A afirmação é da Paolla Dias, entusiasta e praticante do esporte, que já soma mais de um milhão e seiscentas mil mulheres adeptas no Brasil 

Imaginar que a presença feminina na cena do skate é algo recente é como apagar da memória a trajetória de mulheres que, mesmo sem o devido espaço e reconhecimento, desafiaram as ruas desde a chegada do esporte ao Brasil. Contudo, é impossível negar que nos últimos anos o skateboarding tem ganhado cada vez mais destaque, seja pela disseminação em massa dessa cultura através das redes sociais, ou então pela sua recente inclusão nos jogos olímpicos. 

Em Porto Alegre, o cenário não é diferente. Isso porque desde a construção e inauguração da Pista Rochelle Benitez, apontada como a maior pista de skate da América Latina, a prefeitura pretende transformar a capital gaúcha na também capital nacional do skate. Afinal, esses espaços têm se tornando palco na vida de milhares de pessoas, como é o caso de uma das parceiras do coletivo Girls Skate Power, Paolla Dias. “A importância que o skate tomou na minha vida foi de verdade. Ele me salvou”, revela. 

O coletivo Girls Skate Power 

O grupo surgiu em 2015 e hoje tem como principal objetivo reunir meninas e mulheres de todas as idades para praticarem o esporte juntas, independentemente do nível de experiência de cada uma. 

“Quando eu entrei, em 2017, ainda era um grupo muito fechado. Não tinha diversidade. As meninas do street não se sentiam representadas. As gurias da downhill não se sentiam confortáveis”, relembra Paolla. Mas, não demorou muito para que esse cenário mudasse. Aos poucos, mais e mais meninas chegavam ao coletivo para participar ou ao menos saber o do que se tratava.  

“O rolê feminino cresceu muito, então a gente foi se aproximando das meninas, na pista mesmo, na cara dura, dizendo ‘gurias, a gente tem um coletivo! Vou te colocar no grupo do WhatsApp. Segue lá no Instagram’ e assim o grupo foi ficando mais forte e as meninas mais unidas”, complementa. 

A vida na pista e na rotina

Por ser um grupo com mulheres de diferentes idades, elas se encontram em momentos diferentes de suas vidas. Ou seja, enquanto algumas ainda estão na rotina do colegial, outras já estão mergulhadas no mercado de trabalho. Isso, segundo Paolla, torna mais complicada a organização de eventos e a regularidade dos encontros. “A gente está num momento de muita correria na vida. As outras meninas, as mais novas, a gente as incentiva a cuidarem da página, ajudarem a organizar os eventos. Mas, elas ainda não querem essa responsabilidade. E está tudo bem”, explica Paolla. 

Desde 2017, anualmente eram organizados esses eventos, pensando na inclusão e participação de todas. Como é possível ver na foto a seguir, a cada ano que se passava o coletivo só crescia. Mas, justamente pela falta de compatibilidade entre as rotinas, somada ao exaustivo processo de conseguir apoio e patrocínio, aos poucos foi desmotivando a continuação das iniciativas. “Eu me sinto cansada. Ser resistência cansa”, desabafa Paolla. 

“É muito legal a gente se sentir acolhida num esporte que é predominantemente masculino” diz Paolla Dias. (Fotos: Arquivo pessoal/Paolla Dias) 

Manobrando as barreiras  

Apesar do crescimento notável, as skatistas ainda enfrentam o sexismo que persiste em vários aspectos do esporte, desde comentários depreciativos até a falta de igualdade de oportunidades em competições e patrocínios. “Enquanto o cara estala o dedo, diz que quer fazer um campeonato e chove marcas apoiando, para as meninas a gente tem que ficar seis meses recolhendo verba pra se sentir mais seguras de que todas vão se sentir valorizadas no nosso evento”, enfatiza Paolla. 

