Artistas gaúchos reforçam o coro contra o esquecimento do período histórico marcado pela repressão, torturas e mortes

Não é de hoje que monumentos e estátuas são largamente usados como forma de homenagear ídolos, registrar acontecimentos e, também, provocar reflexões sobre períodos históricos. Quando se fala em artes relacionadas ao período da Ditadura Militar (1964-1985), é necessário analisar tanto obras que remetem à memória das vítimas e à resistência contra o Golpe, quanto homenagens aos presidentes militares.

Além da já conhecida estátua ao ícone do Movimento da Legalidade, Leonel de Moura Brizola, que está instalada entre o Palácio Piratini e a Catedral Metropolitana, em Porto Alegre, é possível encontrar, na Praça da Matriz, a poucos metros dali, um marco em referência ao fato histórico. Em uma placa de bronze, está gravado: “Em agosto de 1961, desta praça, Leonel Brizola assegurou com a participação do povo o respeito à legalidade constitucional e a manutenção do Estado de direito”. A peça foi colocada no local em agosto de 1986, no 25º aniversário da Legalidade.

Outra manifestação artística, em terras gaúchas, que visa evitar o esquecimento e impunidade dos crimes cometidos pela Ditadura é o memorial Pessoas Imprescindíveis. Ele foi inaugurado em agosto de 2011, aos 45 anos da morte de Manoel Raymundo Soares, no que ficou conhecido como o “Caso das Mãos Amarradas”. Soares, que era sargento do Exército, é considerado uma das primeiras vítimas da Ditadura. O monumento faz parte do projeto “Direito à Memória e à Verdade – A Ditadura Militar no Brasil”, iniciado em 2006 pelo governo federal.

O memorial foi desenvolvido pela jornalista, escultora e designer Cristina Pozzobon, que relembrou o nascimento do projeto. “Naquela gestão do governo Lula, estava começando todo um trabalho de recuperação de memória sobre os mortos e desaparecidos, as pessoas que foram torturadas durante a Ditadura Militar. E uma ideia que surgiu era de criar sítios de memória. Isso, de preferência, em locais públicos, que as pessoas pudessem presenciar e refletir sobre aquele período”, diz. 

Nesse projeto, Pozzobon produziu 33 esculturas e painéis, expostos em todo o país. O primeiro painel foi instalado em São Paulo, no Diretório Acadêmico de Medicina da Universidade de São Paulo. “Ali, a gente colocou um painel na parede contando um pouco da história de dois estudantes que foram mortos nesse período. A partir desse projeto, começamos a pensar em estruturas que seriam mais escultóricas, que fossem colocadas ao ar livre”, afirma. 

Monumento criado pela artista plástica Cristina Pozzobon. Foto: Raphael Seabra/Especial Palácio Piratini

A artista também produziu as obras do memorial Monumento ao Nunca Mais: homenagem à resistência brasileira e à luta pela anistia. De acordo com informações fornecidas pelo Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, a obra foi inaugurada em abril de 2014 e está no Memorial do Rio Grande do Sul (Mars). A peça é mantida em um terraço localizado no segundo andar da instituição, que no momento não é utilizada como espaço expositivo. Os projetos realizados por Cristina Pozzobon foram desenvolvidos através de uma parceria entre a Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação (Alice), o Ministério de Direitos Humanos e, posteriormente, com o Ministério da Justiça, através da Comissão de Anistia.

No espaço expositivo do MARS, o público pôde visitar a exposição fotográfica O Sonho e a Ruína, de Luiz Felizardo. A mostra, que esteve aberta entre 24 de janeiro e 20 de março deste ano, apresentou o patrimônio histórico e cultural de São Miguel das Missões. Entre os painéis fotográficos, estavam imagens que remetem ao período em que ocorreu o movimento da Legalidade, o Golpe de 1964 e a Ditadura Militar, descrevendo a luta do povo gaúcho em defesa da democracia. 

Da direita para a esquerda, painéis de Luiz Felizardo narram a história dos gaúchos contra a Ditadura. Foto: Liz Fonseca/Beta Redação

“A ideia era de criar esses espaços para justamente pessoas que não viveram naquele período – às futuras gerações, que estão por vir ainda. Para que um dia possam passar e chamar atenção: ‘Olha, mas o que é isso?’. Os arquivos não foram totalmente abertos, mesmo com o trabalho da Comissão da Verdade. Ele foi superimportante, traz coisas novas, mas ainda tem muita coisa para se saber”, ressalta Pozzobon. 

Em entrevista, a artista também menciona um monumento a Stuart Angel, jovem com dupla nacionalidade que foi preso, torturado e morto por ser militante contra a Ditadura. O trabalho artístico era exposto no Clube de Regatas do Flamengo, na cidade do Rio de Janeiro. Ele, supostamente, foi removido do local durante o governo Bolsonaro. Questionada sobre o motivo da retirada, Pozzobon pondera: “Provavelmente por conta do governo da época e das pessoas que estavam lá, que seriam contra. O que me contaram é que o monumento foi retirado, sumido. E eles estavam atrás das peças para ver se conseguiam recolocar”. 

Monumento a Castelo Branco é alvo de discussões

Em 1979, o Parque Moinhos de Vento, mais conhecido como Parcão, recebeu um monumento ao primeiro ditador militar do golpe de 64, Castelo Branco. A obra, encomendada dois anos antes para homenagear o ditador, foi construída pelo escultor Carlos Tenius, conhecido por criar outra peça que faz parte dos cartões-postais de Porto Alegre, o Monumento aos Açorianos. Antes de Tenius, os falecidos artistas plásticos Xico Stockinger e Vasco Prado também foram convidados a executar o projeto, porém, rejeitaram a proposta. 

Em depoimento concedido para Luiz de Miranda e publicado em um artigo do XXII Colóquio Brasileiro de História da Arte, Tenius afirmou, sobre o caráter da obra, que procura fugir ao caricatural, ao anedótico. “Acho que se pode fazer uma boa crítica social, ainda que sutil, usando elementos geométricos e abstratos. O monumento ao Castelo Branco, que é o que mais me emociona, tem uma forma estética parada, fechada, o que traduz, de certa forma, o nosso momento histórico”, disse. Não foi possível obter um novo depoimento do artista plástico sobre o tema. 

Para o historiador José Francisco Alves, a sociedade brasileira está muito dividida sobre este e outros assuntos, o que impossibilitaria o debate. “Esse tipo de discussão mudou em 10 anos. O melhor para a discussão sobre os fatos históricos é as pessoas lerem, estudarem, e ter melhorias econômicas. O país precisa andar para frente”, observa.

Pozzobon enfatiza que a existência de obras em homenagem aos governos militares é reflexo da falta de conhecimento sobre o tema. “Não existe de fato uma coisa que diga ‘Olha, aconteceu isso no Brasil, isso foi horrível, mataram pessoas, torturaram, pessoas desapareceram, e foram esses caras aqui’. É fundamental a educação sobre isso, para que as pessoas tenham conhecimento da História. A gente vai lembrar sempre, mas a gente não quer que aconteça de novo.”