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O galpão que respira histórias

Como a Twin Vídeo transformou 34 anos de sobrevivência física em tradição e culto ao garimpo

Em um mercado em que o físico se tornou exceção, sobrevivem apenas os negócios capazes de transformar nostalgia em proposta de valor. O comércio de DVDs e Blu-rays encolheu no Brasil por mais de uma década, esmagado pelo streaming e pela pirataria. Mesmo assim, um nicho persistiu: colecionadores fiéis, consumidores que valorizam o objeto, o extra, a edição rara e, sobretudo, a experiência de garimpar.

Localizada na Av. João Wallig, 73, a Twin Vídeo ocupa um galpão imponente de dois andares que abriga uma loja relíquia de Porto Alegre. Ao entrar, percebe-se rapidamente que, apesar do espaço amplo, ele se torna pequeno diante dos mais de 100 mil itens do acervo. Muitos DVDs estão empilhados no chão, reunidos em caixas; outros descansam sobre cadeiras espalhadas pelo ambiente.

O primeiro andar é um espaço estreito, tomado por prateleiras e corredores apertados. A subida pela escada — que também exibe itens ao longo de sua lateral — leva ao segundo piso, um ambiente um pouco mais amplo, mas igualmente abarrotado de produtos à espera de serem garimpados. Ao caminhar por lá, é possível sentir e ouvir a madeira rangendo, lembrando que a loja ocupa esse galpão há cerca de 25 anos. A Twin Vídeo não é apenas uma loja: é um organismo vivo, um galpão que respira. Quem entra percebe imediatamente: é como atravessar uma fronteira temporal, dessas que não aparecem nos mapas, mas se revelam no toque das caixas, no cheiro de papel antigo, na textura das fitas e nos corredores estreitos, porém abarrotados de produtos. 

A Twin Video é um dos maiores acervos de Porto alegre, com salões repletos de DVDs que vão até o teto, enquanto preenchem as paredes da loja. – Foto: Pedro Curi.

De garagem ao galpão

Porém, a Twin não nasceu no endereço em que atua hoje, ela foi fundada em 1991, ainda como videolocadora, ocupando uma garagem no bairro Santo Antônio. Era quase uma aventura doméstica tocada por Denise Franco e o marido Francisco Franco, que ainda eram namorados na época. Com o entusiasmo genuíno de quem ama cinema e histórias, eles não sabiam que a loja que nascia ali, cresceria rápido e de um jeito próprio.

O nome Twin Vídeo nasceu de um detalhe curioso da vida pessoal dos donos. Francisco conta que ele e Denise são geminianos e que, por isso, quiseram brincar com a ideia no nome da loja. “Nós dois somos de gêmeos, signo de gêmeos, aí para não colocar ‘gêmeos’, que é uma coisa comum, colocamos em inglês”, explica. Assim surgiu o Twin, uma solução simples e sonora.

Nos anos 1990, locadoras viviam sob a lógica do lançamento único: um filme recém-chegado rendia semanas de espera. A Twin percebeu cedo que aquele modelo travava mais do que atendia. Em vez de comprar uma fita por título, arriscou comprar 10, 20, 30. Foi essa ousadia e leitura de mercado que ajudou a Twin a dar seus primeiros passos para se destacar no mercado, logo no começo.

Com o acúmulo de acervos, nasceu naturalmente um segundo braço: a revenda de filmes usados para outras locadoras menores. A Twin, sem planejar, virou rede. Prosperou, se expandiu e quando o digital chegou para engolir as videolocadoras, ela foi ficando, teimosa, pois os donos sempre acreditaram que tinha um nicho nesse local.

A pirataria, os streamings, a queda das grandes distribuidoras… tudo empurrou o setor para o colapso. Locadoras desapareceram uma a uma. A Twin seguiu aberta até a pandemia, quando ainda operava como locadora, sustentada por um público fiel, apaixonado por lançamentos e ritual de pegar filmes na mão.

Mas o mercado mudou mais uma vez. Quando as produtoras pararam de fabricar DVDs e Blu-rays no Brasil, o perfil de cliente também se dividiu. Quem queria novidades não encontrava mais. Quem buscava raridades, sim. A Twin entendeu que era a hora de mergulhar no nicho dos colecionadores.

Foi sua segunda reinvenção.

É comum se perder por horas na loja procurando por DVDs espalhados na Twin Video. – Foto: Pedro Curi.

A engrenagem do galpão

Manter mais de 100 mil itens circulando em pleno 2025 é um desafio logístico. Mas a Twin encontrou um modelo de abastecimento tão orgânico quanto seu próprio público. Quando as locadoras começaram a fechar, ainda na virada dos anos 2000, Denise e Francisco percorriam cidades, garagens e depósitos comprando acervos inteiros. Com o objetivo de resgatar coleções prestes a desaparecer.

Hoje, sem locadoras para arrematar, o reabastecimento vem de outro fluxo, o próprio colecionador. O cliente que troca o DVD pelo Blu-ray. O herdeiro que aparece com caixas de vinis que não quer manter. O apaixonado que decide renovar a estante ou abrir espaço em casa. A Twin compra, negocia, aceita trocas e incorpora tudo ao acervo.

Porém, para conhecer a loja, quase sempre é preciso ouvir a recomendação de alguém ou esbarrar no perfil do espaço no Instagram. Eles mantêm firme a essência do presencial, oferecendo atenção direta a quem chega até o galpão. Embora muitos perguntem nas redes se existe site, catálogo ou envio para fora de Porto Alegre, os donos insistem em preservar o atendimento humano, o olho no olho, onde o cliente precisa caminhar pelos corredores, procurar, garimpar e se surpreender. Não há uma ficha com tudo o que existe no acervo, para eles, essa é exatamente a graça: deixar que cada visita revele descobertas que só acontecem dentro da loja.