Segundo ela, “o campeonato feminino tem uma organização por trás muito maior e tem um desgaste muito maior perto do masculino”. Além disso essas mulheres enfrentam a pressão de provar seu valor repetidamente. Ou seja, o estigma de que skate é um esporte para homens persiste em certos círculos. “Desde os campeonatos pequenos aos campeonatos grandes, a gente não é respeitada enquanto categoria. As vezes deixam as meninas correrem só uma ou duas vezes. Enquanto os homens, nem sei, tem cinco chances na vez deles”, complementa.  

Skate e igualdade: elas não se calam!

Neste sentido, o coletivo Girls Skate Power também é um espaço de denúncias – ainda que não sejam formais – mas que servem de alerta, não só para as skatistas, mas para toda a comunidade do esporte.  

Em maio, um evento na pista da Orla do Guaíba promovido por algumas marcas conhecidas por estarem ligadas a cena do skate gerou indignação entre as competidoras. A ocasião em questão estava marcada para uma segunda-feira no fim da tarde, o que dificultaria a participação de muitas meninas na competição, uma vez que muitas delas trabalham e estudam neste horário.  

“Entramos em contato com eles por conta do horário que a maioria trabalhava e, então, eles asseguraram que as meninas poderiam ir. E eu fui uma que saiu correndo do trabalho lá de Cachoeirinha, para estar presente”, conta Paolla. Além disso, ela fala sobre toda a logística que cada uma das meninas teve que organizar para ir, e que claro, envolveram custos de locomoção, por exemplo. “Quando chegamos lá ficaram enrolando, enrolando, enrolando e não teve a categoria feminina (que estava prevista) e em troca nos deram adesivos”, complementa. 

Coletivo cria espaço virtual para denúncias no Instagram  
(Foto: Reprodução/coletivo) 

Depois do ocorrido, as meninas se sentiram lesadas e resolveram expor toda a situação nas redes sociais. Com a repercussão do caso, uma das marcas organizadoras entrou em contato com o coletivo se retratando pelo ocorrido e marcando um novo evento em um novo local. 

A percepção de casos recentes como este, Porto Alegre – assim como qualquer outra cidade que queira se tornar um polo do skate – ainda precisa trabalhar (e muito) para estimular a igualdade de gênero dentro do esporte. 

Coletividade além das pistas  

“Quando a gente entende a nossa coletividade, e eu acho que é isso que é o principal benefício, a gente se entende como parceiras e não como inimigas”, destaca Paolla. 

“O skate é um esporte que a gente anda individual, mas ao mesmo tempo, coletivamente”, afirma Paolla. 
(Foto: So.Registro) 

Proteção. Escuta. Risadas. Acolhimento. Celebração. Segundo Paolla, estas são as melhores partes em estar cercada de mulheres que vivem o skate. Ela ainda fala sobre poderem passar por todas essas dificuldades juntas, pois não estão sozinhas na cena. 

“Este acolhimento entre as meninas vai além do skate. Quando uma termina o namoro, quando uma está gostando de alguém, quando quer passar no vestibular, entre outros assuntos. A gente debate sobre dores, coisas que, talvez, entre os homens, não aconteça. Acho que é isso o que une”, complementa. 

O skate como ferramenta transformadora  

O poder transformador do skate também teve impacto direto na vida de Paolla. Assim como muitas mulheres, o esporte já chamava a sua atenção desde muito nova. Porém, vivendo no interior boa parte de sua vida, em Uruguaiana, o skate que já era muito marginalizado – principalmente se falando de mulheres andando – lá era ainda mais. “Eu tinha este interesse, mas não desenvolvia porque achava que não era algo para mim. Naquela época, realmente ouvia essas palavras”, relembra. 

Depois de adulta, Paolla viu outras prioridades ocuparem um espaço importante em sua vida. “Entrei nesta paranoia do jovem adulto ter que resolver tudo, ter o melhor emprego, trabalhar bastante para dar orgulho aos pais. E eu me perdi nisso. Me perdi nesse personagem, ao ponto de não saber mais quem eu era. Eu só sabia quem eu era no trabalho”.  

