Estado, que tem o maior número de variações regionais do idioma no país, busca sensibilizar pais e filhos sobre importância de perpetuar esse conhecimento

Entre as mais de 250 línguas faladas no Brasil é possível encontrar 14 variações do alemão, estando a maioria concentrada no Rio Grande do Sul, estado com a maior presença do idioma. O mapeamento, realizado pelo Atlas Linguístico-Contatual das Minorias Alemãs na Bacia do Prata (Alma), projeto desenvolvido de forma conjunta pelo Instituto de Letras da UFRGS e a Christian-Albrecht-Universität de Kiel (Alemanha), ajuda a dimensionar a importância do elemento linguístico na preservação da cultura germânica no Estado. 

“Muitas pessoas enxergam a língua apenas como um sistema para se comunicar. Mas é muito mais do que isso. A língua é uma identidade”, afirma o coordenador do projeto Alma pela UFRGS, Cléo Altenhofen. Com pós-doutorado em Germanística (área que estuda o alemão), ele destaca a vitalidade do idioma nos municípios gaúchos, algo incomum por se tratar de uma língua minoritária, ou seja, não oficial. “As línguas, por natureza, não são eternas, elas se mantêm a partir dos falantes. O alemão fica muito restrito à comunidade e às famílias, então é natural que se perca entre as gerações”, diz.   

Em 2018, Altenhofen (à direita) coordenou a produção do documentário “Viver no Brasil falando Hunsrückisch”. (Foto: Reprodução CDEA/UFRGS)

Um dos fatores que contribuíram para a longevidade da língua alemã é o modo homogêneo de colonização da região sul do país, retardando o contato dos imigrantes com a língua portuguesa. Apesar de compartilharem aspectos culturais (religião, costumes), cada grupo trouxe diferentes bagagens linguísticas – pois não vinham da mesma região da Alemanha – que a partir do convívio em comunidade resultaram em variações regionais (gaúchas) da língua alemã. “Um percentual dos imigrantes sabia ler, então tinham duas variedades: o escrito e o falado. Todos vieram com o seu repertório, conforme a origem. E aí ocorre um processo de nivelamento pela interação”, explica Altenhofen.  

Outro fator de preservação da língua germânica envolve aspectos de ordem utilitária e técnica, que, segundo a professora de alemão do Instituto Goethe de Porto Alegre Esterles Roese, são os principais motivos de os jovens buscarem pelo curso de idioma. “O grande interesse é profissional, pelo que a Alemanha tem a oferecer em termos de cultura, tecnologia e carreira. Existe também um desejo de amadurecimento pessoal, a partir de uma experiência internacional”, explica a docente.

Em se tratando do ensino, Esterles acredita que o desafio do alemão, assim como de todo idioma estrangeiro, está em aprender a sua melodia. “Não é simplesmente falar. As palavras adquirem diferentes significados conforme a entonação.” Segundo ela, gramática, uso de preposições, palavras compostas e declinações (nominativo, acusativo, dativo e genitivo) são características que mais assustam os alunos no primeiro contato com o idioma, mas a principal dificuldade está em decorar o gênero das palavras. Isso mesmo, decorar.  

“Dentro da língua, o que tem regra, mesmo que seja um pouco mais complexo, a pessoa se senta, treina e automatiza. Mas no caso do gênero da palavra, não tem regra no alemão. Se em português mesa é uma palavra feminina, no alemão é masculina. Quando você erra o gênero, erra toda a declinação da frase, por isso os alunos ficam realmente chateados. E esse aprendizado só a vivência com a língua te dará.” No entanto, a professora garante que para quem se desafia no idioma, o processo é transformador.

Foi o que fez a sul-mato-grossense Acácia Hagen, há 40 anos, enquanto esperava a aprovação do pedido de transferência do curso de Medicina para o de História na UFRGS. Um momento de romper padrões e assumir o controle daquilo que ela queria, tanto na vida acadêmica como pessoal. “Não tive contato nenhum com a língua alemã na infância ou adolescência. Naquele semestre fiquei sem muita atividade, então resolvi estudar alemão, mais como um desafio, descobrir algo novo, fazer o que eu achava legal.”  

Por motivos financeiros, a servidora pública precisou interromper os estudos. Em 2019 retomou o curso, com o objetivo de incentivar os filhos a fazerem o mesmo. Com a pandemia de Covid-19, houve nova pausa e, agora, aos 63 anos e aposentada, Acácia voltou ao Instituto Goethe. “Estudo porque realmente gosto, é uma língua que me atrai. Acho que é exatamente por ser algo diferente e novo, um mistério que quero desvendar.”  

Acácia faz o curso de alemão no Instituto Goethe nos sábados pela manhã. (Foto: Enzo Aliardi/Arquivo pessoal)

Acácia não conseguiu fazer os filhos aprenderem a língua alemã. Ambos têm dupla cidadania, pelo lado paterno, mas se interessaram por outros idiomas. “Eles falam inglês, meu filho estuda chinês atualmente, e minha filha já estudou japonês, árabe e línguas mortas como sumério e acádio. Uma educação com vários idiomas abre muitas portas”, afirma a aposentada.

