Ícone do movimento pelos direitos humanos no Brasil, Jair Krischke alerta para a necessidade de resolver o passado, antes de pensar o futuro

Endereço fixo da luta pela democracia, o cruzamento da rua dos Andradas com a Avenida Borges de Medeiros, conhecido como Esquina Democrática, há décadas é palco de movimentos pela liberdade de expressão em Porto Alegre. Um dos quatro prédios que cerca o local é o Edifício Missões, que antes era sede do Serviço Nacional de Informações (SNI) e servia de camarote para os militares controlarem todo e qualquer ato contra a ditadura, entre 1964 e 1985. Hoje, esse endereço sedia o Movimento da Justiça e dos Direitos Humanos (MJDH) e abriga um dos acervos mais completos sobre as brutalidades, não só da Ditadura Militar brasileira, mas também de acontecimentos semelhantes em países vizinhos. A Beta Redação teve a oportunidade de conhecer o local e entrevistar uma das testemunhas oculares da história de nosso país.

O exílio dos perseguidos e a vivência nos anos de chumbo 

Gaúcho de 85 anos, Jair Krischke é uma das fontes essenciais para entender o Golpe de 1964. “Todo ato humano é um ato de guerra”, explica, parafraseando o pastor belga Joseph Comblin, que inicialmente inspirou seu ativismo contra a Ditadura Militar.

Apesar de sua formação em história pela UFRGS, na época Krischke não acreditava que o fatídico 31 de março de 1964 iria mudar de forma drástica a história do Brasil. “Eu e muitos tantos outros companheiros achávamos que o que estávamos vivendo era uma quartelada, como já havia ocorrido em outros países da América Latina. Em dois ou três anos aquilo acabaria”, ele relata. 

No entanto, a realidade era muito diferente. Em 1968, a lei da Doutrina da Segurança Nacional entrou em vigor. Ela tinha como objetivo principal identificar e eliminar os chamados “inimigos internos”, ou seja, todos aqueles que questionavam e criticavam o regime estabelecido. “Depois que veio o AI-5, o regime endureceu. Tu podias ser preso sem nenhuma justificativa, e foi assim que surgiu a necessidade de tirar pessoas do país. Foi desesperador. De repente, eram mais de cinco mil pessoas exiladas no Uruguai”, conta Krischke. 

A partir da necessidade de auxiliar os perseguidos a se exilarem, o militante político iniciou a atuação, ainda não oficial, do Movimento de Justiça e Direitos Humano (MJDH), que hoje preside. Devido à repressão, por muito tempo o MJDH precisou atuar na clandestinidade, impedido de registar publicamente a sua identidade jurídica. A principal missão, naquele período, era proporcionar às vítimas da perseguição o asilo ou o exílio para determinados países. Isso acontecia através da colaboração com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).

Jair é casado, pai de cinco filhos, tem 12 netos, 14 bisnetos e sempre reforça o importante papel da família para sua militância. “A vida me deu cinco filhos e, infelizmente, me tirou uma filha. Ela era parceirona, morava em São Borja. Muitas vezes precisei usar a casa dela pra trazer e tirar pessoas do país. E não só ela, eu já precisei pedir para um dos meus filhos ‘dar um perdido’ na namorada para me ajudar a levar um companheiro para o Uruguai. A gente viveu muita coisa juntos, ninguém imagina o que passamos”, recorda.

Os documentos presentes no acervo de Krischke já foram apresentados em reuniões da Organização das Nações Unidas (ONU). Foto: Bárbara Cezimbra

Durante a Ditadura, o período era de extrema tensão, mas, ainda assim, toda a atividade de exílio era muito organizada. Quando os perseguidos procuravam a ajuda de Krischke, tinham de escrever um depoimento com informações previamente estipuladas pelo movimento. Este processo fez o historiador ficar conhecido como “caçador de torturadores”, pois ele documentava tudo que poderia servir de prova para denunciar os terrorismos de estado. “Os documentos dão vida a todos os nossos achismos. Eu guardo todo papel que for, nunca sabemos quando ele será necessário”, diz Krischke. Por isso, além das informações pessoais, os perseguidos precisavam preencher numa espécie de formulário o nome de seus torturadores, companheiros de luta e autoridades envolvidas.

Todos esses documentos fazem parte do acervo guardado na sede do MJDH que, em setembro de 2023, recebeu  o prêmio Memória do Mundo, da Unesco. Antes da pandemia, doutorandos e mestrandos podiam reservar um horário para fazer suas pesquisas nos arquivos. Porém, devido a pandemia de COVID-19 e a perda de um documento por parte de um pesquisador, esse serviço foi encerrado.  

Não estamos isentos de autoritarismos

Em função de sua dedicação à causa humana que ajudou a salvar a vida de mais de cinco mil pessoas, Krischke é considerado por muitos um herói. Questionado sobre esta percepção, o historiador comenta não gostar muito do termo. “Imagina, como apenas uma pessoa iria conseguir fazer tudo isso? Salvar tanta gente? Todos esses que estão aqui tiveram um papel essencial na luta contra a ditadura”, responde, olhando para a parede onde estão emoldurados diversos quadros com retratos de pessoas que trabalharam junto ao MJDH.

