Onde o medo também se pendura: Tainá Borges e o Circo Híbrido

Grupo de artes circenses de Porto Alegre abriga trajetória que mistura corpo, conhecimento e expressão

Num final de tarde de véspera de feriado em Porto Alegre, nosso motorista de aplicativo simpático parou em frente a um prédio discreto na famosa Cidade Baixa, bairro boêmio da capital. A chuva grossa e a pressa em não se molhar dificultavam a identificação do local. Foi entre os galhos da árvore da calçada que conseguimos enxergar a placa com o nome do nosso destino: Circo Híbrido. Na entrada, eu e minha parceira de foto, fomos recebidas pela recepcionista, que nos pediu para aguardar. A recepção era aconchegante. Os tons de azul e vermelho, combinados aos objetos cênicos, revelavam o caráter artístico do ambiente. A luz quente destacava as bordas das molduras com pinturas que remetiam ao universo circense. À direita, uma cristaleira iluminava objetos à venda: bolas, aros, bambolês, claves coloridas, dentre outros.

A espera pela nossa entrevistada não durou muito tempo. Em poucos minutos, Tainá Borges aparece e nos cumprimenta com gentileza. Em seguida, nos conduz pelo espaço. À medida que avançamos, as salas revelavam um pouco mais da relação entre ensino e prática circense. Tecidos vermelhos pendiam do teto. Fotografias, figurinos e chapéus ocupavam prateleiras e paredes de modo a compor o cenário que abriga o dia a dia das pessoas que frequentam o lugar. Sentamos no tatame sobre o chão e demos início à entrevista. A cada resposta, Tainá deixava evidente que falar sobre si era, inevitavelmente, falar sobre o circo. Dona de uma curiosidade inquieta, foi a disposição em explorar diferentes possibilidades que anos atrás a conduziu para esse universo.

Com equipamentos repletos de cor e instrumentos variados, o estúdio do Circo Híbrido é caracterizado pelo seu espaço vibrante e essência criativa. – LAURA DRIEMEIER/BETA REDAÇÃO

Tainá Borges é uma artista circense e uma das idealizadoras do Grupo Circo Híbrido. Formada em Psicologia, também possui pós-graduação em Dança. Sua trajetória artística teve início ainda nos anos 2000, enquanto cursava sua primeira faculdade. Na época, estudava uma série de conceitos atrelados a filosofia e psicologia, mas, apesar do entusiasmo com a teoria, sentia falta de ver esses conceitos aplicados na prática. Foi então que conheceu um grupo que praticava circo num parque de Porto Alegre, o que a levou a se aproximar ainda mais desse universo. “Aquilo me encantou, me despertou algo do tipo: nossa, que incrível! Preciso entender mais sobre isso”, lembra.

Em 2001, Tainá participou de seu primeiro evento circense como voluntária no 3º Encontro Internacional de Malabarismo Circo e Percussão do Brasil, que foi realizado em Porto Alegre. Ali, teve seu contato mais profundo com a cena artística. A experiência foi reveladora. Ao perceber que aquela arte ia muito além do tradicional circo de lona que lembrava da infância, decidiu que queria fazer parte. Desde então, começou a frequentar aulas e nunca mais se afastou. “Abriu uma porta que eu nunca mais fechei, só foi abrindo outras e outras”, conta.

Três anos depois, ela e seu companheiro, o também artista Luís Cocolichio, fundaram o Grupo Circo Híbrido. O coletivo nasceu do desejo de unir circo, teatro e dança em uma linguagem contemporânea que explora o corpo como espaço de criação, expressão e potência. Ao longo de mais de duas décadas, o Circo Híbrido cresceu, se tornou referência e passou a conectar artistas, estudantes e público por meio de projetos educativos, espetáculos e criações colaborativas. Em 2007, o grupo inaugurou sua sede no bairro Cidade Baixa, dando origem também à Escola Circo Híbrido, um desdobramento natural desenvolvido por Tainá e Luís. Quase 10 anos depois, eles conquistaram um novo espaço na rua ao lado da antiga sede. O local passou por uma ampliação em 2019, pouco antes da pandemia, o que abriu caminho para a expansão das atividades.

Em 2025, o Circo Híbrido completa 21 anos desde sua fundação. Inaugurado em Porto Alegre, o espaço é hoje referência em atividades circenses. – LAURA DRIEMEIER/BETA REDAÇÃO

Agora aos 43 anos, Tainá se divide entre múltiplas funções: além de artista, é professora, empresária, diretora e produtora. Todas essas ocupações, no entanto, não foram planejadas. Ela conta que começou como artista, mas, à medida que o circo crescia, foi assumindo novas responsabilidades, da produção de eventos à escrita de editais e à administração do espaço. Embora reconheça o peso da função empresarial, não esconde sua preferência pelas salas de aula e pelos bastidores criativos. “Eu gosto muito de estar em cena, gosto muito de mergulhar em pesquisa, de produzir e tem períodos em que às vezes a parte de gestão toma muito meu tempo”, relata.