Essa realidade, de não conservação das variações regionais do alemão, é comum em muitas das famílias de descendentes. Um dos exemplos é o Riograndenser Hunsrückisch, termo cunhado pelo coordenador do projeto Alma, Cléo Altenhofen, para dar conta da readaptação do dialeto Husrequeniano em solo gaúcho. A variação sofre ameaça de extinção, segundo o Ethnologue, obra que cataloga, desde 1951, as línguas vivas conhecidas no mundo. “O imigrante chega monolíngue na sua língua. A próxima geração já se torna bilíngue. E a geração seguinte volta a ser monolíngue, mas na nova língua [português]”, explica o germanista.  

O fato de o português ser a base do sistema educacional, social e político do Brasil, bem como de as variações regionais da língua alemã não serem contempladas pelas instituições de ensino, acaba por desestimular pais e avós a ensinar o dialeto. Por isso, Altenhofen acredita que a rememoração do bicentenário da imigração alemã no Rio Grande do Sul, em 2024, é uma oportunidade de celebrar a riqueza linguística do estado, mas também de propor uma reflexão acerca do valor subjetivo da língua, sensibilizando pais e filhos a perpetuarem esse conhecimento.  

“A língua é um repositório da história. Toda palavra e frase que eu falo mostra de onde eu venho, o que eu sou, o que me formou. A gente não se dá conta, mas desperdiça a chance de aprender e ensinar gratuitamente um conhecimento, ainda mais um dialeto, que não poderá ser encontrado em escola alguma. A língua de casa, a materna, é a língua da afetividade.”  

Casa de descendentes alemães no Rio Grande do Sul e um dos locais utilizados na gravação do documentário “Viver no Brasil falando Hunsrückisch”. (Foto: Reprodução CDEA/UFRGS)

Um pouco de história 

Os primórdios da língua alemã são bem antigos, ainda do período antes de Cristo. Durante o Império Romano foram criados limites – no que hoje conhecemos como continente europeu –, a fim de dividir o mundo germânico do românico (que falava principalmente latim). “Até então se conhecia pouco dos germanos, acreditava-se tratar de um único povo, o que se mostrou um mito. Eles eram formados por várias tribos”, afirma o coordenador do projeto Alma, Cléo Altenhofen. Entre elas, saxões, francos, bávaros, sachsen etc., de onde vão surgir as primeiras variações da língua alemã.  

Já na Idade Média, com o incentivo do imperador Carlos Magno, muitos documentos e orações passaram a ser traduzidos do latim para o alemão, fortalecendo o idioma. “O alemão era a língua do povo, tanto que Deutsch tem esse significado, enquanto o latim era a língua do poder, da Igreja”, conta o germanista. Conforme ele, um dos períodos mais importantes, gramaticalmente, foi o século XIX, quando, na Índia, colonizadores ingleses encontraram manuscritos hindus com escritas similares ao grego e latim. “Descobriu-se que era um povo comum, pois não podia ser coincidência que na gramática houvesse verbos tão parecidos em lugares tão longe.”  

A partir desses estudos e comparações, estabeleceu-se a família linguística indo-europeia, da qual o alemão faz parte. Em paralelo, efervesciam o romantismo e o classicismo, difundiam-se a filosofia e a literatura, tornando a Alemanha o centro da gramática histórico comparativa e atraindo jovens pesquisadores de vários países. “Um deles [August Schleicher] começou a tentar criar uma árvore genealógica das línguas, inspirado em Darwin. Ele criou o braço das línguas românicas: português, espanhol, italiano, francês etc. E o galho das línguas germânicas: alemão, dinamarquês e inglês”, detalha Altenhofen.  

Conforme o germanista, esse contexto histórico ajuda a compreender a quantidade de variações da língua alemã no Brasil. “O primeiro grupo de imigrantes sai da Alemanha, em 1824, no auge dessa popularização da literatura. Era um período turbulento, de recrutamento de jovens que migram em busca de liberdade.” O segundo grupo viria cerca de 25 anos depois, já alfabetizado, escrevendo e falando o alemão padrão. “Assim, a língua e os costumes do primeiro grupo sofrem mudanças com as inovações trazidas pelos novos imigrantes.”  

Mas, em meio a tantas variedades linguísticas, há um alemão certo e um errado? A resposta do professor Cléo Altenhofen é não, em se tratando de linguística, tudo é valioso. “A língua uniforme é um mito, pois ela é viva. Homens e mulheres são diferentes, há mudança de gerações e, por consequência, de termos.  O certo é ser plurilíngue, plurivarietal. Pode-se escolher em meio ao vasto repertório, formado por todas as nossas experiências, o que mais se adequa à situação.”