Os produtos na Twin começam na faixa de R$ 2, especialmente concentrados no segundo piso, onde ficam as ofertas de menor preço. A partir daí, os valores sobem para R$ 5, R$ 10 e R$ 20, compondo a maior parte do fluxo diário de vendas. Paralelamente, o estoque inclui edições mais raras e box sets completos, que podem ultrapassar os R$ 100 por reunirem temporadas inteiras, versões de colecionador ou itens extras como camisetas, relógios e outros. É uma estrutura que combina acessibilidade com a demanda crescente por itens exclusivos, acomodando tanto quem busca apenas ampliar a coleção quanto quem procura peças mais valiosas e difíceis de encontrar.

A lógica de preços também segue um raciocínio próprio. Francisco afirma que cada item é definido pela combinação entre raridade e custo de entrada no acervo. “É pela relíquia e pelo preço que entrou”, diz. Embora observem o mercado de colecionadores, o critério central é o valor histórico e a dificuldade de reposição: “Às vezes eu tenho produtos que são mais raros, aí é um pouco mais caro”. Para encontrar esses títulos, a Twin não depende apenas das trocas feitas pelos clientes. Francisco viaja por outros estados, “a gente vai atrás, vai pra Santa Catarina, Paraná”, comprando acervos particulares, lotes herdados ou coleções inteiras prestes a serem desfeitas.

Francisco é um dos responsáveis pela loja, e é um dos gêmeos que dá o nome da Twin para a loja. – Foto: Pedro Curi.

Personagens do galpão

Nos últimos anos, a loja tem visto um movimento que surpreendeu até seus donos: a presença constante de um público cada vez mais jovem. O espaço, antes frequentado quase exclusivamente por quem viveu a era das locadoras, agora recebe adolescentes e jovens adultos circulando entre prateleiras de VHS, CDs e vinis como quem descobre um terreno desconhecido. Para muitos deles, o fascínio está justamente no contato com algo que não pertence à sua geração, o objeto físico, o toque, a sensação de encontrar um título perdido no meio das estantes.

Esse interesse renovado não aparece apenas no consumo. Estudantes de cinema procuram as fitas para experimentações, pesquisas e até trabalhos acadêmicos. Bandas de rock entram na loja pedindo para gravar ali mesmo, aproveitando o cenário cheio de capas, lombadas e cores que dão ao ambiente uma estética difícil de reproduzir artificialmente. A própria equipe já viu o espaço se transformar em set de filmagem, reforçando como os jovens têm ressignificado o lugar: não só como ponto de compra, mas como território cultural que abriga diversas histórias diferentes.

Apesar de o carro-chefe continuar sendo o acervo de filmes, a música tem ganhado força entre essa nova geração. Vinis, CDs e até fitas cassete, antes consideradas peças de museu, voltaram a sair com frequência das prateleiras. A busca vem embalada por curiosidade, experimentação e, em muitos casos, pela vontade de fugir da lógica digital. Enquanto alguns clientes chegam guiados pela nostalgia, os mais novos chegam movidos pela descoberta — transformando a loja em um espaço onde passado e presente dividem o mesmo corredor.

Pablo Rocha não é um colecionador, mas gosta de ir até a loja garimpar, hobby que já passou ao filho. – Foto: Pedro Curi.

Um desses exemplos que vieram pela parte musical é Pablo Rocha, frequentador há cerca de dois anos da loja, por indicação de um amigo, e ficou. Prefere mídia física ao streaming e se considera colecionador, do tipo que chega sem pressa, disposto ao ritual do garimpo. Para ele, o acervo é “fantástico”. Seus hábitos são simples, diretos: entrar, procurar novidades, encontrar o que não existe mais nas plataformas digitais e sair como quem tivesse encontrado uma memória antiga que há tempos não era resgatada.

Francisco Cunha, de Viamão, representa outro tipo de cliente, o de longa data. Conheceu a Twin “lá no começo”, quando ainda era locadora, e viu de perto a transição para o modelo exclusivamente de venda. Frequenta a loja há cerca de seis anos, principalmente quando procura algo que os serviços de streaming não oferecem. “Eu procuro filmes que não encontro nos streamings”, afirma. Usa as plataformas digitais, mas não abre mão da mídia física, sobretudo quando o título tem valor afetivo. “Pra quem é mais da nostalgia, é outra coisa ter o filme na mão.”

O interesse de Francisco se volta principalmente ao cinema gospel, e por isso costuma chegar com títulos específicos em mente. Ainda assim, admite que “ao longo da visita, a gente acaba garimpando e achando coisas”. Reconhece que o acervo é vasto, “é muita coisa, mas é fantástico”. Visita a Twin cerca de uma vez por ano, quase sempre quando precisa de algo especial ou quer presentear alguém. Para ele, a Twin não é apenas um ponto de compra: é um raro espaço onde o físico ainda preserva o que o digital não dá conta de guardar.

Fransico Cunha relatou que procura produtos religiosos, evangélicos e costuma encontra-los apenas na Twin video. – Foto: Pedro Curi.

A Twin Vídeo, esse galpão que respira histórias, não abriga apenas as ficções impressas em DVDs e Blu-rays, mas também as histórias reais de quem passa por ali, clientes antigos que acompanharam a transição da locadora para a loja, jovens que descobrem no físico uma experiência nova, colecionadores que garimpam como ritual e visitantes ocasionais que encontram algo inesperado nas prateleiras apertadas. Cada pessoa que circula por seus corredores deixa um fragmento de memória, e é justamente essa mistura de vidas, gostos e trajetórias que mantém o lugar pulsando. No fim, a Twin não sobrevive apenas por vender filmes: ela continua viva porque se tornou parte da história daqueles que a frequentam.

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