Segundo a Secretaria de Segurança Pública do RS, 52% das vítimas cursaram até o Ensino Fundamental

Ao longo de 2021, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP), o estado teve 95 casos de feminicídio consumados e 257 tentativas registradas. Este levantamento também expôs que a maioria das vítimas possuíam baixa escolaridade. Cerca de 52% cursaram apenas até o ensino fundamental. Os agressores também demonstraram baixo nível de instrução, 48% estudaram até o ensino fundamental. Essa análise realça que as pessoas de baixa escolaridade dispõem uma maior probabilidade de se envolverem em casos de violência doméstica, chegando ao estágio final dela: o feminicídio.

A maioria dos agressores completaram apenas o Ensino Fundamental.

Segundo a advogada feminista que atua em casos de feminicídio, Paola Stroschoen Pinent, não é possível cravar que a baixa escolaridade é um fator determinante para o aumento da violência doméstica por conta da subnotificação dos casos, mas ela faz um alerta: com outros crimes esse fato se mantém. A advogada defende que o baixo nível de estudo tem como sintoma uma elevação nos índices de criminalidade em geral.

“Uma questão importante quando fazemos o recorte de escolaridade, é que a violência doméstica é subnotificada. Essa subnotificação é maior ainda em classes sociais mais abastadas, pois existem mulheres que são totalmente dependentes financeiramente dos maridos ou por existir aquela ideia de “não perder o status na sociedade”. O baixo nível de estudo tem como sintoma o aumento na criminalidade em geral. Acredito que o alcoolismo e o desemprego também têm relação no crescimento dos índices de feminicídio” comentou.

A maioria das vítimas chegou a estudar até o Ensino Fundamental.

O tema do feminicídio é delicado e difícil de abordar, uma vez que o assassinato é o último estágio do ciclo e, de acordo com os especialistas, normalmente a vítima pode demorar anos para conseguir denunciar seu agressor. Conforme dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em média, uma mulher é morta a cada sete horas por simples questão de gênero. Esse apontamento se dá em todo o Brasil.

Para entender melhor o recorte de escolaridade, a reportagem se propôs a analisar dados obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) perante a SSP sobre os casos de feminicídios tentados e consumados em quatro cidades da Região Metropolitana, que juntas somam mais de 2 milhões de habitantes, segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). São elas: Canoas, Novo Hamburgo, Porto Alegre e São Leopoldo. Porém, procuramos não esquecer das narrativas de mulheres que foram assassinadas em todo o Estado.

Perfil das vítimas e agressores

Os dados do Observatório da Violência Contra a Mulher da Secretaria de Segurança Pública (SSP) e do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) apontam que 83% das vítimas foram mortas por seus companheiros ou ex-companheiros. As motivações são inconformidade com o término do relacionamento, ciúmes, discussões e o sentimento de posse. O método em 34% dos casos se deu por arma de fogo, e 74% dessas vítimas foram mortas dentro de casa. Foi o caso da Luiza Vitória Bica Gonçalves, de 22 anos, assassinada no ano de 2020 pelo ex-namorado, em Porto Alegre. Ela estava na cozinha preparando um bolo, quando foi surpreendida pelo ex-companheiro, Fábio Freitas de Medeiros, 35 anos. A mãe que relembra a história estava de cama, por conta de um procedimento cirúrgico. Quando a campainha tocou, Luiza foi atender a porta, Fábio havia retornado para pegar alguns pertences que haviam ficado no local. Na última sacola, a vítima foi surpreendida por golpes de faca. Ela chegou a lutar com o assassino, que sofreu alguns ferimentos. Fábio foi encaminhado para o hospital, e Luiza para o cemitério. O agressor tinha históricos de violência, outros episódios já haviam sido vivenciados. Crises de ciúmes, e o tempo que Luiza dedicava ao Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) foram alguns dos motivos para o crime de feminicídio.

Dados por município

Porto Alegre

Na Capital, em 2021, conforme os indicadores de violência da SSP, foram registrados um total de 57 feminicídios, entre consumados e tentados. Em relação aos agressores, 53% deles possuíam o Ensino Fundamental, 28% o Ensino Médio, e 1% o Ensino Superior. Já os casos que não foram informados, somam oito. No ano da coleta dos dados, a idade dos homens variou entre 18 e 63 anos.

Assim como os agressores, as vítimas também apresentam um grau de escolaridade baixo. Foram 59% dos casos em que a mulher possuía apenas o ensino fundamental e 27% o Ensino Médio. Além disso, 9% não tiveram a escolaridade divulgada, 3% das mulheres tinham ensino superior e em um caso (1%) a vítima não era alfabetizada. Em 2012, a idade delas variou entre 15 e 61 anos.

A Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul (Alergs) divulgou um dossiê onde apresenta um balanço sobre os casos de feminicídio no Rio Grande do Sul, em que os dados apontam que a maioria dos acusados tinha algum vínculo com as vítimas. Conforme o relatório, apenas em 8% dos casos o agressor não estava relacionado à vítima.

Canoas

Em Canoas, segundo a SSP, no ano de 2021, foram oito casos de feminicídio, entre tentados e consumados. Em apenas um deles (12,5%) o agressor tinha o Ensino Superior completo, enquanto o restante (87,5%) havia completado os estudos até o Fundamental. A cidade apresenta ainda um índice maior de mulheres vítimas com apenas o Ensino Fundamental em relação às demais. No mesmo ano, a idade delas variou entre 17 e 69 anos, enquanto a dos homens entre 19 e 60.

Marilei Cardoso Pereira, 21 anos, foi morta a tiros dentro de um bar, em uma manhã de terça-feira, no ano de 2016. O ex-companheiro da vítima, após cometer o crime, se suicidou. A vítima já havia solicitado medida protetiva de urgência e tinha boletim de ocorrência de Maria da Penha contra o agressor. Não foi o suficiente para evitar sua morte.

Novo Hamburgo

No município de Novo Hamburgo, foram 11 mulheres vítimas de feminicídio entre tentados e consumados. Desses, 81,82% eram de agressores e vítimas com Ensino Fundamental. Em apenas um dos casos ambos tinham Ensino Superior. Por fim, um dos casos não teve as informações divulgadas. No ano de 2021 as idades dos agressores variaram de 22 a 55 anos, enquanto as das vítimas de 21 a 51 anos. Os dados são da SSP.

Joslaine de Lima Goulart, 28 anos, foi morta brutalmente. O companheiro da vítima estava em liberdade condicional e havia sido liberado um mês antes de cometer o crime. O casal tinha um filho de sete anos e Joslaine também tinha mais um menino de dez anos de outro relacionamento. A morte foi resultado de um ataque de ciúmes por conta do agressor.

São Leopoldo

Também segundo a SSP, São Leopoldo registrou 12 casos no ano de 2021, entre consumados e tentativas de feminicídio. Ao todo, 58.33% das vítimas e agressores tinham apenas o Ensino Fundamental completo. Ainda conforme divulgado, foram três casos na categoria “outros” e dois onde não foi informada a escolaridade.

A delegada responsável pela Delegacia Especializada no Combate à Violência de Gênero em São Leopoldo, Michele Arigony, destaca que os casos acontecem em todos os locais, mas que a grande dificuldade enfrentada em situações de violência contra as mulheres ainda seguem sendo as denúncias.

“Por essas mulheres estarem vivendo nesse ciclo de violência, às vezes elas demoram anos para rompê-lo. Tudo começa pela violência psicológica, antes de qualquer agressão física. É estimado que somente 10% da violência doméstica é denunciada”, ressaltou.

No município existe um local de apoio às vítimas: o Centro Jacobina. O serviço é disponibilizado através da Prefeitura de São Leopoldo e o local confere suporte psicológico e jurídico. De acordo com os dados do próprio Centro Jacobina, a maioria das mulheres atendidas em casos de violência doméstica em 2021 na cidade eram de regiões mais vulneráveis: Santos Dumont (35), Feitoria (29), Arroio da Manteiga (13). Dado que se repete nos anos anteriores. No ano de 2021, as idades variaram entre vítimas de 13 a 59 anos, e entre agressores, de 22 a 69.

Kerolayn Hagg Sanches, 25 anos, foi assassinada a tiros pelo marido. Três disparos acertaram a vítima após uma discussão. A motivação do crime foi o excesso de ciúmes por parte do agressor. O casal tinha duas filhas, mas que não estavam no local na hora do ocorrido. O suspeito não foi preso em flagrante e conseguiu fugir do local.

A maioria dos agressores são jovens, tendo de 18 a 29 anos.
A maior parte das vítimas também são jovens de 18 a 29 anos.

Silêncio das vítimas

Cerca de 67% das vítimas de feminicídio nunca procuraram delegacias para registrar ocorrências contra seus agressores. Outro dado aponta que quase 90% das vítimas não haviam solicitado nenhuma Medida Protetiva de Urgência (MPU) antes de suas mortes.

As MPUs são ordens judiciais concedidas com o objetivo de proteger uma pessoa que esteja passando por situações de risco, perigo ou vulnerabilidade.

A advogada feminista que atua em casos de feminicídio, Paola Stroschoen Pinent argumenta que: “As mulheres estão em um processo de aprendizado perante as leis que foram feitas para o benefício delas. Não sabemos usar isso a nosso favor, pois não nos foi permitido até pouco tempo atrás”.

