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O Vale Germânico também é negro: territórios culturais preservam história em Novo Hamburgo

Em uma cidade que se orgulha das tradições da imigração alemã, celebradas em 2024 com uma extensa programação pelos 200 anos da chegada dos primeiros colonos ao Vale do Sinos, a população negra segue reafirmando seu papel na construção da história de Novo Hamburgo. Nos bairros Primavera e Boa Saúde, as sedes da Cruzeiro do Sul e da Aí Vem os Marujos mantêm viva a herança da cultura negra, ensinando às novas gerações valores de convivência, identidade e resistência. São territórios de pertencimento, criados e sustentados por gerações que resistem para manter vivas suas origens.

Antes mesmo da chegada dos imigrantes alemães, a área que viria a se tornar Novo Hamburgo já era ocupada. “A gente erra muitas vezes ao achar que quando os alemães chegaram, aqui não existia nada”, explica Paulo Daniel Spolier, professor de história do município e atual responsável pelo Arquivo Público Municipal. “Além dos Kaingang, já havia propriedades portuguesas e, dentro delas, pessoas negras escravizadas. Eles já estavam aqui quando a cidade nasceu”. Posteriormente, com o fim da escravidão, os primeiros núcleos dessa população se fixaram no Bairro África, área que hoje compreende parte do bairro Guarani.

Com o avanço urbano e a valorização da área central, essas famílias foram empurradas para regiões mais afastadas, como o bairro Primavera, conhecido historicamente como Bairro da Mistura. “Quanto mais alto você subia a Rua da Limpeza, atual Osvaldo Cruz, mais negra ficava a população”, explica Spolier. “Por ser o destino dos dejetos de toda a cidade, era uma área marginalizada, com terrenos mais baratos. Foi ali que muitas famílias negras construíram seus lares e comunidades”.

Cruzeiro do Sul

E é no início da Rua da Limpeza, em 1922, que surge o primeiro clube social negro da região do Vale do Rio dos Sinos. A Sociedade Cruzeiro do Sul, mais velha que a própria emancipação de Novo Hamburgo, nasce três décadas após o fim da escravidão, com o desafio de desmarginalizar a comunidade negra, que não tinha acesso aos mesmos espaços de lazer que o restante da população. Organizada inicialmente em torno do futebol e do carnaval, a Cruzeiro consolidou-se ao longo de seus 103 anos de história preservando a memória para as gerações futuras. Além do desfile da escola de samba, a sociedade realiza outros projetos sociais e oficinas culturais durante todo o ano, como o Sábado da Gente e o Sarau da Cruzeiro.

Para Isabel Milano, diretora de Carnaval e professora nas aulas de samba gratuitas que acontecem toda segunda-feira na sede, o espaço é mais do que um clube, é um lar: “A Cruzeiro representa empoderamento e autonomia sobre a nossa origem, existência e futuro. Nas aulas, ensinamos a técnica da dança, mas também convivência, respeito e identidade. É um grito de liberdade, de ‘eu posso’.” A dança, segundo a passista, é uma das maiores expressões culturais, e o samba transmite as origens e a alegria do povo preto. “Muitas crianças crescem aqui dentro, e elas aprendem a não ter vergonha da cor, do cabelo ou da sua cultura”, completa.

O vice-presidente da entidade, Cassius Silva, reitera o compromisso da Cruzeiro com o resgate histórico da comunidade. “Uma parte do nosso samba-enredo atual fala ‘quando as ruas se formavam, eu estava lá / Quando a cidade nascia, eu estava lá.’ Trouxemos esse tema para dar um contraste da ideia que foram os imigrantes alemães sozinhos que construíram Novo Hamburgo”, observa. Cassius também é um dos idealizadores do Museu do Samba do Rio Grande do Sul, projeto em fase inicial de desenvolvimento, que busca valorizar e contar a história do samba, das tradições e da luta do povo preto que mantém essa cultura viva. “É um projeto sonhador, pensado com carinho e respaldo para trazer o olhar histórico dos nossos precursores”, destaca.

Na sede da Cruzeiro, as aulas de samba e os murais do samba-enredo integram a programação cultural aberta à comunidade. Foto: Gabriela Panassal

Aí Vem os Marujos

Vizinho do Primavera, o bairro Boa Saúde abriga a segunda sociedade negra mais antiga da região. Fundada em 1951 como bloco carnavalesco, a Sociedade Recreativa Aí Vem os Marujos é uma dissidência da Cruzeiro, com sua origem também vinda da Rua da Limpeza. Com 74 anos de história, o espaço é um verdadeiro exemplo de resistência cultural. Há mais de quatro décadas no Parque do Trabalhador, em espaço cedido pela Prefeitura, a escola de samba já enfrentou diferentes desafios: funcionou em um antigo estábulo, sobreviveu a um incêndio e, no início deste ano, recebeu uma notificação de despejo.

O atual presidente, Fábio Lima, mais conhecido como Bilaco, cresceu dentro do galpão e hoje lidera o processo de reconstrução da sede: “A gente está buscando a realocação da Marujos como um espaço cultural para a população, com projetos como o Samba no Mar e várias reformas. Uma entidade que passou 15 anos fechada, reunir no primeiro evento de reabertura 300 pessoas é incrível. Tudo com recursos próprios e muito esforço coletivo.”

Isabel Milano e Fábio “Bilaco” Lima são vozes centrais na preservação da cultura nos espaços que ocupam. Foto: Gabriela Panassal

Parte importante para preservação da memória e da criação de um vínculo com as origens são as crianças. Em outubro, a sociedade recebeu mais de 120 crianças dos bairros Rincão, Primavera, Boa Saúde e Petrópolis em uma ação especial, reafirmando sua missão de promover educação, arte e inclusão por meio de iniciativas comunitárias. “Para mim, hoje, a importância da Marujos está em muito mais do que um desfile. Ela é primeiro uma escola, que deixa legado e ensinamentos”, reflete Bilaco. “Aqui, a primeira coisa que aprendemos é o respeito pelos mais velhos. Daí vêm as baianas, as mães do samba, que cuidam do sagrado, do axé e passam adiante a memória das agremiações”.

E assim, para os representantes desses espaços, as manifestações culturais e a presença do povo preto na região vêm sendo ressignificadas. “Com esforço coletivo, eu vejo porque temos trabalhado nisso”, completa Bilaco. Com o tempo, o que começou como refúgio se transformou em ponto de encontro, e os espaços criados pela população negra passam a acolher todas as origens. Agora, as reivindicações são pelo reconhecimento desses territórios tão importantes quanto qualquer outro espaço de cultura da cidade.

Essa luta, porém, acontece em um cenário desafiador. Desde o final de 2024, Novo Hamburgo enfrentou dois decretos de calamidade pública, o que impactou diretamente o setor cultural por conta de uma norma municipal que proíbe o uso de recursos públicos em eventos festivos durante períodos de emergência. A medida resultou no cancelamento de diversas atividades, inclusive do carnaval de 2025.

Apesar do fim do decreto em outubro deste ano, ainda não há garantias sobre a realização da festa no próximo. Mesmo assim, Cruzeiro e Marujos seguem mobilizadas. “Se não for com incentivo público, a gente faz com os nossos braços, com a nossa comunidade, que é muito forte também”, afirma Cassius Silva. Em meio às incertezas, permanece a convicção de que o samba, a memória e o que foi construído em comunidade são forças que ultrapassam as dificuldades e continuarão existindo e resistindo.

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