Tainá se descobriu professora ao longo de sua trajetória. Em 2004, passou a ter aulas com o professor que, três anos depois, a convidou para assumir suas turmas, já que ele se mudaria de cidade. Embora já atuasse como monitora, não se sentia pronta para ensinar. Diante desse desafio, passou a investir na própria formação. Como não existe graduação formal em Circo em Porto Alegre, o aprendizado aconteceu na prática, na pesquisa e na troca com outros profissionais. Nesse percurso, além de muito conhecimento, a artista desenvolveu uma série de habilidades circenses: caminha sobre garrafas, sobe e dança em tecidos, faz malabarismo, anda de perna de pau e atua como palhaça. “Gosto muito de aprender, compartilhar e ensinar. Acho que para além de ser uma professora nesse lugar de saber, a troca que acontece em aula e o que eu aprendo com eles é muito rico”, diz. Atualmente ela ministra aulas de dança aérea para adultos na Escola Circo Híbrido.

A forma como a professora conduz as aulas se reflete na percepção que ex-alunos têm dela. Ana Paula Ruhe, que frequentou o Circo Híbrido entre 2014 e 2018, destaca sua presença marcante no espaço: “A Tainá é a cara do Circo Híbrido. Ainda que o circo seja resultado do trabalho e do esforço de várias pessoas, ela é a principal líder, na minha percepção”, conta. Segundo a ex-aluna, o carinho e o cuidado com que Tainá encara o circo se propagam por todas as atividades proporcionadas. Ana Paula afirma que desenvolveu uma consciência corporal e um cuidado com o corpo que leva consigo até hoje ao fazer qualquer atividade física. Também lembra com afeto do ambiente descontraído das aulas. “A gente dava muita risada. Tenho muitas saudades dela e das aulas”, diz.

O gosto por ensinar caminha junto com a curiosidade de quem nunca parou de estudar. Atualmente, a professora está finalizando uma segunda graduação em Educação Física, com o objetivo de ampliar suas ferramentas pedagógicas e fortalecer as práticas que desenvolve em seu trabalho. Quando perguntada sobre sua rotina fora do local de trabalho, Tainá ri, e diz que sua vida e o circo se entrelaçam o tempo todo. Para manter o corpo ativo e saudável, dedica-se a atividades como treinamento funcional, terapia e aulas de dança. Além disso, é mãe da Filó, sua cachorrinha que costuma aparecer com frequência em seus posts no Instagram. O maior desejo da artista é encontrar um equilíbrio saudável entre vida profissional e pessoal.

Tainá fala com orgulho sobre as conquistas do Circo Híbrido. Em 2022, o grupo venceu duas categorias do Prêmio Açorianos de Circo com Atravessamentos. Dois anos depois, celebrou 20 anos de trajetória com o espetáculo Cir.co – minidicionário poético das artes circenses, que reinventou palavras do dicionário pela ótica de artistas circenses. A obra foi reconhecida com o Prêmio Quero-Quero de Artes Cênicas como Destaque Espetáculo de Circo no ano passado. Em 2025, Cir.co ainda conquistou uma categoria do Prêmio Açorianos de Circo.

O Circo Híbrido também exerce um papel ativo na cultura do Rio Grande do Sul ao movimentar micropolíticas dentro do espaço. Tainá afirma que ações como o Encontro Livre de Circo, realizado mensalmente com entrada gratuita, abrem as portas da escola para a comunidade e promovem o acesso à prática e à apreciação das artes circenses. Além disso, a formação de plateia é uma das frentes mais constantes na cultura, visto que muitas pessoas que nunca haviam assistido a um espetáculo de circo passaram a frequentar apresentações a partir do vínculo com alunos e alunas da escola. Outro destaque é a formação de novos artistas e professores. Muitos estudantes que passaram pela escola tornaram-se profissionais e hoje atuam em outras instituições ou criaram seus próprios espaços, fruto do trabalho daqueles que lideraram a escola desde o começo.

Do riso à técnica, Tainá Borges transita entre palhaça e professora com a mesma leveza com que ocupa o ar. – LAURA DRIEMEIER/BETA REDAÇÃO

Depois da entrevista, acompanhei minha colega enquanto fotografava Tainá em ação. Entre sorrisos, poses e concentração, ela subiu com firmeza pelos longos tecidos da sala de luz baixa. A cena, cheia de domínio técnico e leveza, contrastava com algo que ela havia dito logo no início da nossa conversa: “Eu tenho medo de altura”. Ver seus movimentos naquele tecido, depois de ouvir sua trajetória, tornou ainda mais evidente a força de alguém que desafia seus próprios limites diariamente.

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