“O Fêmina é a mãe de todas”: as histórias do hospital voltado ao atendimento de mulheres em Porto Alegre

O percurso e os desafios do primeiro hospital a atender exclusivamente mulheres no Rio Grande do Sul

Um minuto pode mudar tudo. Dentro de um hospital, esse tempo carrega ainda mais peso. Pode ser a chegada de uma notícia, o início de uma vida, ou uma decisão que não pode esperar. Agora imagine o que pode caber em 29.949.720 minutos, o tempo exato que compõe os 57 anos de história do Hospital Fêmina, instituição voltada para o atendimento de mulheres em Porto Alegre. Ainda que tenha sido inaugurado oficialmente apenas em 1973, isso também já seria tempo suficiente para ver gerações nascerem e histórias se cruzarem. Tempo para que mulheres que nasceram ali voltassem, anos depois, para caminhar nos mesmos corredores. Mulheres que passaram por ali como pacientes retornassem como médicas, enfermeiras, técnicas e auxiliares.

O Hospital Fêmina é referência em saúde da mulher e oferece atendimento 24 horas, totalmente pelo SUS / BÁRBARA CEZIMBRA / BETA REDAÇÃO

O começo disso tudo já dizia muito. O primeiro nascimento registrado no Fêmina, em 1968, foi de uma menina, Vilma Helena. Não é que tenha sido planejado, tampouco poderia ter passado despercebido. Afinal, em um espaço pensado para acolher a saúde feminina, começar com o nascimento de uma mulher foi algo extremamente simbólico. A menina não seguiu na área da saúde, formou-se como advogada. Se tivesse o feito, aí sim, seria quase “perfeito demais”. Contudo, esse enredo coube à paciente Gabrielle Bocchese da Cunha, que nasceu em abril de 1969 e, 25 anos depois, retornou ao hospital, dessa vez para cumprir a sua residência médica. Ambas têm parte de sua história registrada e eternizada na primeira revista produzida pelo hospital, publicada em 1995.

Passaram-se 30 anos desde sua última (e única) edição, o que não significa que a história parou. Ela continua sendo escrita todos os dias por funcionárias que viram colegas se aposentar, mudanças na direção, novos protocolos. Não por comodidade, mas por vínculo.

O hospital como resultado do trabalho de muitas

Dos 57 anos de existência, 45 deles podem ser contados por Joana Darc Jobim. Formada em Serviço Social, Joana exerceu diferentes papéis ao longo de sua carreira, construída majoritariamente dentro do hospital. Ainda que deixe claro que se entregou e tem muito carinho por todos os postos que já ocupou, dentre eles o atual como técnica administrativa, o que mais a marcou foram os 14 anos no Hospital-Dia de Infectologia, pertencente ao Fêmina. Lá, não só assistia diretamente pacientes em um dos momentos mais delicados de suas vidas (a descoberta do HIV durante a gestação), mas também participava de pesquisas internacionais e publicações científicas.  

Após dedicar 45 anos de sua vida ao Hospital Fêmina, Joana Jobim está prestes a se aposentar / BÁRBARA CEZIMBRA / BETA REDAÇÃO

Uma dessas pesquisas, Joana fez por iniciativa própria para entender como essas mulheres que não poderiam amamentar se sentiam em relação a isso. “Me encarnei, como uma paciente, entrei lá na frente do hospital e fui passando por todos os setores, etapa por etapa, para ver como que elas se sentiam. Descobri que é como uma avalanche. A pessoa fica totalmente desestruturada. Acham que são mães ruins por não poder amamentar”, explica. Além dos projetos com os quais se envolveu dentro do hospital, em 2017 escreveu e publicou o livro Que Dor é Essa?, que traz histórias que viveu ao longo de sua carreira dentro do Fêmina.

De tarefas administrativas ao cuidado na cozinha

Há 19 anos trabalhando na nutrição do Hospital Fêmina, Kelly Dutra conhece os bastidores da rotina como poucas. Sabe quando o cardápio precisa ser adaptado por falta de equipe, entende o impacto da temperatura sobre a produção das refeições e, principalmente, acompanha de perto o que significa cuidar de vidas em um hospital dedicado à saúde da mulher.

“Meus três sobrinhos nasceram aqui. O Luiz Renato, o Ícaro e o João. Foram crianças que pude acompanhar desde o pré-natal”, conta. Também lembra do afilhado, hoje com 18 anos: “Trouxe a mãe dele para dar à luz aqui. Fui a primeira a pegar ele no colo depois da mãe”. As lembranças atravessam o tempo e tornam o Fêmina um lugar que ultrapassa o contexto profissional para ela, é também afetivo e familiar. Ao longo dos anos, viu muita coisa mudar. Outras, no entanto, acredita que permanecem essenciais. “O que nunca vai mudar é a nossa gestão 100% SUS. Acho muito importante termos um hospital dedicado e especial para a saúde do trato feminino.” Para Kelly, essa característica representa um compromisso que precisa ser preservado.

Entre as atividades de Kelly está a preparação não só da alimentação dos pacientes, mas também dos funcionários do Hospital / BÁRBARA CEZIMBRA / BETA REDAÇÃO

Mesmo com esse reconhecimento, ela aponta que nem todas as equipes são vistas com a mesma valorização dentro da estrutura. Ela gostaria que o setor de nutrição fosse mais respeitado e valorizado por todos os colegas. “Ainda sinto uma desvalorização do nosso trabalho”, diz. O comentário vem carregado de exemplos cotidianos. Ao refletir sobre o que deixa como legado no hospital, Kelly não pensa duas vezes ao dizer que gostaria de ser lembrada como uma funcionária dedicada e colaborativa.

