É comum ouvir que Gramado é a “Europa brasileira”. Essa percepção pode ser explicada por diversos fatores, entre eles a própria colonização, que, segundo o site oficial do Turismo da cidade, foi iniciada por imigrantes portugueses em 1875, seguida pelos alemães, cinco anos depois, e posteriormente por italianos oriundos de Caxias do Sul. A herança desses povos permanece viva até hoje, visível na arquitetura, nas tradições e na identidade cultural do município.
Há outra herança que também compõe a história do município, mas que costuma ser esquecida ou silenciada: a presença negra. Em 2020, o historiador Wanderley Cavalcante realizou um levantamento preliminar sobre a invisibilidade dos negros na história de Gramado, revelando que essa população é frequentemente excluída quando se fala da colonização da região. Uma das conclusões do estudo aponta: “Os resultados coletados até o presente indicam que os negros sempre estiveram presentes na história da região, tanto na frente de expansão quanto na frente pioneira, e também apontam para um provável esquecimento proposital dessa população.”
Mais recentemente, outro movimento social tem ganhado destaque: a migração de nordestinos para o município, impulsionada pela busca por trabalho, segurança e qualidade de vida. Vindos de regiões mais quentes do país, esses novos moradores encontram na Serra Gaúcha não apenas um clima ameno, mas também oportunidades de reconstrução de suas trajetórias. E, assim como os povos que chegaram antes deles, trazem consigo suas culturas, saberes e vivências — contribuindo para a construção de uma Gramado cuja história do futuro será contada a partir da diversidade de quem a habita.
Histórias de quem reconstrói a vida na Serra Gaúcha
O cearense Everardo Alcantara, de 33 anos, é um dos muitos nordestinos que encontraram em Gramado a chance de recomeçar. “Recebi uma proposta de um amigo de um amigo pessoal, e cá estou”, conta ele. A motivação principal para a mudança? “Melhorar a vida das minhas filhas”. Segundo Everardo, o trabalho intenso, comum à sua rotina no Nordeste, seguiu com a mesma força no Sul: “A gente nunca para lá também, sempre trabalhando”. Mas ele também nota diferenças culturais. “Percebo que há um receio cultural. Não por todos, mas os olhares são diferentes conosco”, afirma. Para ele, o ponto mais positivo de Gramado é a segurança: “Estamos em uma cidade, senão a mais segura, uma das mais seguras do Brasil.”

Outro cearense que trocou o calor do Nordeste pelo frio serrano é Rodrigo Medeiros, de 37 anos, também de Fortaleza. Ele vive na região há dois anos, ao lado da esposa e das duas filhas. “O que me motivou foi o clima, o frio foi um dos principais atrativos, além da organização, limpeza das ruas e a segurança. Vim com um emprego garantido como representante comercial, mas percebi que há muitas oportunidades ligadas ao turismo”, destaca. A adaptação foi tranquila, mas o custo de vida, especialmente o valor dos aluguéis, foi um choque para a família. “Nos assustamos quando chegamos. Algumas casas são antigas e mal estruturadas, com preços bem altos”, diz. Ele reconhece que, com salários baixos, viver na cidade pode ser inviável. Apesar disso, sente-se acolhido. “Minha experiência com os gaúchos é que, no início, eles não são tão abertos, mas depois que você ganha a confiança, são pessoas maravilhosas”, afirma. Rodrigo também viu nascer, a partir de sua iniciativa, uma rede de apoio fundamental: “Criamos um grupo no WhatsApp chamado Nordestinos na Serra. Hoje somos quase 700 pessoas. Promovemos encontros e trocamos informações, o que ajuda muito quem chega”, conta.