Mesmo com toda sua atuação, Jair Krischke não precisou recorrer ao exílio, mas até recentemente recebeu ameaças. A última ocorreu em 2017, quando seu nome foi citado em uma lista de possíveis assassinatos no Uruguai. “Recebi a ligação de um amigo jornalista, que disse que iria publicar uma matéria sobre um e-mail que o procurador de justiça uruguaio havia recebido. No documento constavam ameaças voltadas para 13 pessoas, e eu era uma delas”, relata. Logo depois dessa ligação, Krischke fez contato com a embaixada do Brasil no Uruguai pedindo proteção. “Eu não deixei de ir ao país. Eu vou, aviso o Ministério de Relações Exteriores e quando chego lá, sempre tem três seguranças me esperando. Mas é terrível, nem ao banheiro sozinho a gente consegue ir”, lamenta. 

O historiador tem opiniões contundentes a respeito do atual cenário político brasileiro. Questionado sobre a possibilidade de acontecer novamente uma ditadura, Jair diz não acreditar em algo semelhante ao que ocorreu em 1964. “A história não se repete, os tempos são outros. Naquela época existia a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, hoje não existe mais. O mundo está diferente. Mas isso não quer dizer que estejamos isentos de autoritarismos”, alerta.

Por isso é que Jair Krischke segue lutando, e também por sua revolta quanto a morosidade dos processos junto à Lei da Anistia. “O Brasil é o único país da América Latina que não puniu ninguém, enquanto todos os demais ao redor puniram. O Jorge Rafael Videla, ditador na Argentina entre 1976 e 1981, por exemplo, morreu na prisão. Uruguai e Chile prenderam muitos militares, aqui não tem ninguém enclausurado. Assim fica difícil pensar no futuro, porque tu não estás resolvendo os problemas que precisam ser resolvidos. Há um prejuízo tão grande, uma pobreza na política. Parece que no Brasil só quem não tem conhecimento e informação consegue entrar na política”, analisa.

“Alguém me ensinou que para virarmos uma página, é preciso lê-la. Quando isso não acontece, episódios como o 8 de janeiro de 2023 se tornam frequentes”, alerta Krischke, relembrando os atos golpistas na Praça dos Três Poderes, em Brasília, que de certa forma revelam a grande dificuldade do Brasil pensar seu futuro, por ainda não ter resolvido seu passado recente.

Agenda da descomemoração da Ditadura Militar no Brasil

Após a recente fala do presidente Lula sobre o cancelamento da agenda de eventos que estava sendo preparada pelo Ministério dos Direitos Humanos para marcar o 31 de março, data que configura os 60 anos do Golpe Militar brasileiro, diversos coletivos e organizações, incluindo o MJDH, reforçaram a importância de atividades de “descomemoração”, como menciona Krischke, aludindo ao ato em homenagem ao militante político Cilon Cunha Brum, realizado na Câmara Municipal de Porto Alegre (CMPA). “Acredito que esse seja o momento de relembrarmos essa parte da história do nosso país. Temos várias atividades que irão acontecer até o final do ano, justamente para buscar, junto aos jovens, um entendimento do que, de fato, aconteceu”, reflete.

Para exemplificar a falta de conhecimento por parte dos jovens, Jair relembra um episódio. “Ano passado eu fui a uma escola de segundo grau fazer uma palestra e cometi o erro de questionar se os alunos sabiam que no Brasil havia ocorrido um Golpe Militar. Ninguém sabia. Isso me chocou, por isso reitero a importância de marcar esta data”, pontua.

Várias entidades estarão promovendo seminários, palestras, mesas redondas e ciclos de filmes sobre o tema. Confira alguns eventos que ocorrem até 8 de abril:

29/2- Ouvidoria da DPE, TJ-RS e Nuances – Do Porão à Democracia – 60 anos de luta contra a ditadura sobre os corpos – Bar Workroom na Rua Lopo Gonçalves, 364 Cidade Baixa

1° de março, 11 horas – Homenagem ao ex-presidente João Goulart, na data do seu aniversário. Na rótula “João Goulart”, encontro das Avenidas João Goulart, Loureiro da Silva e Edvaldo Pereira Paiva, em Porto Alegre. Promoção da Fundação Caminho da Soberania, da “Associação de Ex-Presos e Perseguidos Políticos do RS” e do “Movimento de Justiça e Direitos Humanos” e do gabinete Pedro Ruas.

03 março, 16h – Praça Cilon Brum, bairro Farrapos (entre as ruas Diógenes Arruda e Maria Trindade). Ato em memória pelos 50 anos da morte de Cilon Brum. Promoção da Associação Cultural Desabafa

09 de março – Ato político em São Sepé, na praça Cilon Cunha Brum e no cemitério. Promoção Fundação Afif Filho com apoio da Prefeitura de São Sepé e presença familiares.