 2] + 1, sendo A o volume final da camada aquosa. Por exemplo, se o nível final for 64,5 ml, o teor calculado será de 30%, valor que está dentro da faixa permitida para a gasolina comum e aditivada no país. Veja no quadro abaixo:

Entretanto, mesmo a gasolina passando no teste da proveta não significa que ela pode ser considerada “pura” quimicamente, explica o doutor em Química e professor do Departamento de Química da Universidade de São Paulo (USP), Thiago Carita Correa. Essa análise é considerada um teste rápido, que serve para aferir a quantidade de etanol presente na gasolina. Para resultados mais exatos, o teste precisaria ser realizado em laboratório, onde existem análises mais completas e ambiente controlado.
“Esse teste não prova que a gasolina é a mais pura que existe, mas que em termos de etanol dissolvido, ela não está acima do que deveria estar. Tanto que você pode ter uma gasolina impura com outros compostos, por exemplo, o éter, que não separaria a fase, e ela ainda assim não seria pura, mas passaria nesse teste”, ressalta o professor.
Conversamos com a pós-doutoranda e gerente técnica do LABCOM, Carla Felippi Chiella Ruschel, que destacou os diferenciais da análise realizada no laboratório:
“Nós temos diversas provetas para quais existe uma portaria com as suas especificações, ou seja, como que ela deve ser produzida, qual o material e em quais volumes deve ser realizada a sua calibração. Além disso, o próprio laboratório tem um controle de temperatura, porque isso pode influenciar no ensaio. A gasolina é extremamente volátil, ela muda com o tempo, então, no laboratório fazemos isso numa temperatura controlada em torno de 20°C para evitar essa volatilização do combustível”.
O LABCOM é responsável pelas análises físico-químicas realizadas no Programa de Monitoramento da Qualidade dos Combustíveis (PMQC) da ANP no Rio Grande do Sul. A unidade venceu o último edital de licitação da agência em 2021, e é responsável por coletar amostras diretamente nos postos revendedores do estado, bem como executar os ensaios que verificam a qualidade de combustíveis comercializados.
O impacto da qualidade da gasolina nos veículos
Com mais de 35 anos de atuação em mecânica automotiva, Arlei José da Silva afirma que a qualidade da gasolina tem impacto direto no funcionamento do motor dos veículos. Segundo ele, combustíveis fora das especificações tendem a gerar queima irregular, perda de potência e aumento de consumo.
Arlei menciona que é comum identificar problemas relacionados ao uso de combustível de má qualidade. “Várias vezes chegam carros falhando, e uma das perguntas que influenciam no diagnóstico é se o cliente suspeita da gasolina que colocou”, explica. Entre os danos mais recorrentes, ele cita entupimento de bicos injetores, desgaste da bomba de combustível e falhas no sistema de alimentação geral, que podem resultar em reparos caros. Sobre o teste da proveta, ressalta: ”É um direito que muita gente nem sabe que tem. Se o posto faz na hora, já é um sinal de que não tem nada a esconder e de que o combustível está com o teor de etanol correto”.
Direito pouco conhecido
Com 5,6 milhões de motoristas habilitados, segundo análise da Associação Brasileira de Medicina do Tráfego do Rio Grande do Sul (Abramet-RS), o estado concentra uma das maiores circulações de veículos do país. Ainda assim, boa parte destes condutores desconhece que pode exigir, gratuitamente, uma verificação simples da qualidade da gasolina que coloca no seu carro. Para entender o nível de informação dos consumidores, a equipe realizou uma pesquisa em formato de formulário on-line, divulgada por meio de redes sociais. Ao todo, 65 pessoas participaram.
Os resultados mostram que 61,5% não conhecem o teste da proveta. Mesmo entre os que já conhecem, poucos o solicitam na prática: apenas duas pessoas afirmaram já ter requerido. Quase 97% dos participantes da pesquisa nunca pediram a realização da análise, muitas vezes por desconhecer que se trata de um direito do consumidor. Alguns participantes relataram que não sabiam que pessoas físicas têm esse direito.
Uma das possíveis razões para esse desconhecimento é a baixa circulação de informações sobre o procedimento. Em resposta enviada à equipe via Lei de Acesso à Informação (LAI), a ANP informou que orienta o público por meio de materiais institucionais. Entre eles está a cartilha Combustíveis Líquidos: 10 orientações para garantir seus direitos ao abastecer, que explica o teste da proveta e outros mecanismos de análise. A autarquia também afirmou que, em ações como o Mês do Consumidor, disponibiliza conteúdos e vídeos educativos em seus canais oficiais sobre como os testes são realizados, quais informações os postos devem fornecer e como funcionam os processos de fiscalização. Apesar dessas iniciativas, os dados da pesquisa sugerem que essas orientações ainda não chegam de forma ampla ao consumidor.

Visando esclarecer o que determina a Resolução nº 898/2022, que obriga os postos de combustíveis a realizarem o teste da proveta, independentemente da presença do gerente, nossa equipe entrou em contato com a ANP. Em entrevista, o chefe do Núcleo Regional de Fiscalização da ANP no Rio Grande do Sul, Mateus Cogo Marques, afirmou que nenhuma justificativa, como falta de treinamento, ausência de equipamentos ou indisponibilidade do gestor, é considerada legítima para negar o ensaio. Segundo ele, postos que recusam a realização estão em desacordo com a norma. A orientação é que consumidores que enfrentarem esse tipo de irregularidade denunciem pelo telefone 0800 970 0267 ou pela plataforma FalaBR, canais que alimentam diretamente o sistema de fiscalização da agência.
Marques explica que as denúncias são, inclusive, um dos principais insumos usados pela ANP para definir rotas de fiscalização. Quando confirmadas, as irregularidades podem resultar em autuações e multas que variam de R$ 5 mil a R$ 5 milhões, além de suspensões temporárias e, em casos graves, perda da autorização de funcionamento.
Questionado sobre possíveis interferências — como temperatura ambiente, posição do frasco ou tipo de solução salina utilizada — o chefe do núcleo regional afirmou que a Resolução 898/2022 estabelece critérios padronizados para todo o país, e que cabe ao posto manter os equipamentos exigidos e realizar o teste corretamente. A agência reforça que, embora existam variáveis operacionais, o experimento é um instrumento preliminar de verificação, e que resultados suspeitos obtidos em campo são posteriormente analisados em laboratório.
Nossa equipe também procurou o Sindicato Intermunicipal do Comércio Varejista de Combustíveis e Lubrificantes no Estado do RS (Sulpetro), entidade que representa os revendedores no estado. Em nota, o sindicato afirmou defender o cumprimento integral da legislação e destacou que sua equipe técnica e comercial leva orientações rotineiras aos revendedores, oferecendo checklists e outras ferramentas de apoio sobre gestão e normativas do setor. Porém, a entidade ressaltou que, por imperativo legal, não detém poder fiscalizatório e lembrou que nem todos os postos são filiados à entidade, o que limita o alcance das orientações.