O valor do tempo e da companhia

Clair Fogaça é mais uma dessas mulheres que carregam não apenas anos de trabalho, mas também vínculos e memórias que se misturam com as paredes do lugar onde dedicou 37 anos de vida. “Minha história se confunde com a história do Fêmina. Fiz minha vida toda aqui. Tive meus filhos enquanto trabalhava neste hospital. Tudo aconteceu nesse período”, reflete, com um tom de nostalgia que não esconde o orgulho. Aos 22 anos, ela começou no hospital e, desde então, viu o ambiente, as pessoas e até ela mesma mudar. Mas, ao seu olhar atento, algumas transformações são mais profundas do que outras.

Clair pertence a uma geração que, segundo ela, vinculava-se de forma diferente ao trabalho. “Eu trabalhei por muitos anos com as mesmas pessoas. Aqui sempre teve pouca rotatividade, era comum conviver com os mesmos colegas por décadas. Isso criava um vínculo, uma conexão que ia além do profissional. Hoje, percebo que é diferente. As pessoas têm menos apego, tanto ao lugar quanto aos outros”, diz. Ela hesita ao tentar definir essa mudança como algo ruim, mas admite que sente falta de um tempo em que o trabalho também era um espaço de relações mais profundas.

Mesmo sem ter contato direto com os pacientes, Clair sentiu a necessidade de fazer terapia para saber lidar com a rotina hospitalar / BÁRBARA CEZIMBRA / BETA REDAÇÃO

Organizada e meticulosa, Clair é movida por uma rotina que reflete sua dedicação. Chega antes do horário, prepara o café, revisa suas metas do dia para só então começar o trabalho. No faturamento, ela é responsável por fechar as contas hospitalares. Embora não tenha contato direto com os pacientes, Clair sente o peso emocional de seu trabalho. Ao lidar com prontuários de casos complexos, como os de oncologia, ela é tocada pelas histórias que lê. “É impossível não se afetar. Ver mulheres cada vez mais jovens enfrentando doenças graves é algo que me marcou muito. Muitas vezes, não é falta de cuidado, mas falta de acesso. Isso mexe com a gente”, complementa.

Quando fala sobre sua relação com o hospital, ela não economiza em gratidão: “Dei muito de mim e recebi também. Não foi tudo perfeito, mas foi uma relação de troca. Quando eu for embora, vou sentir saudade, pelas pessoas e por tudo o que vivi aqui.” A aposentadoria já ocupa seus pensamentos. Ela espera que, quando chegar o momento, esteja saudável para aproveitar a nova fase com a mesma dedicação que sempre teve no trabalho.

Histórias para além do plantão

Há cerca de dois anos, Fernanda Brazeiro Lemos iniciou sua trajetória no Fêmina, onde teve contato com diversos setores, desde internação, ambulatório até a maternidade. No entanto, foi no quinto andar, na oncologia, que ela viveu uma das histórias que mais a marcaram. “Trabalhar na oncologia é difícil, o profissional tenta não criar vínculo, mas acaba criando”, revela Fernanda, destacando a fragilidade e o impacto emocional inerentes a esse campo.

Foi justamente nesse ambiente que ela desenvolveu uma relação especial com uma paciente, uma mulher diagnosticada com câncer de mama. A paciente permanecia muitas vezes sozinha, já que a filha, responsável pelo cuidado, precisava trabalhar, e Fernanda se tornou uma companhia constante. “Eu ficava conversando com ela durante o turno, acabamos criando um vínculo.” A conexão entre as duas se tornou ainda mais intensa em um episódio que ficou gravado na memória da enfermeira: o pedido da paciente para que ela raspasse sua cabeça.

“Foi um momento que me marcou muito. Mesmo tentando separar o lado profissional, é difícil. Ela confiava em mim, não queria que a filha passasse por aquele momento.” Fernanda descreve a complexidade desse pedido, que carrega uma mistura sentimentos. “Esse pedido não veio carregado de tristeza, mas de esperança. Ela sabia que a queda de cabelo fazia parte do tratamento e queria passar por aquilo com confiança”, complementa. Atualmente, a enfermeira está gestante, fato que a afastou do contato direto com os pacientes, sendo realocada para o setor administrativo. Mesmo assim, ela ressalta que a experiência na oncologia foi muito importante.

“Esse momento ficou muito marcado para mim porque, apesar de ser só minha paciente, somos humanas, e esse tipo de situação envolve muito sentimento.” Esse relato expõe a dimensão emocional que ultrapassa o aspecto técnico da profissão, escancara o desafio de equilibrar o cuidado profissional e o vínculo humano em situações delicadas, como o tratamento do câncer.

O hospital que nasceu mais de uma vez

A história do Fêmina é marcada por diferentes interpretações sobre o seu ponto de partida. Embora a concepção da instituição remonte a 1954, com a criação da sociedade anônima e o registro do projeto no ano seguinte, a construção enfrentou entraves financeiros e só começou a funcionar em 1968, ainda de forma parcial, sem uma inauguração oficial. Já em 1973, com a conclusão das obras e a mudança no controle acionário, o hospital passou a operar com sua estrutura consolidada, o que leva muitos a considerarem esse o ano oficial de início das atividades.

Hoje, o Fêmina é referência em atendimentos voltados à saúde da mulher, com serviços que abrangem ginecologia, emergências, internações clínicas e neonatologia. Desde a criação de um prédio exclusivo para oncologia no Hospital Conceição, toda a demanda oncológica foi centralizada lá, enquanto os atendimentos ginecológicos foram transferidos para o Fêmina. Além disso, após as enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul em 2024, o hospital passou a absorver temporariamente outras demandas gerais relacionadas à saúde das mulheres, reforçando seu papel estratégico na rede pública.

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