“Não importa a manobra, se tu está andando de skate já é skatista”, afirma Paolla. 
 (Foto: @pablisco.skt)

 Mergulhada nessa versão de si mesma que ela sequer reconhecia, acabou desencadeando alguns transtornos como ansiedade e depressão. Mas, foi justamente num momento de resgate a sua essência que ela lembrou do seu interesse no esporte. “O skate foi uma das coisas que me fez sair do buraco. Me fez pegar sol, sabe? Me fez ter vontade de botar uma roupa, sair de casa de novo. Eu tinha essa atração desde a minha adolescência e, na vida adulta, foi ele que me salvou” desabafa Paolla. 

Afinal, de onde surgiu esse esporte? 

O skate teve início nas décadas de 1950 e 1960 no estado da Califórnia, nos Estados Unidos. Naquela época, em dias que o mar não estava para ondas, os surfistas decidiram adaptar pranchas de madeira com rodinhas, criando o que chamaram de “sidewalk surf”, em português “surfe da calçada”.  

À medida que os anos 1970 avançavam, o skateboarding ganhou cada vez mais adeptos e, na década de 1980, durante um período de racionamento de água nos Estados Unidos, as piscinas vazias das casas se transformaram em locais ideais para andar de skate, dando origem à modalidade que hoje conhecemos por “bowl”. A partir daquele momento, o skate não era mais apenas um esporte; tornou-se um estilo de vida, com sua própria linguagem, roupas e cultura característica. 

A chegada do esporte ao Brasil se deu ainda nos anos 1960, seguindo a influência norte-americana. A cidade de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, foi palco da primeira pista de skate da América Latina, inaugurada em 1974. Pouco tempo depois, com a popularização do esporte, surgiram competições e campeonatos concentrados no eixo Rio-São Paulo. No entanto, foi apenas nos anos 2000 que a Confederação Brasileira de Skate (CBSk) foi fundada, consolidando o esporte no país. 

O skate é para todas! 

O coletivo Girls Skate Power ainda não tem como uma das atividades dar aulas de skate. Mas, em Porto Alegre existem vários espaços e profissionais que oferecem esse tipo de capacitação, um deles é o professor de Educação Física Revisson Silva

Através do Método Play Skate, projeto que criou e coordena, o professor já deu aula para mais de mil alunos entusiastas do skateboarding, entre adultos, jovens e crianças. Revisson afirma que a maior parte das alunas adultas não participa efetivamente da cena do skate, e está ali para realizar um sonho de infância de saber andar sob a prancha.  

Além disso, ele destaca relatos que recebe de como o skate impacta a autoestima dessas mulheres. “Que baque fantástico”. “Eu não imaginava que eu conseguiria isso para mim”. “Era impensável, e realmente eu consegui”. “Eu estou muito feliz”. “Me sinto mais segura, mais capaz.” As citações anteriores estão entre alguns dos feedbacks que o professor recebe. 

Elas por elas: mulheres na pista do autoconhecimento  

Tanto a história de Paolla quanto as aulas de skate do professor Revisson, evidenciam de maneira notável o poder transformador do esporte na vida de diversas mulheres. Paolla, com sua história de resgate através do skate, é um exemplo de como o esporte pode atuar como um refúgio emocional e motivação, mesmo nos momentos mais difíceis da vida. Dessa forma, a sua trajetória inspira outras mulheres que podem estar enfrentando situações semelhantes.  

Enquanto isso, as alunas do professor Revisson representam aquelas que estão em processo de realização de um sonho de infância. Elas enxergam nas aulas de skate não apenas uma oportunidade de aprender uma nova habilidade, mas também a oportunidade de fortalecer sua autoestima e confiança.  

Todas essas mulheres, independentemente de onde se encontram em suas jornadas, estão unidas pela ideia de que o skate, uma vez que este esporte oferece não apenas o exercício físico, mas também um espaço para crescimento pessoal e coletivo, onde as mulheres podem se tornar protagonistas de suas próprias histórias. É um lembrete de que, não importa de onde se comece, o importante é continuar avançando, superando obstáculos e explorando o potencial dentro de cada uma delas.