A paraibana Izabela Sales Lacerda Andrade, de 39 anos, também encontrou em Gramado o lugar ideal para reconstruir sua vida. Natural de Campina Grande, ela mora na cidade há seis anos, após três visitas como turista que despertaram o desejo de ficar. “No quarto ano, viemos com o objetivo de fazer um teste por um ano. Se desse certo, a gente ficava. Se não, ia embora. Mas nos três primeiros meses já decidimos que esse era o local que íamos chamar de lar”, conta. Ela e o marido começaram como motoristas de aplicativo, até que o jeito acolhedor e a conversa fácil com os passageiros abriram caminho para uma nova atividade: o turismo. “As pessoas pediam para passar o dia com a gente, então começamos a trabalhar com passeios e hoje temos uma agência”. Para ela, o maior desafio é o custo de vida, especialmente os valores dos aluguéis. “Na Paraíba tenho uma casa muito confortável. Aqui, pelo valor que pago, a casa é bem mais simples. A vontade que eu tenho é trazer minha casa de lá pra cá”, brinca. Ainda assim, considera que a mudança valeu a pena, sobretudo por poder contar com serviços públicos de saúde, educação e segurança. “Na ponta do lápis, vale a pena.” Hoje, boa parte da família já está por perto. “Pretendo continuar aqui. Só volto para a Paraíba pra dançar forró e dar cheiro em mainha, mas é aqui que quero criar meu filho.”

Nem todo mundo decide ficar: há quem, mesmo após anos na Serra Gaúcha, escolha voltar para casa em busca de pertencimento e reconexão com suas raízes. Gabriela Silva Santos, natural de Boqueirão (PB), viveu por seis anos em Canela, cidade vizinha a Gramado. A decisão de migrar para a Serra Gaúcha surgiu após uma temporada no Rio de Janeiro, marcada pela violência. Ela e o marido buscavam um lugar mais tranquilo, com oportunidades de emprego e qualidade de vida. Professora de formação, Gabriela conseguiu trabalho na área da Educação após entregar currículos presencialmente. A adaptação ao clima foi o maior desafio, já que o frio intenso contrastava com o que estava acostumada. Embora não tenha vivenciado episódios explícitos de preconceito, relata que sentiu olhares e atitudes sutis de estigmatização por ser nordestina. O custo de vida elevado, especialmente os aluguéis, também foi uma dificuldade constante: ao longo dos anos, ela e o marido mudaram de casa sete vezes. Apesar disso, se sentiu segura e acolhida, ainda que criar vínculos com os moradores tenha levado tempo. Com o passar dos anos, porém, a saudade da família, da cultura nordestina e o desconforto com o clima acabaram pesando mais, levando à decisão de retornar para sua terra natal. “Apesar da Serra ter muitos pontos positivos, eu não me sentia em casa”, resume.

Porque os nordestinos migram
Uma nota técnica publicada em 2023 pela Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), com base nos dados preliminares do Censo Demográfico de 2022, aponta que o Nordeste segue como a segunda região mais populosa do Brasil, com 54,6 milhões de habitantes. No entanto, apresentou o menor crescimento do país, com taxa anual de apenas 0,24%. Segundo os demógrafos Wilson Fusco e Ricardo Ojima, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), esse baixo crescimento reflete a continuidade dos fluxos migratórios e a persistência de desafios estruturais. “Historicamente, esta região enfrenta desafios econômicos e sociais, e a inércia dos movimentos emigratórios que leva nordestinos para outras regiões há décadas, associada à falta de oportunidades de emprego, pode estar na explicação desse baixo crescimento”, destacam os pesquisadores.
Celebração da cultura
A presença nordestina em Gramado revela camadas que muitas vezes escapam dos roteiros turísticos. São histórias de recomeço, resistência e pertencimento — ou da ausência dele. E para celebrar a cultura do povo nordestino no município, uma grande festa de São João foi organizada por e para quem carrega no peito o som do forró, o sabor do milho verde e a lembrança das noites enfeitadas com bandeirinhas. O São João acontecerá entre os dias 27 e 29 de junho, no Expogramado, com entrada gratuita. “A festa de São João foi uma maneira que encontramos de trazer e matar um pouco da saudade de todos os nordestinos, nortistas e de quem gosta dessa celebração. Queremos que todos sintam um pouquinho de casa e sejam abraçados pela cidade, esperamos um público bom e que possamos mostrar nossa cultura para todos”, destaca Everardo, que é um dos organizadores.