Lei Maria da Penha traz em seu escopo medidas protetivas que visam coibir a prática de violência doméstica e familiar, sendo a mulher a parte vulnerável e protegida pela legislação. No caso das cidades analisadas, em 2021, os municípios de Porto Alegre e Canoas foram os que mais tinham MPUs, com 5.699 e 2.428 casos, respectivamente.

“A Lei Maria da Penha é oriunda de uma punição que o Brasil recebeu da ONU (Organização das Nações Unidas), em razão da negligência com que lidou com o caso de Maria da Penha. Portanto, foi uma obrigação imposta ao país”, relata a advogada.

Um começo para a redução de casos

Em maio deste ano, o Governo do Estado realizou a divulgação do Sistema de Monitoramento do Agressor. Um projeto desenvolvido pelo programa EmFrente, Mulher, um comitê interinstitucional de enfrentamento a violência contra a mulher no estado do Rio Grande do Sul. A ação foi pensada por um decreto em agosto de 2020, mas foi em 2019 que ela surgiu, por meio de workshops com as principais lideranças e representatividades no que se refere ao tema.

Foto: Reprodução

A assessora da Unidade de Coordenação do Programa RS Seguro e da Equipe de Coordenação do Comitê EmFrente, Mulher, Giovana Mazzarolo Foppa falou sobre como se deu esse processo de desenvolvimento.

“Nos workshops de ideação foram levantadas as principais questões que o Estado precisava atender no que se refere à qualificação e ao enfrentamento da violência contra a mulher. Então, como qualificar? Quais eram os maiores entraves no que se refere a questão do enfrentamento e da proteção da mulher vítima de violência? Uma das questões trazidas foi justamente a qualificação das medidas protetivas e do monitoramento do agressor. ”

Com base nesse processo, o projeto Monitoramento do Agressor foi desenvolvido prevendo o duplo monitoramento, em relação ao agressor e também a vítima. A partir de uma autorização da Justiça, a vítima recebe um dispositivo de celular, com um aplicativo interligado à Central de Monitoramento, já o agressor recebe uma tornozeleira eletrônica, que emitirá um alerta caso ele descumpra a zona de exclusão aplicada pelo Judiciário. A localização é encaminhada para a vítima, para que ela possa ter uma forma de defesa. A Central também entra em contato com o agressor para que ele saia do local. Caso isso não aconteça, a Brigada Militar e a Polícia Civil são acionadas.

O projeto do Governo do Estado conta com um investimento de R$ 4,2 milhões. Os municípios de Porto Alegre e Canoas receberão as tornozeleiras e os celulares no início do próximo ano.

“A ideia é começarmos com os projetos pilotos em Porto Alegre e Canoas, com as varas de violência doméstica e familiar. Após isso, projetamos um plano de expansão para o restante do estado. A ideia do projeto Monitoramento do Agressor é qualificar as medidas protetivas de urgência, já que mais de 70% das mulheres que sofrem de feminicídio no Estado nunca registraram boletim de ocorrência”, complementou Giovana.

O EmFrente, Mulher espera que com esse monitoramento os números de mulheres que buscam proteção aumentem e que elas se sintam seguras para denunciar.

“Sabendo que estarão protegidas, esperamos que mais mulheres procurem o sistema de justiça para fazer essas denúncias ”, finalizou.

Mais políticas públicas

Ainda referente ao programa “Em Frente Mulher”, o governador eleito do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), ressaltou em seu plano de governo outras medidas para o combate à violência contra a mulher. Um novo projeto, que foi encaminhado para a Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul (Alergs), institui a criação de um “selo” que, com ele, o Estado passará a conferir uma certificação de responsabilidade social a empresas privadas que adotam posturas em favor da valorização da mulher e do enfrentamento desse tipo de violência.

Para obter o selo, as empresas terão que cumprir alguns critérios, como desenvolver políticas de prevenção a práticas como o machismo, o assédio sexual ou moral e a importunação no ambiente de trabalho, e realizar outras atividades que contribuam para a valorização da mulher.

O projeto de lei também considera questões como o apoio à capacitação profissional, à saúde e à defesa de direitos do público feminino, além da promoção de oportunidades equivalentes, inclusive salariais, entre homens e mulheres. Com a aprovação da norma, a certificação será concedida às empresas anualmente, durante o Agosto Lilás, mês nacional de proteção à mulher, e as corporações contempladas poderão utilizar o selo em suas ações publicitárias.

O plano de governo informa, ainda, que visa a ampliação da rede de proteção à mulher por meio de casas de abrigo regionalizadas, além do aumento do investimento para os Centros Municipais de Referência da Mulher.

Foi destacado também que, durante a gestão anterior, o Centro de Referência da Mulher Vânia Araújo Machado recebeu um investimento de R$ 3 milhões para reforma e qualificação do espaço de acolhimento. E outros R$ 5,14 milhões foram aplicados em Centros Municipais de Referência da Mulher, entre outras políticas específicas.